Andrezza Iriri (Romance, Cap. VII)

A inauguração da casa de Anelice foi marcada por um animado churrasco, em que pese o número reduzido de participantes. De fora apenas a Dra Júlia, patroa de Anelice, que viera com o marido; Martha, colega de escritório de Anelice, a amiga que almoçara com Anelice no dia em que ela e Efigênio se conheceram; e duas vizinhas da anfitriã, com os maridos e filhos menores, que moravam na Aldeia. Logicamente D. Tita, com Juliana, e D. Mocinha completavam o número de pessoas presentes.

Andrezza alegara uma indisposição qualquer como motivo de sua ausência. Por incrível que pareça, Anelice perguntara muito à tia pela prima, de quem se lembrava toda vez que via sua filha e Juliana correndo pelo quintal e rolando pela grama do jardim. Era divertido ver Juliana, de quem Anelice gostava de se aproximar para beijar-lhe o rostinho rechonchudo, tentando amedrontar sua filha, pulando e saltando com uma vareta imaginária na mão e uma bola na extremidade, que atirava contra o chão. “É o monstro, é o monstro bate-bola”, dizia a menina. Ao que Angélica, fingindo-se amedrontada, respondia: “Não me pega não, monstro. Não me pega”.

-Julinha, de onde você tirou essa idéia de monstro bate-bola, querida?

-Foi da mamãe. Ela um dia lá em casa tava fantasiada de bate-bola, tia Lice. Foi muito engraçado.

-Ah, mas você tá longe de parecer um monstro, amor. É muito linda pra isso, acrescentou Anelice

A casa chamou a atenção de D. Tita, que entrou timidamente pela varanda para conhecer todos os cômodos a convite de Anelice, antes de se sentar à mesa comprida de refeições colocada no gramado de que se revestia o afastamento frontal.

Na espaçosa sala, uma estante quase da altura do teto, em que se viam livros, uma TV de tela plana – que D. Tita ainda não conhecia –, uma aparelhagem de som moderna, quadros em duas paredes opostas, dois sofás de três lugares e uma mesa oval com tampo de vidro grosso e seis cadeiras de material reluzente, que D. Tita interpretou como sendo de aço. No alto da parede que separava a sala da varanda notou o aparelho de ar condicionado.

No quarto maior destacava-se a cama de casal e o armário, ocupando toda a parede oposta à cama, com portas de correr de alumínio. No banheiro privativo desse quarto, as grandes placas do piso cerâmico claro, iguais ao revestimento das paredes, pareciam manter o ambiente permanentemente iluminado.

No quarto menor, havia uma cama de solteiro, provavelmente destinada à D. Mocinha, e uma cama menor, já sem a proteção lateral, que seria a de Angélica. Havia também um banheiro privativo com as mesmas características do anterior.

Os armários da cozinha eram todos em aço escovado, sendo suas portas pintadas na cor grafite, conforme as explicações de Anelice. D. Tita ficou mais ou menos na mesma quanto aos nomes que ouviu da sobrinha, mas não pôde deixar de achar agradável e luxuoso o ambiente criado pelos móveis e aparelhos que viu. Essa menina merece. Trabalha muito, é caprichosa. É a fome com a vontade de comer. Acabou achando um homem igualmente trabalhador e caprichoso como ela. Andrezza também não podia ter tudo isso? A metade já seria bom. Mas o orgulho não a deixa se aproximar da prima. Ela deveria estar aqui, para se animar a partir desse exemplo.

-Parabéns, minha filha. Você merece tudo isso. E ao senhor também, Seu Efigênio. Vê-se logo que é homem caprichoso e de muito bom gosto. Fico feliz com a felicidade de vocês. Muito mesmo, disse D. Tita, emocionando-se com o tom solene da alocução.

-Muito obrigado, D. Tita. Bondade a sua, falou Efigênio, temendo que D. Tita fosse chorar.

-Tia, a casa é sua também. Quando quiser, pode vir. Mesmo que mamãe esteja por aqui. Espaço é o que não falta, completou Anelice.

Nesse dia Efigênio chegou bem tarde em casa. Domício usava o computador no escritório, Rafael dormia em seu quarto e Iara no do casal. Efigênio não percebeu a menor alteração que pudesse ter sido provocada pela sua chegada. Pelo contrário. Parece até que ela não tinha sido muito desejada. A julgar pela posição de Iara na cama, esparramada no meio do colchão. Domício foi dormir logo em seguida, sem deixar a mínima impressão de que estivesse esperando o pai. Iara apenas resmungou, como se estivesse sonhando com algo que a aborrecia, ao ter que se afastar para o lado para permitir que Efigênio se deitasse na cama.

Naquela noite ele nunca soube se ela percebeu a que horas ele chegara ou não. O que se sucedeu nas inúmeras vezes em que ele decidiu se demorar por mais tempo na casa que alugara para Anelice.

Na primeira noite em que pernoitou na nova casa de Anelice, Efigênio ainda se preocupou em dar alguma explicação no dia seguinte. Embora percebesse que Iara não fazia o menor esforço para se ater à veracidade do fato. Iara absolutamente não se interessou pelas setecentas unidades habitacionais em construção, sob gerenciamento de seu marido, num município vizinho de que nunca lembrou o nome. Por outro lado, considerou normal que Efigênio tivesse que passar noites fora de casa face ao acúmulo de trabalho. Parecia que sobrava mais espaço para ela. É, parece que é irreversível. Ainda bem que tenho onde atracar meu barco, refletiu Efigênio.

Em meados de agosto o inverno ainda era rigoroso. Como rigorosos tinham sido os meses de junho e julho, assim como a primeira semana de agosto, sob outro aspecto. Juvenal fora vítima de assaltantes por três vezes consecutivas, duas nos meses anteriores e uma na primeira semana do mês do desgosto. Todas elas depois de ter deixado Andrezza em casa. Na primeira levaram-lhe o dinheiro, o relógio Bulova e o cordão de ouro. Na segunda apropriaram-se de grande soma em dinheiro de sua conta bancária através da modalidade de roubo conhecida como seqüestro-relâmpago. Na terceira ficaram com o carro e pequena quantia em dinheiro. O carro foi achado dois dias depois, sem o toca-fitas e os quatro pneus.

-Não posso ir mais aí, Andrezza. Sinto muito. Gosto de você, mas não dá mais. Se você quiser, podemos nos encontrar aqui em baixo.

-Tudo bem. Mas eu não tenho culpa. Você precisa tomar mais cuidado.

-Não estou dizendo que você tem culpa. Só que já estou marcado. E o cuidado que tenho que tomar significa não poder ir mais aí em cima.

-Você deu parte à polícia?

-E adianta? Pode até complicar mais. Vou ficar na minha. Só não quero é ir a Portobelo de novo. Mais especificamente a Vila Vazia. E acho bom nós darmos um tempo. Pode sobrar pra você.

-Tá bem. E quando a gente se fala? Posso te ligar?

-Não, eu te ligo. Deixa que eu te ligo.

Quando Andrezza desligou o celular, viu pela janela da sala que Pedro Crivo se aproximava do portão. Trazia a sombrinha colorida que tomara emprestado. Resolveu permitir que ele entrasse. Sua mãe tinha ido buscar Juliana na escola.

-Vim devolver a sombrinha aí pra tu. Acho que num vai chover mais tão cedo agora. E aí? Falou com o mané?

-Acabei de falar com o coroa. Ele não vai pintar mais por aqui, respondeu Andrezza.

-Então nós vai lá embaixo.

-Nada disso, mêirmão. Tá de bom tamanho. Pode acabar dando merda. Será que a gente num tem criatividade, não, cara?

-Se o cara dá mole, então...

-Então é o cacete, cara. Isso pode sujar aqui a área. O cara pode trazer a polícia no rastro dele.

-Ele deu parte?

-Ele disse que não. Mas eu sei lá? Além do mais, tem a parada dos cheques, dos cartões de crédito. Os bancos correm atrás, mêirmão. Acho bom a gente ficar no sapatinho um tempo. Tenho filha pequena e minha mãe. Tu sabe que polícia é covarde.

-Certo. Tu descolou aquele AP que a gente queria? Aquela parada do cadastro?

-Ainda não. Ainda não me chamaram. Mas estou com a Somila na fita. A negona tá trabalhando direitinho na casa de um dentista de nome, aí. Mas isso é papo pra daqui a um mês.

-Certo. Tô cuntigo. Por mim, tudo bem. Mas a rapaziada num pensa muito assim não, Drizza.

-A rapaziada é o caralho, PC. Esses caras num tinham nada quando chegaram aqui. Nós é que fizemos eles, cara. Quem, aí? O Inglês e o Nozinho? Eles num tinham nada, cara. Nós é que botamos eles na fita. Agora querem sair por aí metendo bronca? Vão cagar tudo, cara. Malandro que é malandro não pode ser burro, não pode ser bundão. Se tu tá comigo, fala isso pra eles. Pra que eu não tenha esse trabalho. Até porque se eu falar com os homi lá em cima, sei que num vai ficá bom pra eles, disse Andrezza, fazendo questão de terminar de forma moderada, apesar do tom de ameaça.

-Tá bem, tá bem, rainha. Num precisa tanto discurso não.

-Rainha porra nenhuma. A irmandade lá de cima num apóia nego burro, não, PC. Abre teu olho. Num é só cumprir com a nossa parte, não, cara. Temo que mostrar a eles que a gente sabe ver na frente, certo?

Juvenal tinha comprado os quatro pneus de seu carro e recuperara todo o veículo quanto aos poucos arranhões e ao equipamento interno. Sabia que em cerca de três meses estaria com praticamente todos os seus prejuízos anulados. A complementação salarial o ajudaria.

Só não podia era contar com a certeza de que Andrezza não estivesse por trás de tudo o que lhe ocorrera. Era muita coincidência que as três ações tivessem acontecido logo após ele a ter deixado em casa. Nas três vezes notara a impaciência dela em fazer com que ele fosse logo embora. Parecia que havia uma hora marcada. Na primeira vez chovia muito. Mas nas outras duas, não. Fazia sentido agora o motivo fútil que tinha sido alegado nessas duas vezes. Uma dor de cabeça momentânea a impedira de ficar um pouco mais com ele no carro. Por outro lado, nas três situações em que se viu sob a mira de revólveres, na verdade fora poupado. Além de não ter sofrido qualquer dano físico, seus documentos nunca lhe foram retirados. Era possível que essa ordem tivesse sido dada pela líder do grupo. Que embora não tivesse participação direta, coordenava as ações à distância. Talvez o fato de se relacionarem implicasse um certo tipo de preservação em relação a Juvenal. Ele não deveria ser inteiramente prejudicado. Era o que imaginava.

Além do mais, havia ainda a possibilidade de o relacionamento entre os dois ter sido descoberto pelos cúmplices de Andrezza ou estar sob a suspeição deles. O que a deixaria na condição de, para provar o contrário, não poupar de alguma forma a pessoa que lhe oferecera carona.

De qualquer modo, Juvenal sentia-se prejudicado e duplamente traído. Traído em sua confiança e em seus sentimentos. Por achar que Andrezza nunca sentira nada por ele. O que a teria impedido de permitir o desencadeamento de ações que poderiam resultar em danos muito mais dolorosos que os prejuízos materiais que sofreu.

Apesar de tudo seria impossível esquecer aquela mulher das coxas grossas e volumosas e dos lábios macios, que a ele se entregara inteiramente em todas as vezes em que se amaram. Era inegável a falta que dela sentia, agora que se completavam quase quatro meses desde a última vez em que estiveram juntos.

A mulher que o ataca é a mulher que você ama. Trata-se de alguma coisa que ainda me surpreende. Uma usina de aflições, que precisavam ser compartilhadas com alguém. Angústias que pudessem ser mitigadas por uma palavra amiga. Tristezas que pudessem se desvanecer a partir do apoio oral ou espiritual de um interlocutor especial. Mas quem?

Iara poderia ser a pessoa indicada. Boa articuladora. Mas também muito objetiva, racional e até calculista. Talvez não fosse questão que devesse ser tratada linearmente. Apesar de esta não ser uma característica do interlocutor feminino. Haveria nuances que poderiam conduzir o tema por caminhos não tão previsíveis. Nesse caso, só um homem que tivesse passado por momentos parecidos estaria em condições de prestar esse tipo de auxílio. Talvez não fosse o caso de Efigênio. Mas era o único disponível.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 26/05/2011
Código do texto: T2994131
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