A Bailarina, Romance, Cap. IV

A escadaria de degraus largos e não muito extensa, terminando a três metros da entrada escondida sob as possantes colunas dóricas enfileiradas, realçavam a imponência do Teatro Municipal. Marluce entendia que, por mais que passasse por ali, nunca deixaria de se impressionar com a beleza do prédio. Evidentemente não era aquele o local por onde teriam acesso os músicos, os atores, os bailarinos. Ingrid estacionou numa rua lateral e Marluce encontrou deserta a entrada por onde fora conduzida ao movimentado hall nos dias das três apresentações no teatro. Ali tiveram que ficar esperando por Roger, o assistente do diretor do Corpo de Baile. Dessa vez, sem a presença de tantas pessoas no hall, o próprio Afonso viera recebê-las.

-Como está a minha mais nova revelação?, perguntou Afonso, beijando levemente Marluce nos lábios.

Marluce surpreendeu-se com o cumprimento, procurando discretamente os olhos de Ingrid.

-E você, Ingrid? Como vai? Satisfeita com essa, sim, a sua melhor aluna?, perguntou o diretor, beijando da mesma forma a professora.

-Nem preciso dizer quanto. É muito orgulho pra mim saber que ela é uma das minhas alunas.

Marluce ainda não tinha conhecido de fato o diretor do Corpo de Baile. Vira-o apenas rapidamente no teatro. Todos os procedimentos no dia da primeira apresentação no Municipal tinham tido a coordenação de seu assistente. Como ninguém esperava que as alunas de Ingrid fossem capazes de surpreender público e bastidores com a performance que tiveram, Afonso preferiu naquele dia dedicar-se mais aos titulares de seu Corpo de Baile.

Afonso era alto, pele bem morena, cabelos negros cacheados. Marluce imaginou que tivesse uns 37 anos. Considerou-o bem mais bonito agora que o via de perto.

Na saleta em que se reuniu com os outros solistas para uma rápida preleção de Afonso, Marluce surpreendeu-se de novo com a forma utilizada pelo diretor do Corpo de Baile para o cumprimento de um de seus melhores bailarinos. Beijaram-se nos lábios, dessa vez de modo até mais enfático do que tinha acontecido com ela. Tratava-se agora de Marcel, um lourinho de cabelos crespos que não devia ter mais que 19 anos.

No mesmo dia, à hora combinada, Ingrid viera buscá-la no teatro, apesar de Marluce ter insistido com ela que não seria necessário. A aluna notava que a professora esforçava-se em querer agradá-la, numa atitude que só comprovava a mudança de tratamento que se verificara nos últimos dias.

-E aí, gostou do Afonso?, perguntou Ingrid, já com o carro em movimento.

-Gostei, sim. Ele é alegre e gentil. Muito prático também. Mas nota-se logo que é exigente.

-Faz questão de que o horário seja cumprido rigorosamente.

-É, mas nem tanto. Notei que o Marcel, um dos principais solistas, chegou bem atrasado e não houve problema algum, comentou Marluce, parecendo esperar pela reação de Ingrid.

-Há exceções. Marcel me dá a impressão de ser o preferido do diretor. Que não abre mão, contudo, do nível técnico.

-De fato, se posso dizer alguma coisa, Marcel me pareceu muito seguro. E também..., vamos dizer, muito próximo de Afonso.

-Será que houve chance de eles se cumprimentarem tal como aconteceu com você quando chegamos?

-Isso mesmo! Você deve ter percebido que Afonso me beijou levemente os lábios. Fez o mesmo com Marcel. Foi até um pouco mais enfático. Não tem nada demais, mas confesso que não estou muito habituada.

-Vá se acostumando. Não acredito que haja mal algum nisso. É o que rola nesse meio de grandes artistas. E Afonso ainda é um deles, embora não se possa dizer o mesmo de Marcel, pelo menos por enquanto. Na verdade, pode também se tratar, creio eu, de uma característica de quem parece ou procura estar de bem com a vida. Deseja ser extrovertido e facilitar com isso uma troca maior de energia. Há quem acredite que as pessoas deviam se abraçar mais para uma transmissão mais forte das energias que possuem.

-Realmente, quando nos deparamos com uma pessoa que não vemos há muito tempo, parece instintivo acontecer o abraço forte e demorado. Mas o beijo...?

-Hum... Estou vendo que você não gostou muito do que viu.

-Não é isso, Ingrid. É que, como disse, não vejo isso à toda hora.

-Na verdade o abraço forte poderia se realizar entre as pessoas com mais freqüência, principalmente entre aqueles que se gostam ou dizem se gostar, observou Ingrid, aproveitando a parada no sinal para olhar nos olhos de Marluce. O beijo, não. É algo mais íntimo.

-Li num livro de psicologia qualquer que o fato de os abraços, por exemplo, não acontecerem com mais freqüência, pode ser um caso de economia. Podemos também economizar afeto, carinho, coisas assim.

-Certamente. E não acredito que seja o tipo de economia recomendável. Mas também essa economia pode significar distração, ou até negligência, decorrente do fato de nos habituarmos com a pessoa de quem gostamos. Função da freqüência com que nos encontramos com ela ou ele.

Numa fração de segundos, Marluce se dispôs a pensar quantas vezes tinha abraçado sua mãe naquele fim-de-semana. Não conseguiu lembrar-se de uma única vez. Com seu pai os abraços seriam menos prováveis. Não eram lá muito próximos. Quis também perguntar a Ingrid se ela e Eleonora se abraçavam com freqüência. Mas não se atreveu. Tinha certeza de que a pergunta não seria oportuna. Poderia ser mal interpretada, já que Ingrid e Eleonora estavam sempre juntas, mantendo a professora com a sua melhor aluna uma relação que não era a mesma que ela mantinha com as outras alunas.

-São quase sete horas agora. Você precisa ir direto pra casa?, continuou Ingrid.

-Bem, meus pais estão me aguardando pro jantar. E doidos pra saber como foi o primeiro dia de aula com o diretor.

-Imaginei que pudéssemos comer uma pizza em algum lugar. Exatamente pra comemorar o primeiro dia de aula com o Afonso.

-Ficaria melhor se eu tivesse combinado com eles. Acho que isso pode acontecer num outro dia, ponderou Marluce, fingindo não se surpreender com o convite da professora. Conheço meus pais, Ingrid.

-Claro, sem dúvida. Quem sabe depois de amanhã, quinta-feira? Na verdade você deve ter ainda só mais umas quatro aulas com Afonso até o dia em que devemos partir pra Blumenau. Não é tanto tempo assim.

Ao se despedir de Ingrid no calçadão em frente ao seu prédio, Marluce imaginou ter reconhecido no brilho dos olhos da professora a alegria pelo fato de uma de suas alunas ser guindada da noite para o dia à posição de principal solista do Corpo de Baile do Teatro Municipal da cidade. Pareceu-lhe, de repente, que Ingrid iria também beijar-lhe os lábios, a exemplo do que ocorrera com Afonso quando as duas chegaram ao teatro naquela tarde. Se isso tivesse ocorrido, teria achado normal o procedimento? Teria toda a largura do calçadão para se decidir pela melhor resposta. Observou a grama que se insurgia nas juntas dos lajotões que pavimentavam a calçada. Esperava que nenhum operário da manutenção do prédio se desse ao trabalho de retirar ou mesmo aparar aquela grama cujo crescimento adornava de modo especial o passeio. Imaginava poder, quando a grama tivesse crescido bastante, tirar o tênis e sentir sob seus pés o conforto e a maciez daquela vegetação. Até alcançar a esquadria metálica que continha o blindex da entrada social de seu luxuoso prédio. Que lhe provocara um doloroso “galo” na testa quinze dias atrás. Notou que tinham colocado uma faixa preta no vidro da porta no sentido horizontal, para prevenir acidentes como o seu. A enérgica reclamação de sua mãe surtira efeito.

O beijo seria a comunicação de um entusiasmo, a transmissão de um contentamento transformado em energia a ser recolhida nos lábios da professora. Energia que se fundiria com a dela, Marluce, resultado também daquele expressivo momento de vitória que ambas experimentavam. Nada mais além disso. Foi assim que Marluce tocou o número 19 no painel do elevador, virando-se depois de a porta ter se fechado para se contemplar diante do espelho que revestia do piso ao teto aquela parede do elevador. O rosto sem muita alegria, a pele moreno-amarelada, os cabelos sedosos como sempre, os lábios não tão vermelhos como estariam após um beijo.

-Como foi a aula, menina? Gostou do diretor? Ele é paciente, jovem, bonito?

-Foi tudo muito bom, mãe. Ele é ótimo. Vê-se logo que é dos bons, campeão. E que é muito exigente, o que aliás a Ingrid já tinha avisado. Não dá para dizer ainda se é paciente ou não. Deve ter uns 35, 37 anos. É bonito.

-De um modo geral, todo bailarino é bem apessoado, interveio Ezequiel. Só que se trata de uma beleza meio feminina, o que nem sempre agrada às mulheres.

-Não é bem assim, pai, se é o que você está querendo sugerir. Há bailarinos casados e com filhos. E com rosto que não tem nada a ver com o de mulher.

-Bem, os tempos mudam, filha. E as inversões acontecem. Hoje cada vez mais homens dançam balé. E as mulheres dirigem ônibus e jogam futebol.

-O que prova que podemos fazer quase tudo que vocês fazem.

-Disse-o bem, quase tudo, repetiu Ezequiel.

-Se pensar direitinho, vocês ficam em desvantagem. Porque não podem ter filhos.

-E vocês, podem fazê-los sozinhas?, perguntou Ezequiel, sustentando a polêmica.

-Ih... É conversa que não chega a lugar nenhum, interveio Antônia. Papo de cerca Lourenço. Daqui a pouco entra a tal da inseminação artificial. Acho mais proveitoso comermos alguma coisa.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 10/10/2011
Código do texto: T3268171
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