ANATOMIA DE UM ASSASSINO

Esvoaçantes cabelos fustigados pelo vento. Ela caminha sem se incomodar com a minha presença. As vezes vira a cabeça para os lados afim de livrar as franjas frente aos olhos. Tenho que criar uma boa estratégia. Como disse o estudioso matemático Russell “toda a matemática pura trata exclusivamente com conceitos definíveis em termos de um pequeno número de conceitos lógicos fundamentais". Eu tinha que dar o primeiro passo sem por tudo a perder.

- Quando você vai começar a trabalhar? Paciência tem limite. O cara esta fodendo os meus negócios - disse Lacerda, irritado.

- Não se preocupe. Estou de olho nele. Vou ter que desligar. Não posso falar agora - desliguei o celular.

Só sei que, depois de te-la conhecido, o meu comportamento mudou. Toc, toc, toc. O barulho do salto dela pela calçada. Baba com criança. Cachorro. Sigo de longe. Carrinho de lanche. Lado direito. Dobra a esquina. Fico olhando o corpo dela enquanto se afasta. Devia malhar dia sim, dia não. Apesar de magra, seu corpo era rijo e modulado. Banca de jornal. Mais alguns passos. Porta de entrada do edifício.

Eu já sabia onde ela trabalhava, onde almoçava, onde morava. O que estava esperando para dar o próximo passo?

Eu estava hospedado num prédio de apartamentos em frente ao dela. Mas só naquele dia percebi que entre os dois prédios havia uma praça em forma de um triângulo retângulo. Aquilo poderia ser entendido como um indício. Sim, com certeza era um sinal.

Diante de um triângulo retângulo qualquer, se desenharmos três quadrados adjacentes a cada um dos lados, cada um deles com o comprimento de um lado e dividirmos ao meio o quadrado referente ao maior dos dois catetos, fazendo passar uma linha paralela à hipotenusa e dividindo novamente ao meio, passando uma linha perpendicular à hipotenusa, bem ao centro, teremos um quadrado dividido em quatro trapézios irregulares. Estes trapézios irregulares possuem dois lados. Agora se unirmos estes dois lados, teremos o comprimento da hipotenusa. É possível também rearranjá-los de modo a se encaixarem no quadrado ao lado da hipotenusa. Ou seja, as áreas dos 4 trapézios formados se igualam à área do quadrado do cateto maior. Quod erat demonstrandum!

Comecei a revolver os meus livros. Eu estava cheio de pensamentos confusos. Os pitagóricos julgavam poder explicar o mundo mediante os opostos. O ilimitado e o limitado. O par e o ímpar. O perfeito e o imperfeito. Os números se dividem em par ou ímpar. O par não põe limites à divisão por dois, por isso é ilimitado e imperfeito, pois segundo a concepção grega, só há perfeição na determinação. O numero ímpar põe limites à divisão por dois, por isso ele é considerado limitado, determinado e perfeito. Por isso existe sim, pior ou melhor. Não há meio termo. Ou o sujeito é ímpar ou ele é par. Limitado ou ilimitado.

No dia seguinte, passei numa loja de caça e pesca e comprei um binóculo. Postei-me em frente a janela, esquadrinhando mentalmente o prédio vizinho. Decorei o numero de janelas como num tabuleiro de xadrez. As janelas acesas eram as peças soltas do jogo já iniciado. Agora só tinha que esperar ela mover a próxima peça do tabuleiro.

A cidade estava mais cinza. Olhei para o céu. Seria um dia ruim.

Da janela eu a vi se aproximando pela calçada. Era uma mulher de extraordinária beleza. Parecia assustada. Passos largos. Quase correndo. Olhando pelas costas. Como se estivesse sendo perseguida. Como se estivesse fugindo de alguém.

Aguardei, agoniado, que a luz do seu apartamento acendesse. Foi então que o inesperado aconteceu. Blecaute. Caiu a energia do quarteirão inteiro. Inclusive do meu prédio. Breu total. Trovejava forte. As cegas, dei alguns passos para trás, para longe da janela, e acabei caindo sobre o tampo da mesa de vidro e me cortando todo. Que diabo está acontecendo comigo?

Na verdade, o corte maior fora na mão direita. A mão com qual eu trabalhava. O Lacerda iria ficar puto comigo. Quando a luz voltou, após alguns minutos, pude improvisar um curativo.

Quando voltei à janela, havia apenas duas peças novas no tabuleiro. Lá estava ela. Mas alguma coisa estava errada. Eu tinha de agir rápido. Contei os andares. Décimo andar. 10. Eu sabia. O número triangular. Chamado pelos pitagóricos de tetraktys. Um número místico uma vez que contém os quatro elementos: fogo, água, ar e terra. 10=1 + 2 + 3 + 4. Era hora de dar o próximo passo.

Fui até a entrada do seu prédio. Não tinha porteiro. A porta era aberta por um interfone que ficava na portaria. Quando uma mulher com um cachorro entrou no prédio eu me apressei e entrei junto. Obrigado, eu disse muito gentilmente. Eu agia como um novato. Ainda por cima entrei com a dona no elevador.

Nessas situações as mulheres sempre desconfiam de tudo e de todos. Sou um sujeito magro de aspecto inofensivo. O cachorro começou a latir para mim.

A dona saltou no 5º andar. O corredor do 10º andar estava deserto. Eu só precisava lembrar a posição da janela para descobrir o apartamento. Senti uma certa surpresa. A porta estava aberta. Não estava exatamente aberta. Estava encostada. Não ouvi nenhum barulho. Temi que ela já estivesse morta. Corri até o quarto. Abri a porta. A garota estava caída no chão e o sujeito agarrava a sua garganta. Gadunhei o cara pelo pescoço, levantei-o de cima dela, lutamos até a porta. Ele se desvencilhou de mim agarrando a minha mão machucada.

Depois que a luz voltou, após o blecaute, eu os vi brigando através da minha janela, e quando ele a agarrou pelo pescoço tive que intervir, antes que todo o meu trabalho fosse por água abaixo. Me deu uma vontade enorme de encher o cara de porrada.

- Parem! - gritou a garota, com uma arma na mão.

Ela apontava a arma para nós dois, para mim e para o outro sujeito. Estava confusa. Não sabia em quem mirar. Embora eu não acredite no acaso, tudo no planeta ocorre segundo leis e princípios que regem a forma como tudo se conecta, mesmo não conhecendo direito essas regras todas. O cara foi em direção a ela com um sorriso de desprezo.

- Atira, vadia.

A garota estava lívida, parecendo uma sonâmbula.

- Você já atirou em alguém antes?

Tuf. Tuf. Ela deu dois tiros na cabeça do sujeito. Esses caras são uns vacilões.

Lacerda era sócio do sugeito numa empresa de consultoria e me contratou para mata-lo, porque segundo Lacerda, o sujeito estava "fodendo os negócios". Levantei a ficha dele e descobri que o cara também estava transformando a vida da sua namorada num inferno. Odeio esse tipo de sujeito que bate em mulher. A segui algumas vezes e um dia flagrei-a entrando numa loja para comprar uma arma. Foi nesse dia que decidi me concentrar nela e montar todo o meu esquema.

Ao contrario dos meus colegas de profissão, não uso armas, minhas ferramentas são tempo e paciência. O segredo é agir no tempo certo. Tudo é calculado e planejado previamente através do Failure Mode and Effect Analysis, desenvolvida pelo Exército Norte Americano.

Liguei para o Lacerda.

- Serviço encerrado. O cara já está morto.

A garota estava sentada no chão, desesperada, havia acabado de estourar os miolos do namorado, não sabia o que fazer. Mas aquilo não era mais problema meu. Guardei o celular no bolso e fui embora.

Depois que minha mulher morreu, deixei de me interessar por outras mulheres, e aquela garota, que poderia muito bem ter saído de um livro de Era-uma-vez, conseguia me fazer sentir parte de um jogo sujo, algo que eu julgava, até então, impossível de acontecer.

Não sou um homem sentimental e nem dado a leituras de poesias. Leio apenas livros técnicos, por conterem verdades absolutas. Uma delas é de Pitágoras "Anima-te por teres de suportar as injustiças; a verdadeira desgraça consiste em cometê-las."

F Mendes
Enviado por F Mendes em 17/06/2011
Reeditado em 17/06/2011
Código do texto: T3040022
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