Olívia de Bordeaux, Romance, Cap. III

Com tudo acertado para a edição do livro, Olívia marcou o lançamento para as 19h de uma sexta feira, em fins de novembro, em uma associação de classe a que pertencia, no centro da cidade. O lançamento oferecido pelo grupo Encontros Inusitados foi marcado para as 15h do dia seguinte, na quadra de ensaios da escola de samba local. Apesar da idéia de Verônica, delicadamente desestimulada por Olívia, de que coincidisse com o aniversário de Franciszinha, que aconteceria a sete dias do primeiro lançamento do livro. Olívia sugeriu – o que foi logo aceito por Verônica – que o aniversário da menina fosse comemorado no domingo seguinte, lá mesmo no Terreirão 3, em frente à casa da aniversariante.

Embora ainda em fins de agosto, Olívia já vivia uma intensa expectativa pelos acontecimentos em torno da sua estréia como escritora, o que era compartilhado por Verônica, pelo pequeno grupo de amigos com quem tomava vinho nos fins-de-semana e até pelo pessoal dos Encontros Inusitados.

A entrada no site Anita À Noite, neste início da última semana de agosto, não tinha a finalidade de verificar se o quinto capítulo de seu conto apareceria na tela. Já havia perdido as esperanças. O que parecia ser a confirmação de que poucos (ou ninguém) se interessaram pela obra. De qualquer modo, valeria à pena comunicar à dona do site a pretensão de lançar no Brasil um livro incluindo dois contos, sendo um deles Dulcinéia Divina. Podia ser que, com base nesse fato, Anita resolvesse dar continuidade à publicação da obra em seu site.

Olívia pôde verificar, quatro dias depois, que o capítulo quinto continuou não sendo publicado, mas viu com satisfação a menção quanto à “possibilidade de lançamento do livro da escritora brasileira Olívia de Bordeaux, na cidade do Rio de Janeiro, contendo a obra Dulcinéia Divina, que estamos tendo o prazer de publicar em capítulos”.

A garrafa pela metade de Miolo Chardonnay 2004 na mesa ao lado da do computador foi praticamente esvaziada de uma só vez, indo Olivia dormir aliviada nessa noite, com a perfeita sensação de se achar em paz com a própria existência.

Senhor, que coisa deprimente. Masturbando-me despudoradamente diante do computador. Enquanto vou alternando a foto de Helena com o conto pobre dessa escritora maluca lá do Brasil. Quê decadência, meu Deus. O que estará acontecendo comigo? É claro que vou parar com isso. Aos 47 anos não há mais espaço para atitudes adolescentes.

Nesse início de madrugada, em julho, Flora se dava ao trabalho de um exame de consciência que não a impedia de verificar que Helena não tinha aparecido. Ficara apenas o retrato, devidamente arquivado na pasta “minhas imagens”, arquivo que ela relutava em fechar. A página com o conto já havia sido fechada com raiva, ficando talvez sublimada a idéia de ler o quarto capítulo somente quatro ou mais dias depois. Preciso me proteger. Isso pode redundar em vício. Logo eu, que não me submeto a qualquer coisa. Se Helena não me procurar amanhã ou depois, tudo bem. Ainda bem que não trocamos telefones.

Sozinha em sua cama naquela noite, sem que Gustavo Henrique estivesse fazendo a mínima falta, depois daquele orgasmo intensamente vivido, Flora permitiu que lhe chegassem imagens que há muito custo conseguira imaginar que pudessem estar esquecidas, mas que obviamente não tinham sido deletadas. Zuleica e as tardes no liceu. Os lábios adocicados daquela mulata de olhos verdes e coxas grossas, ancas duras de se apertar no compartimento aos fundos do banheiro feminino, quando todos já haviam saído. Tinha sido Zuleica que a iniciara nesses prazeres proibidos. Fora ela que, aos 16 anos, valendo-se de sua idade e experiência, colocara Flora, então com apenas 14 anos, de joelhos e mãos no chão, no compartimento aos fundos do banheiro feminino, para lamber-lhe com avidez a cona de pelos ralos, devidamente encharcada. Fora ela também que havia sido severamente espancada por sua mãe ao surpreender as duas, praticamente despidas, trocando carícias recíprocas em seus sexos, deitadas na cama do quarto de Florinha, quando deveriam estar estudando geometria para a prova do dia seguinte. Aquele monte de cartas de amor endereçadas a Zuleica, impiedosamente rasgadas por sua mãe. A menina correndo assustada e chorando pela lateral da casa aos gritos de “negra vagabunda”, proferidos pela mãe de Flora e que cortavam o coração da filha. Atitudes que, aliadas à mudança de Viseu para Lisboa, determinavam esse acabamento de pedra de mármore que Flora tinha. E que tinha sido inapelavelmente construído pela autoridade implacável da mãe. Acabamento pétreo que, não obstante, poderia transformar-se em gesso se Flora não soubesse se conduzir.

E tudo isso por conta dessa escritorazinha lá do Brasil. Nem tanto por Helena, de fato uma linda mulher. Mas lindas mulheres há várias. Era preciso que houvesse diálogos mais freqüentes e com conteúdo capaz de nos prender uma à outra. Mas isso não houve. O tempero tinha sido dado pelos escritos de Olívia, que Flora relutava em aceitar.

Foi pensando dessa forma, responsabilizando cada vez mais a escritora brasileira por essas novas nuanças em sua vida, que a retiravam da situação de compulsório conforto a que estava habituada, que Flora não notou a presença de Gustavo Henrique a seu lado na cama.

-Tudo bem, querida? Ainda acordada?

-Tudo. E você? Reunião com o ministro de novo?, perguntou Flora, como se isso tivesse importância.

-Não é nem reunião. É que ele faz questão que eu dê palpite em alguns textos que redige e que eu opine sobre decisões que vai tomar. O que posso fazer?

-Tá certo. Vem dormir agora?

-Já, já. É só tomar um banho.

Flora não podia acreditar que a pergunta tivesse sido feita a partir do seu estado de excitação, não inteiramente aplacado pelo orgasmo intenso diante do texto de Olívia e da figura de Helena. Num segundo, enquanto Gustavo tomava seu banho, confundiu-se com a imagem de Madre Andreatta, abusando de Dulcinéia, ou na cama de seu quarto com Helena, disposta a se submeter aos seus caprichos. Decidiu que Gustavo Henrique deveria ser usado, mas para isso era preciso que ela estivesse no comando, de modo que a virilidade masculina em excesso não maculasse a relação. Mais uma vez sentiu-se magoada e dependente, tendo que se submeter a essa necessidade para reduzir o fogo da excitação que parecia recrudescer. Em condições normais, ela estaria dormindo e ele lhe daria um beijo e logo dormiria também, não havendo muito espaço para relações sexuais que cada vez se tornavam mais raras. E ela não sentia a mínima falta disso. Agora, porém... Oh, meu Deus. Como voltar à situação anterior?

-Como se sente a escritora com seu novo livro?

-Não é novo livro, Décio. É o primeiro.

-Mas não deixa de ser novo. Você já o editou alguma vez?

-Claro que não.

-Então, Olívia!

Décio Rodrigues tinha tentado aproximar-se de Olívia, mas a coisa toda resumira-se a alguns flertes. Vinculados a almoços no bairro em que ficava o hospital público em que Olívia trabalhava. Mas agora Décio dava mostras de querer contra-atacar de novo. O que precisava ser desestimulado, porque Olívia não via a mínima chance. O tempo dele, ou dela com ele, havia passado. O interesse da médica focava-se agora em Abel, dos Encontros Inusitados, apesar de seus 25 anos, 12 anos mais novo que ela. Que se demorava a chegar, para esse encontro com seus amigos de pizza e vinho.

Quase uma hora depois do horário combinado, Abel chegava acompanhado por Verônica, para surpresa e certo desencanto de Olívia. A bela e volumosa mulata de 32 anos arrumada tinha a capacidade de parar alguns carros na rua, para não falar em “fechar o comércio”, como se dizia há muito tempo.

-Vim trazer o garoto porque ele não sabia o local, dotôra, disse Verônica em voz alta a quase sete passos da mesa do bar na ampla calçada.

-Que surpresa boa, Verônica. Esteja à vontade, disse Olívia, levantando-se com todos os que estavam à mesa.

-Esses aqui são o Décio, a Olga, a Mariana e o Figueiredo, meus amigos mais chegados, continuou Olívia.

-Muito prazer, pessoal. Eu sou a Verônica, a paciente mais chata da dotôra Olívia, e esse aqui é o meu amigo Abel, poeta, percusionista e um dos cantador de hip-hop lá da comunidade.

-Poeta é por conta dela, pessoal. Cantar e percussão, isso aí é mais fácil. Foi bondade da D. Verônica.

-Vamos parar com esse negócio de D. Verônica, garoto. Quer queimar o meu filme?

-E você, Verônica, pode me chamar de Olívia, viu? Também sou filha de Deus. Vamos sentar, pessoal.

Não passou despercebido a Olívia o arranjo feito por Verônica para que a médica tivesse Abel ao seu lado. Uma mulher conhece a outra, ela já tinha escutado.

Beberam vinho, chope e comeram pizza. Ficaram no bar por cerca de duas horas e meia. Depois disso, Décio fez questão de levar Verônica até à entrada da favela. Olga e Mariana aceitaram a carona de Figueiredo, ficando Olívia e Abel por algum tempo ainda no bar.

-Quinze dias antes do primeiro lançamento você terá seus exemplares em mãos, Olívia.

-Maravilha. A idéia é reservar 70 para o lançamento da cidade e 50 para o que vai acontecer na quadra de ensaios. Será que vou poder contar com um show de vocês no dia do segundo lançamento?

-É bem possível que sim. Mas ainda dependo de alguns acertos com o resto do pessoal. Não decido tudo sozinho.

-Vocês se conhecem há muito tempo?

-Max, Tiago e eu crescemos juntos na Quinta Lamúria. Dentinho veio da favela Mato Crescente, próxima à zona sul da cidade.

-Por que o nome Quinta Lamúria?

-Porque houve cinco fatos relevantes lá na comunidade, todos eles marcados por profunda tristeza. Sendo que o quinto foi o que provocou maior comoção.

-Posso perguntar o que foi?

-Claro. Já tem algum tempo. Eu era menino quando escutei a história. Mas, apesar da idade, isso se transforma numa coisa que não cicatriza. Embora a gente parece que acaba esquecendo. Foi durante uma festa junina. As crianças todas soltando balão japonês, pulando fogueira e brincando de outras maneiras no Terreirão 2, hoje ocupado por uma marco de forma piramidal. A polícia apareceu de repente, dando início a um intenso tiroteio com a galera da ocasião. O resultado foi a morte de cinco crianças da mesma família, sendo duas gêmeas e três meninos, entre três e sete anos, que ficaram no meio do fogo cruzado entre a resistência e os invasores. Quando a quinta criança morreu, eles resolveram parar. Os nomes dos cinco estão gravados na pirâmide lá no Terreirão.

-Quinta Lamúria acho até delicado.

-O nome é devido a Mané Zimbo, antigo compositor da escola, falecido há muito tempo e muito conhecido pelo lirismo de suas composições. Até hoje vamos buscar inspiração em suas letras.

-Algum projeto para o futuro?

-Temos juntado algum dinheirinho que mantemos num banco. Mas não sobra muito porque nosso pacto é ajudar aos mais necessitados da comunidade. E tem sempre gente precisando. Mas pretendo fazer ainda uma faculdade que tenha a ver com estudos ambientais. Pra ver se consigo dar uma força maior lá pra comunidade. Acho que não saio mais dali.

Em nenhum momento Abel pode perceber a maneira carinhosa com que era olhado pela médica. Cabelo castanho e crespo, bem moreno e alto, porte atlético, Abel talvez se achasse um menino diante de Olívia. Certamente não pela diferença de idade, mas pela diferença de conhecimento e posição na vida. Não poderia imaginar que Olívia não daria a menor importância a essas diferenças, se pudesse ler seus pensamentos. Ela mesma não podendo se imaginar da estatura daquele jovem. Cuja força do humanismo, para ela a preocupação com a defesa da dignidade do ser humano como valor absoluto, excedia em muito as reservas que ela tinha.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 23/09/2011
Código do texto: T3236168
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