O SEQUESTRO

         
 (A uma senhora a quem muito admiro.)

          A parapsicologia diz que o nosso cérebro é capaz de perceber emissões extra-sensoriais advindas de outro cérebro, ainda que distante no tempo e no espaço, e que essa interação se intensifica à medida que as mentes se aproximam. Talvez seja isso que, subitamente, desencadeia em mim a lembrança de um fato há muito acontecido e do qual não tenho nenhum prazer ao reavivá-lo na memória. Entretanto, o meio da noite, o silêncio do hospital, as longas horas do plantão incitam-me a reviver todos aqueles detalhes que até julgava esquecidos. Eu devia ter uns dez anos de idade quando aquele homem entrou, pela primeira vez, em nossas vidas. Nossa casa era grande e minha mãe hospedava três ou quatro pensionistas, geralmente caixeiros-viajantes que permaneciam na região por alguns dias. Meu pai só aparecia em casa de quinze em quinze dias, pois tinha assumido um emprego público em outra cidade. Morríamos de saudade dele, meus dois irmãos e eu, pois ele brincava e trazia presentes: a mim dava-me livros que eu lia avidamente, toda vez que voltava. Então, minha mãe parecia outra pessoa, tão cheia de satisfação com a presença dele. Mas eram tão poucas horas. Já no domingo à noite ele se despedia, os olhos vermelhos, contendo as lágrimas. A mãe ficava ali, de pé na soleira, o rosto molhado e o sorriso apagado.
         
      As gentilezas e as graças do homem recém-chegado tinham trazido um pouco de alegria e conforto à minha mãe, e também a nós crianças. Oferecia doces para os menores e a mim presenteava com coisas de menina: um pente para os cabelos, uma caixinha de pó de arroz, um espelhinho redondo. Não era um inquilino como os outros. Ficava a semana inteira na cidade e de sexta a domingo se ausentava. Nas horas ociosas em casa, começou a fazer pequenos serviços: trocava uma lâmpada, desobstruía uma calha, substituía uma telha quebrada. Minha mãe agradecia com sorrisos e ele a elogiava, a princípio, suas habilidades culinárias e, mais tarde, o timbre incomum de sua voz, ou o modo elegante de como ela andava

          Meu pai nunca o viu. Sabia dele porque falávamos constantemente no seu Luciano — esse, o nome do homem — e no modo engraçado de como fazia o volume da barriga se tornar um tórax poderoso e depois sumir por completo sob a camisa. Havia em seu peito a tatuagem de um dragão, acho, com um tapa-olho de pirata que se retorcia comicamente quando ele repuxava os músculos peitorais. Falávamos da pessoa prestativa que era e de como ajudava a mãe nos pequenos afazeres. Meu pai ouvia calado, um olhar inquisitivo dirigido à minha mãe. Depois escutávamos do nosso quarto, que era parede com o deles, o pai perguntando coisas e a voz chorosa de minha mãe tentando acalmá-lo.

          Não sei como as coisas progrediram entre seu Luciano e minha mãe, mas o fato é que um dia ele se declarou a ela e se disse absolutamente apaixonado. Minha mãe ficou horrorizada com a revelação e exigiu que ele deixasse a pensão imediatamente. Eu os ouvi discutindo, minha mãe lhe assegurando que amava o marido e que jamais passaria pela cabeça dela uma barbaridade como a que ele estava propondo, que fossem embora juntos, que levasse os filhos, ele tinha dinheiro, e minha mãe dizendo não, não e não. O homem disse que tinha direitos, que não sairia logo como ela exigia, pois que tinha um haver de quinze dias já pagos. Minha mãe nos instruiu a não dar mais uma palavra com o homem, nem tocar mais no nome dele, ou rir das gracinhas que ele viesse a fazer, ou ela não hesitaria em nos surrar se desobedecêssemos. Foi um alívio quando ele silenciosamente e com uma expressão carrancuda deixou a casa naquele final de semana. Não voltou na segunda, nem na terça e minha mãe acreditou que tudo se resolvera. Mas estava enganada. Quinta de manhã ele apareceu e disse à minha mãe que viera apenas para ultimar uns assuntos na cidade, que só ficaria mais aquele dia e que iria embora de vez pela manhã do dia seguinte. O dia transcorreu normalmente: a mãe nas lides do lar, os meninos trepando nas árvores do quintal ou jogando bola na rua e eu ocupada entre ir à escola, fazer a tarefa solicitada pela professora e pajear o menorzinho. O homem realmente se ausentara e não o vimos mais no decorrer do dia. Tarde da noite fomos abruptamente despertados pela minha mãe, aterrorizada, o homem por trás dela com uma arma apontada em suas costas. Deixou claro que atiraria nela se produzíssemos qualquer ruído ou se não fizéssemos o que ele ordenava. Minha mãe pegou o caçula de três anos no colo e eu dei a mão para meu irmão dois anos mais novo do que eu e saímos na escuridão da rua. Fomos colocados na parte traseira de um furgão sob a ameaça de levar um tiro através da grade quem abrisse a boca. A mãe encostou-se a um pneu e acomodou os meninos em seu colo, semi-adormecidos e inconscientes do que estava acontecendo. O furgão rodou muitas horas antes que o cansaço também me dominasse e eu dormisse. Acordei com o estrondo de um gigantesco portão de ferro batendo contra os pilares. Tínhamos entrado num imenso terreno murado cujo topo mal se divisava na escuridão, de tão alto. Fomos empurrados para dentro de uma casa velha, depois jogados e trancados em um porão escuro, úmido e cheirando a bolor. Muitas horas depois, acordamos; os meninos choramingando de fome e sede. A única luminosidade agora era a luz do dia que mal e mal penetrava por uma grade de ferro no alto da parede oposta à escada. Embaixo da escada havia um vaso sanitário e uma pia habitadas por aranhas e lagartixas. Em um dos cantos do cômodo, um velho colchão de capim, manchado e rasgado em alguns pontos, era a única coisa que havia ali além de nós. O retângulo de luz projetado no chão cruzou o piso imundo lentamente e começou subir os degraus da escada. Meus irmãos tinham parado de chorar e dormiam novamente no colo de minha mãe. De repente, ouvimos o barulho de ar sendo expelido da torneira sob a escada e logo em seguida o ruído da água jorrando por ela. Corri para beber água, mas fui contida pela minha mãe que se levantou num pulo ao perceber a chegada da água. Com a mão ela lavou a bacia coberta de poeira e teias, deixou esgotar bastante água e só então a experimentou. Então permitiu que bebêssemos usando as mãos em concha. Minutos depois ela rasgou um pedaço da parte de baixo do colchão e limpou como pôde o vaso para que pudéssemos usá-lo. Minha mãe concluiu que uma pessoa tinha aberto o registro e, portanto, alguém havia chegado a casa. Subiu a escada e esmurrou a porta gritando desesperadamente por socorro. Eu e meu irmão começamos também a gritar freneticamente. Então a porta se abriu e seu Luciano berrou “Calem a boca. Calem a boca todos vocês”. Puxou minha mãe brutalmente para fora do porão e trancou de novo a porta. Ficamos ali tremendo de medo e fome, agarrados uns aos outros, sem o amparo de nossa mãe, junto da qual sempre nos sentíamos protegidos. O seu Luciano não era mais aquele homem engraçado que fazia aquele bicho esquisito dançar em seu peito. A silhueta dele no vão da porta, a cara medonha a berrar contra nós eram as de um ser terrível e ameaçador, mais aterrador do que todos os monstros, gigantes e bruxas dos livros que eu já tinha lido. O facho de luz do sol havia se imobilizado no terceiro degrau, se estreitado e então desaparecido, deixando o porão frio e obscuro. Encolhidos no colchão, já quase não divisávamos a escada quando a pesada porta se abriu e minha mãe desceu trazendo em uma das mãos um embrulho com comida e na outra um candeeiro de querosene. Somente depois de aplacada a fome de todo mundo é que a mãe tentou explicar o que estava acontecendo, mas eu já percebia que ela estava minimizando a gravidade da situação para não nos assustar. Dizia ela que teríamos que passar um tempo naquela casa, não sabia quanto. Que o seu Luciano queria que todos fossem bonzinhos, que não gritassem e que de vez em quando iria deixar a gente subir. Mais tarde a porta do porão se abriu de novo e o homem empurrou escada abaixo mais um colchão velho e um pacote que continha peças de vestir e de cama. Naquela segunda noite dormimos melhor, eu e meu irmão de oito anos no colchão maior forrado com um lençol limpo e a mãe e o pequeno com ela no colchão de solteiro. No dia seguinte minha mãe e meus dois irmãos foram levados para cima e eu permaneci presa no porão sozinha e amedrontada. Um pouco mais tarde a porta se abriu e minha mãe desceu trazendo leite e pão e também atarraxou uma lâmpada num soquete ao lado da escada, aposentando o candeeiro atrás do vaso sanitário. Pediu que eu rezasse muito enquanto estivesse ali sozinha porque seu Luciano não queria todos lá em cima. 

          Os meninos voltaram à noite. Minha mãe só veio bem mais tarde, quando somente eu estava acordada. Seu rosto estava desfigurado de tanto sofrimento, seu vestido rasgado e uma de suas têmporas arroxeada. Ela me abraçou e começou a chorar baixinho, soluçando e murmurando “Deus nos ajude”. “Mãe, o que está acontecendo? Por que estamos presos aqui?” eu perguntava também contendo choro para não despertar os menores. “É isso mesmo minha filha, estamos presos aqui, não sei onde e nem por quê. Não sei o que será de nós.” No outro dia subimos minha mãe, meu irmão caçula e eu. O do meio ficou trancado como eu ficara no dia anterior. Minha mãe disse que eu podia sair para o quintal e se pôs ela mesma a limpar a casa e remexer na cozinha com o filho no colo. O homem depois de ter aberto o porão para sairmos, tinha guardado a chave no bolso. Vimos quando ele deixou a casa e ouvimos o pesado portão de aço correr sobre o trilho e ser fechado do lado de fora.. Corri para dentro gritando “vamos fugir, mãe, vamos fugir”. “Fugir como, filha?” ela respondeu, desalentada. “Não podemos. Não sabemos onde estamos, não temos dinheiro, e não podemos deixar teu irmão lá no porão. Além disso ele disse que se tentarmos qualquer coisa ele vai machucar a gente... então filha, por enquanto não faça nada, não atire pedras por cima do muro, não esconda nada... ele verifica cada coisa quando chega, a única faca tem de estar no faqueiro, os dois garfos e a colher, os pratos e panelas, tudo tem de estar à vista sobre a pia. Portanto não mexa em nada. Vamos pensar em alguma coisa, mas com calma, está bem?”

          A velha casa ocupava uma pequena parte do terreno cujo muro ao redor era mais alto do que ela própria. Ao lado dela havia um barracão de madeira construído sobre tocos a mais ou menos um metro do chão: uma espécie de tulha ou celeiro, trancado a cadeado Ao rodear a casa descobri a pequena grade do porão, escondida entre os arbustos coroas de cristo na beira da parede. A cerca de espinhos fora plantada também em todo o perímetro do muro e só se interrompia no espaço do portão. Chamei meu irmão, ele ouviu, perguntei se ele estava com medo, disse que não, começamos a conversar ali por aquele buraco, mas não conseguia vê-lo direito. De perto da parede não havia ângulo para enxergá-lo, se ele ficava do lado oposto, a penumbra o escondia. Depois de acalmá-lo, prossegui na investigação do local. Logo cheguei à conclusão que não conseguiria olhar do alto para fora dos muros, pois não havia uma única árvore, nada que pudesse servir de escada, nem pedras para atirar por cima do muro como advertira não fazer minha mãe. Mas, na ponta dos pés, consegui vislumbrar o lado de fora, olhando pela fresta entre o portão de ferro e o batente, logo abaixo da tranca externa. No meu diminuto campo visual divisava-se uma rua de chão batido que cruzava a frente da propriedade, depois se estendia uma vasta capoeira recém queimada e, bem ao longe, sobressaíam os telhados de duas ou três pequenas casas afundadas no declive do terreno. Fiquei muito tempo de olhos colados ali, até doer a cara na moldura do portão e ter câimbras nas pernas. Não passou ninguém pela rua, a pé ou de qualquer tipo de veículo. Grudei minha orelha nos muros laterais, no muro do fundo e nada. Não se ouvia ruído de gente nos arredores. Só entrei na casa quando minha mãe me chamou de volta e mandou que eu ficasse ali pela cozinha e cuidasse do pequeno que brincava como se estivesse em sua própria casa. O homem poderia chegar a qualquer momento, dissera minha mãe. Ela havia preparado o jantar e insistiu que eu comesse logo enquanto ela alimentava também o menino. O homem chegou quando já havíamos acabado e foi logo gritando com minha mãe para levar os pirralhos para baixo. Usava um paletó marrom e por baixo dele um coldre com a mesma arma que tinha usado para nos assustar no dia em que nos trouxera para o cativeiro.

          Minha mãe nos levou para baixo, acendeu a fraca lâmpada e instruiu-nos para ficarmos quietos. O pequeno logo dormiu. Meu irmão e eu ficamos conversando baixinho, trocando ideias sobre o exterior. Ele também sondara o quintal, tinha olhado pela fresta e, enfim, chegado às mesmas conclusões que eu.

          Os dias se passaram sem que vislumbrássemos um meio de escapar dali. Porém, devagar, observando a rotina do homem, e sem que a mãe soubesse, meu irmão e eu entabulamos um plano. Mas era preciso que ambos estivéssemos fora da casa para levá-lo a cabo. Meu irmão havia achado semi-enterrado perto do celeiro um pedaço de ferro de construção e com ele passamos, dia após dia, a escavar a base dos ferros da grade do porão por onde, no dia da fuga, ele pudesse passar. Com esse mesmo pedaço de ferro abri um vazio por trás da cerca de espinho, bem junto ao batente do portão, suficiente o bastante para que meu irmão pudesse se esconder junto ao pilar. Geralmente o homem se distraía nesse momento, pescando a chave do cadeado em seu bolso. Mas havia um problema: como alcançar a abertura do porão pelo lado de dentro? Subir nos colchões? Eram muito moles. Usar os lençóis e cobertas? Não dava. Estavam podres. Escavar a parede para escalá-la. Também não dava. A mãe logo desconfiaria do plano. Uma noite meu irmão trouxe a solução. As tábuas do assoalho do celeiro eram ligeiramente separadas entre si e ele viu lá dentro, pela fenda, um pedaço de corda. Só precisávamos de alguma coisa para laçá-la. Naquela noite ao abraçar minha mãe retirei um grampo de aço dos cabelos dela. Com a ramona e os cadarços do sete-vidas, meu irmão engenhou um gancho e conseguiu, em seu dia de liberdade, fisgar o pedaço de corda de mais ou menos duas vezes a altura entre o piso e a grade do porão. Arrepia-me lembrar a tensão daquele dia em que pusemos em ação nosso plano de escapar daquela casa maldita. Havia chovido durante toda a tarde e o homem só chegara bem tarde. Meu irmão, que havia subido pela corda e saído pela abertura da grade, ficara escondido atrás da moita de espinhos por pelo menos duas horas, molhado e com frio. Mas foi com alegria que vi seu vulto girar para fora grudado no pilar e sair segundos antes do ferrolho encaixar na alça do batente. O homem ainda levou alguns segundos para passar o cadeado e dirigir-se para dentro de casa. Imediatamente exigiu que minha mãe me levasse para baixo com o menorzinho e lá nos deixasse. Minha mãe nem teve tempo de descobrir que o volume sobre o colchão era apenas roupas e travesseiros. Quanto tempo levaria meu irmão para alcançar as casas além da capoeira, contar nossa história, convencer alguém a acionar a polícia e nos livrar do cativeiro? Pareceu uma eternidade até o momento em que ouvi sons horríveis vindo de lá de cima. Eram lamentos da minha mãe e gritos... do meu irmão. Alguma coisa tinha dado errado. Logo a porta se abriu e o monstro me agarrou e me levou para cima, xingando e me arrastando pelos cabelos. Minha mãe e meu irmão estavam amarrados em cadeiras, feridos no rosto e nas pernas. Também fui presa a uma cadeira, atada com os braços para trás. Minha mãe gritou horrorizada quando viu o homem pegar a chaleira de água fervendo e despejar sobre meus braços. Desmaiei na agonia da dor. Mais tarde acordei no porão. Estávamos todos lá. Minha mãe cuidando como podia do rosto machucado do meu irmão e de seus próprios ferimentos. O pequeno chorava muito e seu corpinho cada vez mais debilitado começava a arder em febre. Sobre meu braço queimado minha mãe tinha enrolado um trapo úmido. O homem tinha vistoriado o porão e levado a corda, o ferro, os colchões e nossas poucas roupas. A abertura tinha sido bloqueada com alguma coisa que tornava o ambiente mais aterrador, como um túmulo. Meu irmão tinha alcançado a casa do outro lado e tinha falado com o morador que era um policial. Mas ao invés de tomar providências, o soldado o trouxera de volta para a casa dos muros: para a casa do Sargento Investigador Luciano, ele se lembrava. Minha mãe parou de chorar, seu rosto inchado de pancadas tornou-se duro, tomado de ódio e, de súbito, levantou-se, foi até o vaso sanitário e verificou se aquilo ainda estava lá. Sim, o candeeiro estava lá e estava quase cheio de querosene. A caixa de fósforos estava enfiada entre o vidro e o pavio, do mesmo modo como ela o tinha guardado. Ela parecia outra. Ela disse: “Ou saímos ou morremos todos aqui.” Acima do batente da porta do porão havia uma saliência de concreto de mais ou menos a largura de uma viga que cruzava toda a parede, e sob a laje, um baldrame de sustentação. Era possível para uma criança agachar-se sobre a saliência e, inclinando o corpo para frente, apoiar-se no baldrame. Minha mãe quis que subíssemos os dois. Um ficaria com o querosene e o outro com os fósforos. Ela havia quebrado a caixa e ficado com alguns palitos e uma das bandas de atrito. Tínhamos que jogar o querosene na cabeça e nas costas do homem, usando só uma das mãos.

          Minha mãe começou a bater na porta e a xingar coisas que na época eu nem sabia o que era, berrava a todo pulmões que ele era um brocha, impotente, covarde, que a mãe dele era uma puta da zona e coisas piores. Ela pressentiu que ele se aproximava, deu um sinal de alerta para nós e afastou-se para um degrau mais abaixo na escada. Ele escancarou a porta, possuído de raiva, gritou que ia machucá-la mais, que ia matar todo mundo, deu um passo para descer a escada e sentiu a querosene ensopar seus cabelos sebosos e sua camisa velha. Ao mesmo tempo minha mãe riscou um fósforo e o ameaçou. Ele riu dela e de sua ameaça tão tola e deu mais um passo para pegá-la. Nesse instante uma tocha incandescente caiu sobre sua cabeça e incendiou seus cabelos e suas vestes. Ele caiu da escada tentando desesperadamente apagar-se. Minha mãe correu, pegou o menorzinho, ajudou-nos a descer da viga, saímos e trancamos a porta do porão por fora enquanto o homem se debatia em chamas. A chave do cadeado estava sobre a mesa da cozinha, cruzamos o quintal, esquecidos de outras dores, abrimos o portão de ferro, rodeamos aqueles muros e entramos pelo mato, sujos, molhados e com medo de que alguém nos visse e nos fizesse voltar como haviam feito com meu irmão no começo da noite. Era de madrugada quando chegamos ao limiar do mato e avistamos a torre de uma igreja ao longe. Uma estrada barrenta, ladeada aqui e ali de casas silenciosas e escuras, levava a uma cidadezinha que acordava com o cantar de galos. Chegamos à igreja e batemos na casa do padre. Quando nos viu naquela penúria, naquela sujeira, como se fôssemos quatro assombrações, levou um susto. Minha mãe rapidamente contou o que acontecera conosco, e ele, estarrecido por saber que aquilo acontecia em sua paróquia, nos convidou a entrar e contar tudo direitinho. Na casa do padre ficamos durante todo o dia, um médico nos atendeu, medicou o menorzinho, deu pontos em nossos ferimentos, vestimos roupas novas, o delegado foi chamado e tomou nosso depoimento, outro médico veio para exames de corpo de delito, fomos fotografados e, enfim, fomos colocados num automóvel que nos levaria para nossa cidade...

          A sirene da ambulância do hospital interrompe essas tristes lembranças e indica que tem trabalho chegando. Vejo pela janela da sala do plantão um velho sendo colocado na maca e transportado às pressas para dentro da emergência. É minha vez. Desço para atender, é uma parada cardíaca, abro a camisa do velho, e descubro num átimo, o medo doentio e inexplicável que sempre tive desse bicho: sobre o peito enrugado, coberto de escassos pelos amarelados, vejo, paralisada de horror, a tatuagem de uma enorme lagartixa de olhos pretos esbugalhados. Não era mesmo um dragão caolho.


 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 13/07/2011
Reeditado em 01/02/2012
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