Sobrevivente

Seria uma escola, esse lugar de aparência apática? Seríamos nós apáticos, nesse ambiente com sensações não percebidas, pelo embrutecimento da sensibilidade? Não sei que dia é hoje, nem o que foi ontem, muito menos se haverá um amanhã.

Se existe uma rota, preciso encontrá-la, para ter outra opção, mesmo que não leve a parte alguma, qualquer saída será uma solução, diante da insolucionável vida a que sobrevivo. Por isso, todos os dias eu procuro frestas, atento aos movimentos ou falta deles, um dia eu hei de encontrar o que procuro ou ser encontrado pelo que nunca usei imaginar.

Um muro. A estatura é baixa, por trás uma vegetação conveniente para o sentido inconveniente que tenho a ousadia de pensar, a idéia germina e volto para compartilhar. Não posso contaminar em grande escala, só divulgo aos mais íntimos.

Esperamos anoitecer, com passos de quem não tem pretensão alguma, caminhos na direção daquela mureta. De repente um blackout. Saltamos o pequeno obstáculo e seguimos porque aquele terreno inclina com folhas, lama, buracos em que os pés afundam. Pés pequenos, buracos rasos que parecem fundos.

Vamos em fila desordenada, seguimos aquele que guia, mas ele, como todos os outros, é manobrado pelo medo, e esse sentimento, só tem como direção a fuga daquele que sente, por isso em dado momento me perdi do grupo.

Estava escuro, aquele chão com buracos rasos, aquela vegetação densa, só consegui encontrar saída quando o sol se fazia presente. Minha visão contemplou um pesadelo ao acordar daquele sonho de fuga.

Apenas uma grade me separava daquela outra escola, meu olhar cruzou com o de um oficial. Aquela roupa longa, grossa e preta, aqueles óculos redondos, curtos e finos. Olhou diretamente pra mim, me encarando. Eu feito estátua vivia, não desviei, não, no meio de folhas, queria ser uma folha humana, perdida no meio das outras.

As crianças vestiam roupas iguais, os gestos eram iguais, não tinham individualidade, ou antes, todas tinham a mesma individualidade. Meninos, meninas, sem sexo, só gestos repetidos, ensaiados, como num espetáculo de marionetes eu que eu conseguia claramente enxergava as cordas e quem as manipulava.

Entre o meu olhar e o dele, apenas a grade, soldados transitavam indiferentes em meio aquelas crianças diferentemente iguais. Não era apenas a grade, existiam as folhas, elas grudavam em mim, por magnetismo meu querendo grudar a elas.

- Ei, H.!!! – uma voz que soa conhecida, me chama baixinho, talvez um sonho, pois tenho que certeza que aqueles olhos por trás da grade me viram.

Uma agitação, soldados correndo, o oficial desviou o olhar e nesse instante senti que ele me perdeu, as crianças ainda que desordenadas, pareciam organizadas em sua desorganização.

Era F. ela me chamava realmente, encontrando-me. Justo eu que havia me perdido do grupo por mover-se com medo, agora era encontrado porque paralisava de medo. Segui seu rastro por caminhos não tão escuros, por mais densa que fosse a vegetação, o sol ainda conseguia penetrá-la.

Fui levado onde estavam os outros, uma espécie de vala, abaixo de um chiqueiro, lama misturada a fezes e nós ali, misturados aos excrementos. Nós dois ficamos no patamar de baixo, como se fosse uma beliche maravilhosa, em cima não ouvia as vozes dos outros, mas sabia que estavam lá. O que fez com que me perdesse deles, agora fazia com que se calassem.

F. estava nua, seu corpo ganhara um tom mais amorenada, talvez devido a exposição habitual ao sol, os pequenos seios ainda se faziam rígidos, também pudera, era apenas uma menina, como eu um menino.

Não, não éramos mais. Nem homens e nem mulheres, o gênero diluiu. Naquele momento só éramos merda, lama e medo. Ela começou a falar, sua voz de entonação grave. Pedi que deitasse ao meu lado, queria abraçá-la. Ela começou de novo a falar. Pedi silêncio, seu timbre era audível além do sussurro, não deveríamos arriscar. Ela tentou prosseguir, meu coração disparou.

De repente, se calou, ouvíamos vozes, passos. Não eram vozes de criança. Um olhar atrevido enviesado conseguiu ver aquele silhueta, bem nítida, soldado de roupa preta, capacete com forma arredondada moldando o crânio. Eles nos procuravam. Não, eles nos caçavam.

F. sauí dos meus braços subitamente, correu com passos silenciosos por entre aqueles caminhos de folhas, disse em alto e bom tom a mesma expressão que dissera ao me encontrar próximo a grade, “Ei!”.

Só ouvi o som de dois tiros de pistola, nenhum gemido. Talvez não a tenha acertado. Mas os soldados pareciam não mais desejar desperdiçar munição, apenas dois projéteis foram suficientes.

K. e P. também se moveram da parte superior desse maldito beliche. Percebi não pelo barulho que fizeram, pois continuaram mudos. Detectei o movimento ao ouvir as rajadas de metralhadoras, dessa vez foram quatro, os números se multiplicaram. Quatro vezes, quatro rajadas, não sei quantos projéteis. Continuaram se emitir nenhum som após as rajadas, mudos como quando os havia encontrado com F., um dia após eu ter me perdido deles porque sentia medo.

Todos se foram, eu estou aqui, sinto os soldados em volta, procurando, eu afundado na merda e na lama, afundo o rosto para não ser visto, até tento não respirar. Mas agora, sozinho, acompanhado pela presença daqueles que querem me encontrar e do meu desejo de não ser encontrado por eles, a única companhia que sinto viva, é a do medo.