A Bailarina, Romance, Cap. VIII

Terminado o almoço, no meio da tranqüilidade de um dia de sábado, Marluce foi para seu quarto. Deixou que sua mãe visse que carregava o telefone sem-fio.

-Oi, Ingrid. É Marluce.

-Oi, Lu. Tudo bem?, respondeu Ingrid, olhando para o leve ferimento causado pelo aparador de cutículas que usava antes de atender ao telefonema.

-Tudo. Mamãe falou que você ligou.

-Liguei mais cedo, sim. Devia ter ligado na sexta. Pra saber como você chegou na quinta à noite, depois daquele vinho. Houve algum problema?, perguntou Ingrid, voltando a chupar o pouquinho de sangue que saía do pequeno ferimento no dedo.

-Não, nada demais. Fui recebida normalmente. Apenas fiquei meio bolada quando mamãe usou o termo “badalação”. Coisa meio antiquada, não acha? Tive a impressão de que ela sentiu algum cheiro de bebida no ar.

-Mas você chegou inteirinha, não é?

-Claro. E consegui convencê-los de que não precisava comer nada. Fui logo dormir.

Ingrid impressionou-se com o estado de excitação que lhe causava aquele jeito de falar. Que parecia aguçar-se com os leves chupões com que procurava estancar o sangue no dedo. A pergunta surgiu então a partir desse entusiasmo:

-E terça, será que podemos repetir a dose? A dose de vinho, querida?

-Terça-feira tenho dentista, respondeu Marluce, sem deixar de registrar a entonação do “querida”. Ou será que teria sido pronunciado de forma natural?

-Fica pra quinta então, sugeriu Ingrid, procurando dar como certo o encontro. Poderíamos até aproveitar para combinar alguma coisa em relação a Blumenau, além do trabalho. Pontos turísticos pra visitar, passeios que poderíamos fazer, etc. Não conheço Blumenau, mas tenho informações de que a cidade é muito bonita.

-Infelizmente na quinta tenho dentista também. E até mesmo na quarta. É um tratamento intensivo que espero estar concluído antes da viagem.

-Então, está bem. Deixemos para Blumenau. Onde teremos a companhia do grupo todo, observou Ingrid, procurando mostrar-se resignada.

Era quase certo que Marluce estava fugindo. Essa impressão foi realçada pelo fato de ela ter dito que teria de ir ao dentista na quarta-feira. Parecia algo forçado. Até porque não houve anteriormente qualquer referência a esse tratamento intensivo. Mas isso era bom. Podia ser que ela estivesse fugindo de algo que na realidade quisesse. Tinha de criar dificuldades, de modo a poder transmitir a noção de que o que é bom não pode ser fácil. Além do mais, Marluce sabia que ambas teriam tempo de sobra em Blumenau.

Era a última semana de ensaios no teatro antes de viajarem. Quando Ingrid estacionou o carro em frente ao prédio de Marluce, esta já a esperava. O fino moleton na cor salmão que a professora vestia compunha um agradável efeito com a gargantilha azul no pescoço, avivada pela cor clara de sua pele. Marluce notou também os cabelos ainda molhados da professora, que de alguma forma realçavam-lhe a beleza do rosto.

-Tudo bem, Ingrid?

-Tudo. Será que estamos atrasadas?

-De modo algum. Devemos chegar em quinze minutos. Dentro do horário. Por falar nisso, não é desgastante pra você ter que sair da academia pra me buscar e depois ter que voltar? Ainda bem que é só hoje e quinta.

-Já disse que é um prazer. E hoje, por exemplo, não estou vindo da academia. Estou vindo de casa. Além do mais, o Afonso gosta de saber que cuido bem de minhas alunas. Mesmo que ele não me encontre agora lá no teatro, ele vai gostar de saber que fui levar você.

-Bem, já está de malas prontas?

-Ainda não. Mas arrumo tudo na hora. São apenas três noites. E você? Está animada?

-Claro. Já andei até procurando saber com papai e mamãe o que teria de bom pra se ver por lá. Meus pais há algum tempo fizeram uma excursão por algumas cidades do sul.

-É uma cidade importante e dizem que muito florida. Pena que não vai ser só turismo.

Apesar de Ingrid dessa vez ter saltado do carro para acompanhar Marluce até ao camarim, na esperança de que Afonso a encontrasse pelo corredor, o diretor não apareceu na chegada das duas. Ingrid desejava vê-lo porque sabia que não poderia vir na quinta-feira, trazer e buscar Marluce no início e fim da tarde. Os compromissos bancários que tinha tornaram-se inadiáveis em função de a viagem ter sido marcada para sexta-feira. Podia ser também que Afonso tivesse alguma coisa para lhe dizer ou acertar alguns detalhes antes da viagem, no que se referisse ao seu grupo de alunas.

Percebendo que o diretor custava a aparecer, Ingrid despediu-se de Marluce. Tinha que voltar à academia onde a turma da tarde a esperava. Também não seria interessante permanecer no camarim de Marluce enquanto ela se trocava para se juntar aos outros integrantes do Corpo de Baile.

-Na quinta não poderei vir, Marluce. Tenho alguns assuntos de banco no centro que precisarão estar resolvidos antes da viajarmos. Mas nos falamos por telefone.

-Está bem. Fique tranqüila. Mesmo que o Afonso não me peça para lhe transmitir qualquer novidade, ligo hoje à noite.

-Estarei aguardando, meu bem. Cheque só com ele se as passagens e os vouchers serão entregues diretamente no aeroporto.

Marluce trocou-se rapidamente e ao deixar o camarim deparou-se no corredor com Vilma, Érica e Camila, as outras alunas da academia de Ingrid, já vestidas como ela para os ensaios.

Foi Vilma, a mais extrovertida das três, quem se dirigiu a Marluce, dispensando os cumprimentos e continuando a caminhar com o grupo em direção ao palco:

-Tô nem acreditando. Tremendo 0800 esse aí, héin?

-Manero mesmo, respondeu Marluce. Vocês conhecem Blumenau?

-Ouvi falar em Nicolau, aquele juiz ladrão lá de São Paulo. Aquele do apartamento lá em Miami, pilheriou Vilma.

-Ela deve tá falando de cidade, ô BR, interveio Camila, a mais jovem do grupo, porém não menos astuciosa.

-Adoro quando você me chama de Baixa Renda. Um dia ainda te convido pra jantar, disse Vilma, fazendo com que todas sorrissem.

-Não conheço Blumenau, Marluce. Você conhece, Érica?, indagou Camila.

-Também não, respondeu Érica, a mais morena das três, na verdade uma bela mulata. Mamãe é de Caxias do Sul. Deve ficar por perto, certo?

O bate-papo foi interrompido com a aproximação de Afonso, seguido de Marcel.

As alunas estavam sendo bem exigidas nesse dia. O primeiro intervalo ocorreu quarenta e cinco minutos após o início do ensaio. Afonso havia se retirado momentaneamente, deixando a condução dos trabalhos com Marcel. Ao regressar do banheiro para o palco, Marluce recebeu de um contra-regra o recado de que deveria comparecer à sala de Afonso antes de se retirar do teatro. A notícia preocupou-a de imediato. Já tá praticamente tudo ensaiado. Todo mundo já conhece a música, os movimentos e as marcações. Quê será que ele tá querendo? Será que vai vetar alguém? Ou será que vai tentar repetir aquela cena do camarim comigo? Mas na sala dele? Marcel não estará por perto?

A partir daquele momento Marluce ficou desejando que o ensaio acabasse logo. Percebeu com certo desânimo que Afonso não mais retornou ao palco. O que lhe teria permitido saber de antemão o que o diretor estaria querendo com ela. Os trabalhos continuaram sendo conduzidos por Marcel. Que se retirou vinte minutos antes do fim da prática.

Marluce entendeu que era para se encontrar com Afonso depois de ter se trocado. Ao se dirigir à sala do diretor, bem ao final de uma espécie de labirinto de corredores espalhados por trás do palco, ela podia garantir que quase todos já haviam saído. Apenas o pessoal da limpeza – não mais que três ou quatro pessoas – deveria continuar no teatro. Na recepção, bem afastada do local onde se encontrava, poderia também haver alguém, torcendo para que o pessoal da segurança ou vigia viesse logo assumir o serviço.

Por algum motivo Marluce resolveu não bater à porta da sala de Afonso, que lhe pareceu inteiramente fechada. Ela deveria estar aberta se ele a estivesse esperando. Afinal ele também devia saber que àquela hora, quase seis e meia da tarde, praticamente todos já tinham saído. Uma poltrona empoeirada compunha com outra igual, separadas por uma mesa de vidro de tampo redondo, um improvisado ambiente de espera. Marluce escolheu a que estava mais próxima à porta da sala do diretor para aguardar pelo seu aparecimento. De dentro de sua sala ou de outro lugar.

Em alguns minutos teve a atenção atraída para um barulho no interior da sala. Uma cadeira parecia ter sido rapidamente arrastada. Breves sons ocos e abafados pareciam indicar que duas pessoas se colocavam de pé. E se abraçavam. Ou seria a sua imaginação, fruto de certa curiosidade incontida? Dirigindo o olhar para a fechadura da porta, notou que ela não se achava tão fechada quanto lhe parecera ao chegar, embora não houvesse ainda a possibilidade de se ver alguma coisa. Viu então que seria fácil, com um leve e imperceptível movimento do pé, dada à posição em que se encontrava, criar um campo visual mínimo que lhe permitisse saber o que estava acontecendo sem ser percebida. Foi o que lhe possibilitou a identificação da fração do corpo de uma pessoa de costas, abraçando-se possivelmente a outra. A certeza de que não seria percebida fez com que ela milimetricamente com o pé afastasse um pouco mais a porta. O necessário para ver as mãos de Afonso pressionando as ancas de Marcel contra seu corpo, num abraço que se completava com o beijo entre os dois homens.

Não havia razões para se chocar. Marluce não precisou mais do que um minuto para concluir que não devia permanecer ali. Os poucos diálogos mantidos com Afonso não lhe tinham permitido, a princípio, maiores definições quanto à orientação sexual do diretor. Que lhe parecia mais clara agora. Mas certamente lhe convenceram de que ele não seria capaz de levá-la a presenciar a cena que acabara de assistir. Não havia motivos para isso. Ao levantar-se cuidadosamente da poltrona, valendo-se do tênis para evitar que algum ruído produzido no assoalho a denunciasse, Marluce percebeu com clareza de quem partira o recado que lhe dera o contra-regra. Marcel certamente encarava-a como uma concorrente.

O que lhe parecia desnecessário. A atração física entre ela e o diretor podia ter existido de fato. Tratava-se de um homem bonito e charmoso. Mas o que contou realmente depois foi o reconhecimento do seu valor artístico, inconfundível e facilmente identificável por qualquer um. Era, antes de mais nada, um coreógrafo de prestígio internacional, como ouvira dizer das integrantes efetivas do Corpo de Baile que ele dirigia. E que dizer da sua capacidade de liderança, para a qual contribuía o total domínio da arte que nele se manifestava de forma natural? Marluce sabia que dificilmente se interessaria por um homem assim, quase perfeito no que fazia. E desconfiava que o que tinha acontecido no camarim entre ela e Afonso pudesse ter sido um flerte casual, ou, quem sabe, a demonstração de um interesse heterossexual cuja permanência Afonso tivesse a necessidade de verificar.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 16/10/2011
Código do texto: T3280401
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