Do outro lado

“O adormecer da razão gera monstros.” Goya.

Ethan dormia pesado; Shirley ao seu lado fitava seu sono. Parecia sereno.

Em seu sonho mergulhava num límpido rio de águas tranquilas.

Todo o azul cristalino e calmo regia sua alma. Mas os tons iam se misturando.

De repente, algo inconcebível; se via numa violenta perseguição, fugia das flechas inflamadas, num sonho que se tornava pesadelo, enquanto Shirley o fitava, parecia sereno.

- O que eu fiz? – gritou no meio de explosões, luzes hipnóticas lhe cegando.

Sua pressão aumentava, corria, sentia dor, não era devaneio, era como estar em sã consciência. Fugia da perseguição sedenta por seu sangue, paredes manchadas, árvores turvas, tentava a evasão.

- Eu não quero morrer. – soltou sentando- se na cama.

- Você esta bem, Ethan?- perguntou a mulher preocupada.

- Não.

- Foi um sonho, calma. – abraçou-lhe terna.

A tarde a esposa foi fazer compras, o marido preferiu ficar só, refletindo.

Deitou-se, enquanto o relógio movia-se ele adormecia e entrava em sono profundo.

- Atravesse. – dizia uma voz ecoante enquanto ele se via num túnel de fumaça que parecia infinito. – Atravesse o outro lado.

- Não. Eu não quero morrer.- sussurrava ao enxergar focos de luz e mais nada.

Então saltou por onde havia entrado e isso o raptou de seu sono.

Arfante e exausto, ligou o televisor para tentar esquecer sua tortura.

Shirley chegou no mesmo instante do supermercado, e olhando seu estado foi guardar as compras, enquanto ele via a previsão do tempo.

- Chega uma massa de ar quente, possíveis pancadas de chuva no fim de semana, e você Ethan vai morrer essa noite.

Mudo desligou a TV num tapa.

- Querido. – chamou Shirley da despensa.

A televisão ligava novamente e na tela se via um túnel iluminado:

- Se afaste e siga a luz, Ethan. – ordenou a forte voz de outrora.

- O que foi? - a esposa adentrou a sala, errante ele se desvencilhou dela e correu desenfreado.

No caminho da rua deserta queria não pensar, mas sua mente era hiperativa.

Ao esfregar os olhos porem, percebeu com espanto que o cenário da rua se tornava uma densa floresta, o forte odor da terra úmida invadia suas narinas. Um verde intenso quase lhe cegava, e contornando a paisagem uma cama no meio das arvores.

Estava dormindo?

Novamente uma voz lhe guiava.

- Ethan aproxime-se.

Ao chegar perto do leito viu a si mesmo dormindo.

- Pode ver? É assim que você vai morrer.

No mesmo milésimo de segundo Ethan foi transportado de volta a rua, e quase em choque rumava para casa desligando-se de tudo ao redor.

- Ei tio, tem grana? – pediu um sujo andarilho na calçada.

- Estou sem carteira.

- Não importa, você vai morrer esta noite.

Com os olhos saltando das órbitas se pôs a correr, as vozes pairando em sua mente.

- Estou ficando louco.

Adentrando em sua residência, Shirley não estava.

Horas depois ela voltava trazendo o jantar.

- Você está melhor?

- Sim, - não queria te preocupar mais - E quer saber? Não vou dar atenção a esses sonhos, devo ignorar tudo isso e voltar com o remédio.

- Mas você disse que não queria mais, que te fazia mal, amor.

- E me fez mal interromper tudo de uma vez, vou conversar com o médico na segunda, Shirley.

- Você tem razão. Eu te apoio no que decidir.

- Obrigado, sei que me entende. Vou ficar bem agora, tenho certeza.

Na verdade ele temia as próprias palavras. Aquilo não parecia uma simples abstinência de ansiolíticos.

Passaram a tarde tranquilamente, sem contratempos.

Ignorar tudo aquilo fez bem aos dois.

Ele havia passado uma fase depressiva e muito difícil após a morte do pai, mal puderam aproveitar.

Nesse dia conversaram, beberam vinho, ela cozinhou pra ele, assistiram seu programa favorito, e fizeram amor como nunca no fim de tarde.

Ele não se lembrava qual fora a última que a tocara tão intensamente e que tivera desejo sem pensar em nada mais. Foi uma tarde especial.

Então a noite chegou, a hora mais temida.

Entraram no mundo dos sonhos de mãos dadas.

Ele novamente adentrava o túnel. Escuro, quente e incrivelmente sereno.

Tudo ficava escuro e tão escuro que ele perdeu o fôlego.

Ouvia o sussurro de outrora;

- Pule. Chegou sua hora.

- Não.

Até que perdendo o chão percebeu que estava afundando num buraco de areia movediça profundo, quanto mais lutava mais sucumbia, o coração a mil, uma agonia sem par.

- Não, por favor gritava em desespero - Shirley! Me deixa dizer adeus. - implorou enquanto caia daquele desfiladeiro sem fim.

Como que ouvindo o seu pedido algo o direcionou, e ele saindo do sonho caiu direto em sua cama. Consciente, aterrorizado.

Era a última vez. Molhado, pálido e arfante gritou em desespero. Shirley despertou assustada:

- Amor, o que foi? Tá se sentindo mal?

- Vou morrer Shirley, ouça, tenho que partir.

- O que? Você não está bem, quer o seu remédio?

- Não, meu amor, eu não vou precisar mais dele.

- O que ta dizendo? - perguntou comovida ao extremo.

- Meu amor, me abraça, eu não tenho escolha, será nosso último.

Ele levantou a mão, e abriu perante ela, em sua mão uma folha inteira de pessegueiro ainda verde e fresca, como que recém colhida. Shirley empalideceu, sabia que não haveria forma dele ter pego aquilo aquela hora sem sair pra longe.

Ela via verdade em seus olhos, e via que algo realmente estaria acontecendo. Sentia algo que os envolvia, mais pesado que os laços de um destino. Algo muito maior, e cruel.

O abraçou chorando.

- Não, Ethan, não vou ficar sem você.

- Eu te amo, amor, dorme comigo.

Ele fechou os olhos exausto, agora respirava baixinho, ela o acompanhou e pegou no sono novamente.

Ethan adentrava o túnel de antes, dessa vez mais claro e brilhante.

A voz que o conduzira agora estava personificada na forma de um senhor que o aguardava na ponta:

- Ethan, precisa atravessar o outro lado.

- Mas por que e quem é você?

- Sou seu destino, é inevitável, se não ir agora mais cedo ou mais tarde será arrastado para lá.

- Por que?

- Porque o seu destino traçou.

- Eu não tenho escolha?

- Não.

- Isso vai doer?

- Por menos de um segundo, e não sentirá mais nada.

- Vou sentir falta do meu mundo.

- Não, não vai.- riu o destino abertamente.

Aceitando finalmente Ethan se aproximou do abismo luminoso e saltou se perdendo do outro lado, consumido pela luz.

Já não mais existia.

Ao lado de Shirley soltou seu ultimo suspiro. A esposa como se sentisse, despertou.

O chacoalhou, chamou.

Em vão, Ethan já era cadáver.

Inconformada ela chorou sobre ele.

Ele sabia, ela sabia, sua hora era consumada.

Observou seus traços serenos, até mesmo agora.

Tendo um sobressalto se levantou, e retornou ao dormitório com algo nas mãos.

Uma faca.

Então forçadamente se conduziu para fora de si.

Dois cortes foram suficientes, e deitou-se junto a ele, como teria de ser.

A imensa luz penetrava-lhe os olhos.

Enfim entrou no túnel, o avistou na entrada, e o atravessaram juntos, de mãos dadas até o outro lado.

Helena Dalillah
Enviado por Helena Dalillah em 03/07/2011
Reeditado em 09/01/2020
Código do texto: T3071917
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