A Bailarina, Romance, Cap. VII

Cheiro de casa limpinha no sábado. Hélida tinha caprichado na sexta-feira. Dia em que Ingrid saíra direto da casa de Eleonora para a academia. Depois que as duas anteciparam o fim daqueles momentos íntimos de prazer intenso, de que tanto careciam, antes que D. Eunice as chamasse para o almoço. Que não foi compartilhado por Ingrid, deixando Eleonora levemente encimesmada por achar que teria sido usada. Idéia logo afastada face ao reconhecimento da falta que lhe vinha fazendo o corpo da professora.

Quando Ingrid chegou, no dia anterior, por volta das sete e meia, Hélida ainda não havia saído. O que não era normal. Por isso a casa estava tão limpa. No ponto de ouvir alguns discos, como fazia aos sábados, ler algum romance ou falar ao telefone. Com Eleonora? Na verdade lutava era contra a vontade indisfarçável de ouvir a voz de Marluce.

A casa só não estava no ponto de abrigá-la em seu conforto para a tão adiada análise do fluxo de caixa da academia. Os indicadores revelados pela estrutura gerencial de resultados apontavam para a possibilidade de dificuldades no curto espaço de quatro meses. Se não acontecessem as tão sonhadas receitas, proporcionadas por novas matrículas que poderiam decorrer do prestígio repentino de Marluce, recentemente integrada ao Corpo de Baile do Teatro Municipal. Inegável reconhecer que havia esses e outros motivos para que Marluce não saísse do seu pensamento. Mas, investimentos no momento? Nem pensar. Os custos fixos já não estavam podendo ser suportados. Que dirá novos compromissos.

Ingrid pensava tudo isso enquanto transitava da cozinha para a sala, finalizando o café da manhã que tomava sobre o sofá. Esperava que o Pablo Milanez baixinho no aparelho de som, com a sua “salsa caliente”, pudesse afastá-la da necessidade de receber um certo telefonema. Idéia que a fazia dirigir-se a toda hora à cozinha para, no caminho, verificar se o telefone sem-fio teria a indicação da entrada de alguma ligação.

Quando lavava o copo de suco de maracujá, que não acalmava ninguém, foi que escutou o barulho bem-vindo do aparelho.

-Bom dia! Foi dormir ontem e nem ligou pra mim..., era a voz de Eleonora, com seu conhecido dengo matinal.

Ingrid não se deixou abater pelo fato de não se tratar de Marluce.

-Oi, Leo. Tudo bem, querida? Cheguei ontem muito cansada e ainda tive que despachar a faxineira que ainda não tinha ido.

-E hoje de manhã? Custava saber como estou, como vou indo? Se vou sair ou ficar em casa?

-Claro que não, amor. Ia te ligar mais tarde.

-Essa é uma resposta fácil. Vai aparecer por aqui?

-Mais tarde. Lá pelas seis. Que tal um cinema?

-Prefiro um barzinho, ou uma delicatessen, um ambiente mais aberto ou arejado.

-Acho melhor mesmo pra você, que tem ficado muito presa dentro de casa.

-O que você está fazendo agora?, perguntou Eleonora, mostrando-se menos dengosa.

-Estou reunindo coragem para me debruçar sobre o fluxo de caixa lá da academia. Se não houver receitas, dentro de pouco tempo terei que recorrer aos bancos. E aí já viu, né? Os juros são altíssimos.

-Não sofra por antecipação. Relaxe. Além do mais, pode ser que a Marluce traga novas matrículas.

Ingrid notou a ponta de ironia na observação de Eleonora. Talvez função do velho sentimento de posse feminino, que não escolhia idade nem hora para se manifestar.

-Estou torcendo para que isto aconteça. Aliás, estou contando com isso. Senão corro o risco de ter que fechar as portas, manifestou-se Ingrid, valendo-se do possível exagero da observação, aliado à mudança no tom da voz, para o contra-ataque.

-Nossa! Não precisa se desesperar. No que depender de mim, estarei aí para ajudar.

-Tem razão, querida, disse Ingrid, mostrando-se aquiescente. É só uma questão estratégica. Subestimar as receitas e superestimar os custos, como recomenda a prudência. Tudo será contornado.

-É isso aí. Pensando desse jeito fica mais fácil. Quando você estiver vindo, me ligue para que eu fique logo pronta. Beijos.

-Tá bem, querida. Beijos também.

Ingrid ocupou a mesa da sala, afastando a toalha branquinha de renda e o pequeno vaso com a planta de largas folhas verdes. O telefone foi junto. Pablo Milanez calou-se. Os papéis contendo as planilhas com os fluxos de caixa foram espalhados sobre o espaço livre da mesa. Sobre eles, a calculadora digital. Interessavam os dados mais recentes. Ingrid verificou que os 25 alunos matriculados, pagando uma mensalidade de R$ 200,00, proporcionavam uma receita que permitira o equilíbrio das contas nos oito primeiros meses do ano. Considerando-se o não pagamento do aluguel, já que a academia funcionava em imóvel que herdara de seu pai. Mas as contas demonstraram que uma situação mais confortável, com possibilidade de lucro real no fim do período de um ano, seria obtida com o crescimento das receitas em cerca de uns 20 ou 25% em relação aos valores atuais. O que poderia ser conseguido com apenas mais seis ou sete matrículas – não muito difícil de acontecer, agora com a propaganda a ser desencadeada a partir da transformação de Marluce praticamente numa das integrantes principais do Corpo de Baile do Municipal. A mesma Marluce que poderia estar nesse momento vendo um desses horríveis programas de sábado na TV. E que certamente não teria motivos para ligar para a sua professora. Mas Ingrid poderia achar alguns para falar com a sua aluna.

Juntando rapidamente os papéis no envelope de plástico transparente, jogado sobre a calculadora desligada, Ingrid alcançou o telefone sem-fio por trás do vaso com a plantinha. O número de Marluce estava na memória do aparelho.

-Bom dia, é Ingrid. A Marluce pode atender?, perguntou a professora, torcendo para que fosse a aluna que tivesse atendido.

-Bom dia, professora. Marluce deve estar chegando. Estamos aguardando-a para o almoço.

-A senhora vai bem, D. Antonia?, indagou Ingrid, sem se mostrar abatida pelo insucesso da ligação.

-Tudo bem, graças a Deus. E a senhora? Como vai?

-Também. Tudo no lugar. Posso lhe pedir para que diga a Marluce que liguei? Espero não estar incomodando.

-Claro que não. Fique tranqüila. Assim que Marluce chegar, ela liga pra senhora.

Eram duas horas quando Marluce chegou. Dia de sábado o almoço era mais tarde. Seus pais esperavam-na. Três ou quatro chopes com as colegas do futebol não fariam o estrago que causara o vinho de quinta-feira com a Ingrid. Chegou sóbria e descontraída.

-E aí, quem venceu hoje?, perguntou sua mãe.

-O time da escola. Dessa vez foi bacana: 3 a 1.

-Quem está na frente do torneio?

-Não sei, não, mãe. Não me ligo nisso. Vou apenas lá pra ver as meninas jogarem, respondeu Marluce, lembrando-se de Priscila, a menina de sua idade que jogava no meio-de-campo. Autora de um dos gols da vitória.

Priscila era uma morena alta, esguia, que jogava sempre com a cabeça erguida, quase sem olhar para a bola. Se Marluce tivesse conversado com seu pai sobre a garota, certamente ele se lembraria de Didi, que fez sucesso no Botafogo do Rio de Janeiro e na seleção. Cujo nome não faria qualquer sentido para Marluce, que devia contar dez ou onze anos à época da morte do jogador. Priscila tinha pernas fortes e compridas, proporcionais ao tronco. Mas não tinha bunda e quase não tinha seios. Era uma tábua. Mas de sucesso enorme entre as colegas, pelo belo futebol que praticava. Vivia por isso rodeada de meninas, em sua maioria jogadoras como ela. Havendo duas de que não se desgrudava, nem na hora de irem para o chuveiro. Fato que Marluce, como todas, considerava normal. Mas que assumia agora nova coloração, a partir do encontro com Ingrid, no dia do vinho. Certamente Priscila não se interessaria por homens. E tudo indicava que o mesmo aconteceria com Ingrid. Só que a primeira parecia de fato um rapaz, a fala macia e aveludada, o cabelo cortado rente à cabeça, uma certa ginga no andar. Ingrid não. As pernas que haviam se tornado mais grossas por ter parado de dançar com freqüência, e o pouco de peso que adquirira, não foram suficientes para eliminar as curvas bem definidas de seu corpo, as ancas comedidamente acentuadas, os seios rijos. Sua voz era também suave, mas eminentemente feminina. Era evidente que Marluce admirava o futebol de Priscila. Mas ficaria com a plástica de Ingrid. Além da intrigante cor de fogo dos cabelos da professora, que lhe cobriam o pescoço.

-A Ingrid ligou. Disse que você ligaria pra ela assim que chegasse.

-Ligo pra ela depois do almoço, ponderou Marluce, surpreendida pela fala de sua mãe no exato momento em que pensava na professora.

E surpreendida também pela abordagem física que tivera seu pensamento, em relação à Ingrid. Agora não havia a motivação criada pelo vinho. E qual seria a motivação que a conduzia para o meio de suas colegas jogadoras de futebol? Tratava-se de uma pergunta que ela fazia questão de não formular. Muito menos de responder.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 15/10/2011
Código do texto: T3278027
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.