Na curva da estrada

“Sonhos maus não me acordem, forças malignas não me abordem.”

Rudyard Kipling.

Noite alta, estrada deserta.

Caminhoneiros passavam sem caronas, não havia sequer uma alma além dos veículos que passavam vez por outra..

A lua clara, quase dourada, revelava uma noite úmida e quente perfeita para uma comemoração , no entanto ouviam-se tristes ruídos, lobos choravam longínqua solidão.

Roger, o caminhoneiro, não havia carregado e passava desiludido.

Era quase meia noite e ele sentia os véus do vento escorrendo pelo pára-brisa.

Residia longe, ia ser um longo percurso.

Simpático, o rosto quase sem rugas revelava-lhe uns cinquenta anos, aspecto sereno, esbelto.

Pôs-se a cantar para espantar o medo e a solidão, medo das coisas de infância, assombrado por traumas adultos sempre em noites como aquela. Uma garoa fina se iniciou.

De repente o grito, o baque surdo, parou o grande veiculo arrastando os pneus com grande estrondo, desceu num pulo sem pensar, o vulto a frente do caminhão assaltou sua alma:

- Virgem santíssima, que diabos fazia você na frente garoto?

- Olá, sou Jimmy Torance. Preciso de carona, amigo, fui assaltado na periferia.

- Roger. - apresentou-se ofegante - Por todos os santos, quase te atropelo, essa não é uma boa noite pra morrer, não hoje.

Riram juntos.

- Um mau encarado me fez descer do ônibus e levou minha carteira, esse era o único jeito de fazer alguém parar.

- O que você fez é perigoso. Está com sorte, entre logo, eu te levo. O frio está aumentando.

O caminhão zarpou chacoalhando de frio sua carroceria. Nele seu Roger e o novo carona Jimmy, que parecia impaciente.

- Ainda estamos longe, filho, no meio do nada. Talvez cheguemos ao amanhecer. Não durma. Posso sentir sono também.

- O senhor é supersticioso? – disse Jimmy apontando o aglomerado de fitinhas e santos pendurados.

- Religioso. Nunca se sabe quando precisará da ajuda dos santos. Eles nos protegem das coisas ruins em noites como essa.

- Não acredito em nada disso, e o que quer dizer com “em noites como essa”?

- Ora Jimmy, é nesse caminho que aparecem coisas de outro mundo. Eu já andei muito por ai, meus olhos já testemunharam muita coisa, acredite.

Jimmy soltou um sorriso sem graça, não ia concordar com o velho, também não ia discordar.

O tempo passava tão devagar que era como se o relojoeiro-mor tivesse esquecido de dar-lhe corda. Então adormeceu, apesar da advertência.

O velho resmungava baixinho sabendo que seu dialogo havia sido trocado por um sono sem defesa, na estrada sonolenta prosseguia, então uma neblina densa quase esverdeada pairou sobre o caminhão, mas assim que chegou perto aquilo desapareceu, o velho esfregou os olhos e quase morreu de pavor, era uma senhora, vestida de branco ao vento, como uma noiva fantasma, aparecia em frente a cabina como se a neblina a tivesse formado, seu Roger teve que novamente brecar com grande resistência, no meio da fumaça de pneus queimados. Parado, a neblina dissipara, não havia nada nem ninguém.

- Que aconteceu? O senhor quer me matar de susto? Pensei que estivéssemos arrastando a barriga numa ribanceira!

- Besteira, moleque. Eu dei essa freada porque tinha alguém na frente, uma dama de branco. Parecia alma penada. Você dorme e ela aparece, era só o que faltava.

- Olha seu Roger, não engulo essas histórias de caminhoneiro.- tentou suavizar Jimmy – A essa hora nem um cachorro passa aqui ok?

Um cão atravessou as lâminas da luz dos faróis, o silêncio era uma mordaça, os sons análogos às cenas noturnas extraíram de seus interiores a incerteza e os medos enraizados mostravam seus frutos.

Como se tivessem pedras sobre o peito, um peso de angústia os envolveu.

- Deve haver uma explicação razoável para isso tudo, inclusive pra o que estou sentindo. - gaguejou finalmente Jimmy.

- Em minha opinião tudo começou quando você se jogou sobre meu caminhão.

- Ah muito obrigado, agora a culpa é minha.

- Olha, desculpe, não quis dizer isso.

Então viram o ser que pedia carona, era bonita e Jimmy insistiu para Roger parar.

A carreta então parou resmungando como seu motorista.

- Olá, obrigada . -agradeceu a loira de veste azul claro.- Estava perdida.

- Desculpe lady, mas só posso levar um por vez! – falou notando que a mulher estava descalça e seu vestido com a barra toda esfarrapada.

Ela então se aproximou e agarrando na mão de Jimmy soltou:

- Ei, você. Ele pode te ver.

Ao toque firme de Roger no acelerador o caminhão cantou pneus.

- Santo Deus, cara. O que foi isso?

- Por que você não acreditou em mim? Eu disse!

As poças que espelhavam na pista pareciam luas salpicadas de estrelas multicores. A chuva fina havia passado.

- Eu to em pânico. Roger, preciso de um favor.

- Fala logo, rapaz.

- Se algo acontecer comigo hoje tem que avisar ao meu pai que eu o perdoo, prometa.

- O que?

- Só prometa.

- Certo prometido. - respondeu Roger sentindo o frio esverdeado advindo dos olhos do rapaz. – Nunca se nega um pedido numa noite assim.

A noite permanecia fria enquanto as luzes neon atravessando a escuridão pairavam na pintura da cabina. O caminhão então viu a curva que o tragou na boca escancarada da noite.

A posição mudou, o som dos estouros dos pneus, o látex entre as nuvens de fumaça, o calor do fogo derretendo o frio noturno, um caos de bater de latas e ferragens dobrando-se. Aquele forte odor.

Súbito, um susto. Um baque. Um choque, quebrando o silêncio da madrugada.

Parte do barranco encontrando montículos de grama dispersa. O asfalto tinha um tom avermelhado na cor.

- Jimmy, onde você está rapaz? – indagou o velho escoriado se arrastando.

- Seu Roger, estou aqui, acho que quebrei meu braço.

- Graças a Deus você está bem, vamos pedir ajuda. Venha.

Chegaram a frente de um boteco de periferia, Roger telefonou, o resgate estava a caminho. Voltando ao local do acidente seu Roger e Jimmy mergulharam num momento de mudez, que foi quebrado quando Jimmy viu uma enorme poça de sangue, ao acompanhá-la havia um corpo.

Seu corpo.

Roger alarmado olhava o ex carona no chão, e ao mesmo tempo para o amigo de pé em sua frente.

- Eu não acredito. Sou tão jovem. Não, eu não posso estar morto, não ainda!

- Creio que sim amigo. – concluiu Roger.

- Por favor eu te peço, não posso ir sem estar em paz, sem que ele saiba que me importo e que ele fez tudo que pode.

- Tudo bem. Eu entendo.

Então uma luz dupla fulgurou, a segunda era de um veiculo que parava nesse instante.

Jimmy fora levado ao hospital em coma. Quarto 25.

Ao lado de sua cama Roger pensava no destino e seus desígnios, até que chegou o dia em que visitou os seus pais para cumprir sua palavra.

- Jimmy me pediu pra falar que o quer muito bem e que o perdoa. Que o senhor fez tudo que podia.

A sua frente um casal abatido ouvia tudo com atenção. Ele se despediu.

- Querido. - enfim disse a mulher comovida – Por que ele esta dizendo isso se nosso filho esta em coma há semanas? Como?

Ninguém se atreveu a falar.

Helena Dalillah
Enviado por Helena Dalillah em 03/07/2011
Reeditado em 06/12/2019
Código do texto: T3071916
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