A Bailarina, Romance, Cap. X

Era previsível a subdivisão do grupo em outros menores, o que ocorreu naturalmente antes de todos entrarem no avião. Afonso ficou próximo aos seus assistentes, incluindo-se obviamente Marcel nesse grupo. Um outro foi formado pelos titulares do Corpo de Baile. E Ingrid ficou com as suas alunas. Mas propositadamente não fez questão de se sentar ao lado de Marluce. Não tendo o mesmo ocorrido em relação a Afonso e Marcel. Embora o avião fosse gastar apenas duas horas para vencer os 1.135 km que separavam as duas cidades.

Integra a Rede Platinum de Hotéis em Blumenau o Royal Platinum Plaza, localizado no centro da cidade. Com nove pavimentos e 123 apartamentos, o hotel foi o recomendado por dispor na ocasião de sete suítes, capazes de acomodar com bastante conforto até três pessoas cada uma. As suítes foram imediatamente bloqueadas pela agência de viagens para a “companhia” de balé de Afonso. A diligente Wanda, funcionária com certo tempo no teatro e conhecedora dos meandros da organização, já tinha feito a distribuição dos quartos muito antes de o avião levantar vôo em direção a Blumenau. Afonso ficaria com Marcel, o que não seria novidade; cada grupo de três bailarinas titulares ficaria com uma suíte; Vilma, Érica e Camila ficariam com outra suíte; a professora Ingrid e Marluce em outra; e finalmente a restante, a ser usada também como uma espécie de escritório da companhia, seria ocupada por ela e Roger, os dois assistentes. A distribuição agradou a todos, especialmente a Ingrid que não viu a necessidade de se movimentar no sentido de conseguir o que mais desejava. Procurou mostrar-se indiferente ao receber o cartão magnético de acesso à suíte na recepção, escondendo dentro de si com prudência a efusiva comemoração que acontecia. Marluce prosseguia sorrindo, procurando mostrar-se despreocupada, com a constatação de que tudo era festa ao seu redor.

Por volta de uma hora da tarde, todo o grupo já se achava acomodado em seus quartos. Como o regime era o de meia-pensão, o almoço, com horário estabelecido até às 15h, estava incluído nas três diárias. Decidiram todos descer para o restaurante em trinta minutos.

Ao entrar na suíte a ser compartilhada por ela e Ingrid, Marluce surpreendeu-se com o tamanho da peça. Em que eram mantidas duas amplas camas de casal, duas poltronas, minibar, mesinhas de cabeceira, abajours e uma pequena escrivaninha. Ingrid permitiu que ela entrasse primeiro e se familiarizasse com o ambiente, depois de gratificar o atendente que trouxera as bagagens. Observou que Marluce colocara a sua bolsa de mão sobre a cama mais próxima ao banheiro. Do que deduziu que poderia ficar com a cama mais ao lado da janela.

-Nossa, mas que quarto grande!, exclamou Marluce, mostrando-se surpresa com o espaçoso ambiente.

-As suítes são sempre mais confortáveis e maiores que os apartamentos considerados normais, explicou Ingrid.

-Dá tranqüilamente até para quatro pessoas, duas em cada cama, é claro. E vão dormir com todo conforto, porque espaço tem bastante.

-E esse é um hotel quatro estrelas. Imagina o de cinco!

Lavaram o rosto, tomaram as duas uma garrafa de água mineral e desceram para o almoço.

Todas as suítes reservadas para o grupo de Afonso ficavam no oitavo andar, com exceção da que foi disponibilizada para o diretor do Corpo de Baile, a quem foi oferecida graciosamente a suíte presidencial. Tratava-se de uma distinção concedida a Afonso pela Escola de Ballet do Teatro Carlos Gomes de Blumenau “pelos seus relevantes serviços prestados ao engrandecimento da cultura nacional”. Quem mais vibrou com o prêmio foi Marcel:

-Tá vendo? Tá vendo no que dá toda a dedicação e o árduo trabalho que vem te consumindo todos esses anos?, disse Marcel, jogando-se sobre o edredon macio que cobria uma das duas camas com quatro travesseiros de penas de ganso.

-Tô. Tô vendo é você aí na minha aba, certo?

-Já é, cara, já é. Tô mais é curtindo mesmo, tá ligado? Quero mais é ser amigo do rei, mermão, respondeu o solista, fazendo gracejos.

O entusiasmo permitia-lhes, em especial a Marcel, uma breve incursão por um tipo de linguagem a que efetivamente não estavam habituados. Mas que não era de todo desconhecida.

Marcel não sabia até que ponto Afonso, profissional de reconhecido prestígio, era um velho conhecido da direção do Corpo de Baile da Escola de Ballet de Blumenau. Não sabia que Afonso tivera a oportunidade de ensaiar coreografias com conceituados professores convidados pela escola, dentre eles a diretora do Escola Nacional de Ballet de Cuba. A homenagem, portanto, além de significativa era merecida, mas não teria sobre Afonso o mesmo efeito que se observava no jovem bailarino, seu acompanhante.

-Merecemos ficar sozinhos, certo? Deixa a plebe aí embaixo, brincou Marcel. A plebe sempre pode ser perigosa, maluco.

-Cara, não tem ninguém no andar de baixo que nos possa causar algum mal.

-É... eu sei. Mas tem algumas meninas aí querendo aparecer...

-Ah..., tá bom, disse Afonso, sabendo a quem Marcel quis se referir.

O amplo restaurante do hotel mantinha as linhas gerais de requinte, conforto e decoração de bom gosto dos demais ambientes. Após o almoço, servido por impecáveis garçons, todos de terno, o grupo se dispersou, mantendo-se mais ou menos os subgrupos que haviam se estabelecido. Afonso e Marcel afundaram-se nas poltronas da espaçosa sala de estar próxima ao restaurante – o piso luzindo tanto que refletia as imagens como se fosse um espelho –, tomaram chá e depois foram para a sua suíte. Não deram importância a um piano que tocava sozinho, as teclas mecanicamente acionadas por algum dispositivo eletrônico. Roger e Wanda subiram logo após a refeição para estabelecerem certos arranjos no quarto visando a improvisação de um cantinho para os dois que funcionasse como escritório da companhia. Do grupo de bailarinas titulares de Afonso, algumas foram para a piscina e outras resolveram buscar por algumas lojas nas cercanias do hotel, na direção oposta das alunas de Ingrid, que tinham saído com o mesmo objetivo. Com exceção de Marluce, com quem Ingrid fez questão de se afastar logo que pode.

-Você ligou para Eleonora?

-Liguei lá do aeroporto, antes de entrarmos no avião, respondeu Ingrid, estranhando a pergunta de Marluce.

-Na verdade era ela quem deveria estar aqui.

-Não concordo. Não se pode prever o que vai acontecer. É claro que ela estaria aqui, se não tivesse havido nada com ela. Mas você tem todo o direito. Tanto tem que foi você quem veio, e não ela.

-Isso poderia levar a uma discussão metafísica. Tipo, é o destino ou a coincidência?

-É verdade. Confesso que não saberia dizer qual a opção correta. Prefiro aceitar a realidade dos fatos, tentar ficar com as coisas como elas são, observou Ingrid, intrigada e ao mesmo tempo surpreendida pela abordagem de Marluce.

Novamente o modo de falar de Marluce mexia com a professora. E agora, por ser ao vivo, muito mais que ao telefone. Especialmente porque revelava certo conteúdo de que Ingrid jamais poderia suspeitar. Sentiu-se por isso imediatamente atraída e desejosa de que a relação entre as duas se aprofundasse, que fosse muito além daqueles cabelos negros, daquela boca carnuda e daqueles seios rijos e pequenos com os bicos erguidos sob a fina camisa de malha, coberta pela blusa de veludo azul aberta. Afinal aquela mulher, ou mulher-menina, sabia pensar. A vontade de Ingrid era a de abraçá-la, sentir contras as suas as pernas compridas de Marluce. Mas não havia ainda intimidade para isso.

-A sua posição pode ser a mais certa. Ficar com a realidade dos fatos. É prático, talvez até pragmático. Mas, não sei porque, não consegui ainda deixar de me seduzir pelo destino, prosseguiu Marluce.

-Quem sabe se não é você quem tem razão? Pode ser até que tudo funcione de modo ambíguo. Situações que possam ser atribuídas ao destino, momentos que corresponderiam à coincidência. Eu é que não fiz a minha opção. Prefiro ficar com o resultado.

-Associo o destino a uma conjunção de forças, convergência. A coincidência seria a dispersão, as forças numa situação de movimento aleatório.

-Nossa! Nunca pensei nisso. Acho que você acabou de estabelecer uma teoria, Ingrid não se furtava a se mostrar alarmada.

-Está zombando, é? Das bobagens que acabei de dizer?

-De modo algum, Lu? Jamais zombaria de você. Acho que faz sentido o que diz. Estou é boba de ver como você pode ter pensado nisso assim desse jeito.

-É uma maneira, ainda que possa parecer estranha, de me divertir, replicou Marluce, cujo rosto parecia agora repentinamente triste.

-Você se diverte pensando, é?, indagou Ingrid, com um leve sorriso. Pense então mais um pouquinho em mim.

-Olha só, pode me corrigir, se estiver errada: quando dizemos que o destino de alguém está traçado, não é difícil imaginar que uma conjugação de forças possa ter estabelecido o caminho a ser percorrido por uma pessoa. No caso da coincidência é diferente: não haveria concentração de forças que pudessem concorrer para uma situação que fosse o resultado do acaso, algo que fosse criado ali na hora, explicou Marluce, cujo rosto não revelava agora qualquer sinal de tristeza. Mas vamos deixar isso pra lá. Já me diverti bastante.

-E eu aprendi alguma coisa. Parabéns.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 18/10/2011
Reeditado em 18/10/2011
Código do texto: T3283562
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