Seria melhor que você passasse por tudo isso de olhos fechados.

Seria melhor que você passasse por tudo isso de olhos fechados. Erguido um norte, caminharei agora ao sul de tudo isto aqui, assim que ele descuidar de mim ou eu conseguir me libertar...

De onde estou não consigo alcançar o chão, sequer os tênis esquecidos embaixo da cama. A janela está aberta, o ar meio frio de quase meia-noite entra procurando alguma novidade, mas já estou na mesma posição há umas três horas... na verdade não sei se três ou bem mais, porque o relógio não está mais ao alcance dos meus olhos, sei apenas que não há estrelas no céu, está tudo meio nublado, e a voz dele começa a se fazer mais próxima enquanto ele se arrasta pela parede do lado de fora.

- Jonas... Jonas... Consegue lembrar do meu cheiro, Jonas? Sente que estou mais perto?

- Jonas...

- Sente meus ossos estalando, Jonas?... Jonas...

Forço meus braços, mas estão presos, e não sinto mais meu corpo da cintura para baixo. Deus, o que fizeram comigo? Se ao menos eu pudesse ver meus pés, minhas pernas, meu saco! O que fizeram comigo???

- Jonas...

A voz é sibilante, não estranharia se pela janela entrasse nesse exato momento uma cobra, mas ele não age assim, está subindo lentamente enquanto escolhe a pior forma possível para aparecer diante de mim. Minha testa escorre um suor frio, e o barulho do ventilador me impede de ouvir o que estão cochichando do lado de fora do quarto. Lembro-me de uma mulher ajoelhada diante desta cama, fazendo uma oração em voz baixa, em murmúrio muito parecido com o das benzedeiras que eu conheci quando era menino... Nunca soube se os arrepios vinham dos espíritos ou de alguma coisa interna provocada em resposta ao murmúrio dos lábios daquelas senhoras, às vezes sentia o mesmo arrepio ao final de uma urinada ou quando estava sozinho em casa. Arrepios vão e vem na minha mente desde que acordei, sinto-o mais próximo da janela e não sei se o crucifixo mais à frente me protegerá do mal ou atrapalhará minha fuga. Temos alguém tentando fugir daqui de dentro e algo prestes a pular de dentro do breu para este cubículo, sob a luz e à vista de todos.

- Jonas... Estou chegando, Jonas... Não demoro...

Ele se arrasta pela parede quase em silêncio, é preciso concentrar bastante os ouvidos num pequeno barulho semi-imperceptível vindo dali, entra rapidamente e sem titubear, voa por cima de mim e ao encontro da lâmpada central uma pequena mariposa. Meu coração, que parecia até então em mórbida sintonia com o rastejar dele, agora entra em descompasso e respiro um pouco mais fundo para provar a mim mesmo que – Jonas... – era apenas uma mariposa, não passa de um pequeno inseto cego à própria busca por luz.

Meus dentes estão tensos, rangem mesmo que eu não queira, não se trata apenas de um temor, mas da luta que travo com o metal a que meus punhos estão amarrados com estas improvisadas algemas, eu não deveria estar aqui, a janela deveria estar bem fechada e está escancarada, esqueceram o rádio ligado e fora do ar, mas afinal quando voltarão? Estarão em quantos? Cadê a mulher da oração?

- Jonas... Meus ossos... Consegue ouvi-los... Eles estão estalando, Jonas... Estou mais perto agora...

A porta se abre bem no momento em que eu tento virar minha cabeça para a janela, alguém entrou e está em minha cabeceira, não consigo ver quem é mas reconheço a voz.

- É melhor rezar para que sua alma não encontre ainda hoje o caminho do inferno...

Uma grande e nervosa gargalhada, os passos em direção à porta, que se fecha. Estou novamente sozinho e ninguém deu atenção a mim. Se ao menos Abel estivesse aqui, certamente tudo se resolveria, ele tem as respostas de que eles precisam, não eu, eu sou Jonas! Jonas! – Jonas... Jonas... Não esqueço seu nome um único dia, Jonas... Olhe para mim!

Não alcançou ainda o topo da janela, ali não tem nada e está aberta a tudo que de mal possa cair aqui para dentro, preciso ao menos afastar esta cama da janela, mas como?

- Jooooooonas...

- Jonas...

Ele não vai me levar.

- Jonas. Jonas.

Não, ainda não, eu disse não. – Jonas, olhe para mim, Jonas!

- Não adianta, ele está em surto.

- Doutor, precisamos que ele fale algo sobre a morte de Abel Sanchez, temos fortes indícios de que ele atirou o corpo pela janela de seu apartamento ontem, precisamos agora de provas!

- Jonas...

- Jonas...

No exato momento em que o rastejar silencia do lado de fora da janela sinto um arrepio mais frio e um rosto sombrio se inclina sobre minha cabeceira, por sobre o ombro da pessoa de costas dou de cara com os olhos dele, chegou o momento derradeiro.