Apenas psicológico

Estava ofegante. Vinha correndo através de umas dez quadras, e olha que não eram quadras pequenas não, eram aquelas com inúmeros casarões, com seus grandes jardins verdejantes e tudo o mais que se podia imagina. O que o fez correr? Bom, esse “detalhe” tem de ser melhor explicado.

Não havia mais olhado para o relógio depois das sete e meia, sete e quarenta. Entretido com jogos eletrônicos na casa de um amigo deixou-se estar, já que era sábado o dia seguinte e a única atividade que teria seria aproveitar o sol. Aquela era uma noite quente em fins de outubro e o ventilador ligado em seu máximo fazia seu barulho peculiar, de onde estava sentado podia ver através da janela a lua cheia brilhando em seu esplendor. Então, eis que toca o telefone, a campainha estridente prestes a acordar o bebê quando é atendido. Logo os passos lentos e pesados da senhora aproximam-se da porta e sua voz grave e séria informa:

- Sua mãe diz que já passam das nove e que prometeu estar em casa antes das oitimeia. – era assim mesmo que soava, como se fosse uma palavra única, chega a parecer pilhéria, mas é verdade, a maioria das pessoas usam falar desta forma hoje em dia.

Levantou-se assustado, olhando para o relógio, tinha certeza de que estaria parado, pois não passara muito tempo desde a última vez que tinha olhado para ele, mas o relógio trabalhava perfeitamente e pior ainda, marcavam nove e treze, hora de se mandar, e bem rapidinho.

O amigo o acompanhou até o portão. A rua deserta estava na penumbra.

- Minha mãe pode levá-lo se quiser.

- Não precisa se incomodar, vou rápido, em dez minutos já estou lá.

- Vai com cuidado então, hoje é dia de todos os mortos e dizem que eles vêm passear na terra, as vezes eles carregam alguém consigo, não gostam de passar a eternidade sozinhos. – e caiu numa gargalhada gostosa.

O outro fazendo cara de cético e olhando para o amigo com desdém deu boa noite e foi descendo a rua. Prestando atenção a todos os ruídos que ouvia e olhando com desconfiança para tudo.

Em sua cabeça ele formava um plano de como chegar a sua casa o mais rápido possível, tomando cuidado com atalhos escuros e ruas vazias como sua mãe já lhe alertara milhões de vezes, isso já se tornara uma regra para ele.

Ao parar na esquina para que um carro passasse ele avistou uma nota no chão, era uma nota de dois reais, bem dobrada e amassada era quase impossível vê-la se estivesse com pressa, e agradeceu pelo carro que o tinha feito esperar.

Andou mais pouco e o calor começou a lhe atacar, já começava a suar até. Foi então que passa ao lado um casal, cada um com um sorvete, uma casquinha que parecia saborosa e refrescante. Verificou se a nota de dois reais ainda estava em seu bolso e resolveu mudar um pouco o rumo de sua volta. A sorveteria ficava a quatro quarteirões do lado contrário de seu rumo.

Os passos continuavam apressados até avistar algo no chão mais a frente, encoberto pela escuridão de uma árvore aquilo rastejava e as vezes brilhava, ele parou, os olhos fixos para entender o que estava acontecendo, apesar de não demonstrar, ele ficou abalado por saber da notícia que o amigo lhe informara, noite de todos os mortos. Isso o fazia lembrar dos filmes de terror que via e logo depois ia pra debaixo da coberta se proteger, filmes sobre zumbis e mortos que se levantavam de suas tumbas para ter suas vinganças. Seu braço ficou arrepiado. Ouviu o som de um carro vindo de suas costas e mais uma vez em sua mente ele formulou um daqueles seqüestros contra ele. E se desde o telefone tudo aquilo não tinha passado de um plano para o seqüestrarem e vender seus órgãos no mercado negro. Os faróis bateram na coisa que o tinha feito travar no meio da calçada. Um gato, apenas um felino negro de olhos brilhantes a brincar de caça com algum inseto. No carro, um senhor e sua senhora o cumprimentaram, eram conhecidos de sua mãe. Aliviado tornou a andar, afugentando o gato.

Virou a próxima rua, agora estava mais próximo da sorveteria, só teria de passar pela praça e pronto poderia ir pra casa tomando um delicioso e refrescante sorvete de chocolate ou de flocos, que eram os seus preferidos.

Ao entrar na praça ele houve a voz de um homem.

- Ei garoto! Tem horas aí?

Fingindo não ter ouvido apertou os passos para longe, mas haviam passos atrás de si, será que o homem o estaria seguindo?

Sua mente era muito boa quando se tratava de conspirações contra si. Já havia até imaginado sendo abduzido depois de ter visto aquele seriado arquivo x.

O calçado desamarrado o faz tropeçar e cair. Uma boa queda fazendo-o ralar uma das mãos e p joelho. Os passos logo chegam e em tom grave alguém diz:

- Você está bem garoto? Se machucou?

Mesmo havendo vários pontos de luz pela praça ela continuava escurecida, talvez pela densidade das árvores ali. O cheiro de terra e dos blocos que formavam a calçada lhe enchiam os pulmões e foi fácil transformar aquilo em terra revolvida e lápides derrubadas. A mão calejada lhe toca o ombro e o que ele vê é apenas a mão suja de algum morto que teve de cavar para sair de sua própria sepultura. Ao levar os olhos para o dono daquela mão ele grita e se afasta um pouco mais, o chapéu deixa o rosto escondido, mas ele tem certeza de ter visto o branco do crânio a mostra. De algum lugar por ali uma voz gasta de mulher diz:

- Ele está bem? Parece que ... – não conseguia entender o que ela dizia - ... queda e tanto. – e viu algo grande correndo em sua direção. Àqueles dois juntaram-se mais alguns e o pânico turvou-lhe a vista fazendo-o ver cadáveres em trajes esvoaçantes. De um salto ele ficou de pé e forçou as trêmulas pernas a correrem, o rumo, ele só sabia que era pra longe dali.

Ao entrar em casa estava branco. A mãe, aliviada de escutar que finalmente o filho chegou em casa, espantou-se ao vê-lo, nem sabia o que pensar.

- O que houve? O que te aconteceu?

- Nada, só vim correndo para casa. – os olhos pareciam desgrudados vasculhando cada canto escuro de casa – Vou dormir. – e entrou rápido no quarto, só dormiu porque a luz do abajur ficou a noite toda acesa.

No dia seguinte, vendo a luz do sol invadir seu quarto pelas frestas da veneziana, ele sabia que tudo estava bem. Olhou para seu corpo, estava tudo ali, inteiro e perfeito como era antes.

Depois do almoço foi ao supermercado com a mãe e na volta passaram pela mesma praça da noite anterior, ali havia ciganos tentando ler a sorte de pessoas que passavam e ele viu um velho de chapéu, o mesmo que o tinha tentado ajudar antes e entendeu que aquilo que houve foi mais uma vez apenas a sua mente lhe pregando outra peça.

Juliano Rossin
Enviado por Juliano Rossin em 23/12/2006
Reeditado em 23/12/2006
Código do texto: T326513