A Bailarina, Romance, Cap. XII

O café da manhã, às sete horas, foi tomado por todos com certa brevidade. Dentro do que se podia esperar, diante da infinidade de opções que incluíam desde uma imensa taça de sorvete, de que podiam servir-se os hóspedes na ampla mesa em que se dispunham pães, bolos, biscoitos, doces, queijos, frutas, etc, até aos inúmeros pratos quentes, como manda a tradição em hotéis de categoria internacional. A preocupação era a de poderem visitar os pontos turísticos relacionados na lista da Wanda, além, é claro, de manterem a forma, para o que não estavam atentos os mais gordinhos, exatamente os dois assistentes do diretor.

Conseguiram sair às 8h30, já considerando pequeno o tempo de que dispunham, pois deveriam estar de volta ao hotel às 12h. Os ensaios teriam início às 14h30, conforme programação estabelecida pela assistente administrativa.

O micro-ônibus fornecido pela Prefeitura aguardava-os no estacionamento do hotel desde as 7h. Visitaram o Museu do Cristal; o Morro do Aipim – agora à luz do dia, de onde puderam contemplar a vista panorâmica da região central de Blumenau; a Biergarten (O Jardim da Cerveja), praça histórica próxima ao Rio Itajaí-Açu, onde saborearam, diretamente no local da sua produção, a melhor cerveja feita na cidade; e, nos fundos da praça, o Porto Fluvial de Blumenau. Estava prevista ainda uma caminhada no Trekking Parque Sptizkopf que, se houvesse ânimo, ficaria para o dia seguinte.

Ficaria também para o domingo a visita às lojas de artigos de malha, cama, mesa e banho, considerando-se a importância da atividade têxtil em Blumenau, com tudo a ver em relação ao interesse feminino. Wandinha, que não escondia certo prazer em ser reconhecida como guia turístico, já havia informado que a atividade têxtil era tida em Blumenau como o carro-chefe do setor secundário de produção, responsável por 36% da População Economicamente Ativa local. Com a transmissão dessas informações, Wandinha procurava igualar-se em apuro, no que fazia, ao que Afonso exigia de seus pupilos no palco.

Para o domingo ainda, após a exibição no teatro, ficara programado o que seria o programa imperdível da excursão – a Oktoberfest, “a segunda maior festa das tradições germânicas do mundo, só perdendo para a de Munique, na Alemanha”. Marluce era, de longe, a mais animada, tendo em vista a sua relativa intimidade com o chope. Ansiava por tomar chope numa tulipa de um metro de comprimento, que teria o aspecto de um tubo de ensaio de laboratório, como ouvira dizer, no qual o líquido se mistura com bolhas de ar quando desce.

Pontualmente às 14h30 Afonso, Marcel e Roger aguardavam pelas bailarinas da equipe no salão de eventos, especialmente adaptado para os ensaios de balé pela direção do hotel. A incontestável liderança do diretor não se confundia com a intimidade que ele pudesse ter – nem todos sabiam de maiores detalhes – com o único solista masculino do seu Corpo de Baile.

Ingrid e suas alunas chegaram quase à mesma hora. As demais bailarinas, titulares do Corpo de Baile de Afonso, demoraram-se por apenas cinco minutos. Afonso registrou com interesse e satisfação a presença de alguns integrantes do Corpo de Baile da Escola de Dança de Blumenau. Não estavam ali todos os quinze. Teve a informação de que os demais chegariam em no máximo vinte minutos.

-Hoje não cuidaremos muito dos passos e movimentos especiais a serem utilizados logo mais à noite e amanhã. Deixaremos isso, aos cuidados de Roger e Marcel, para os trinta minutos finais do nosso treinamento. Daremos ênfase aos exercícios físicos e ao elemento respiração. Vocês vão ter que aturar um pouquinho a minha rápida preleção. Prometo tudo fazer para que ela não seja chata, como eu. Tá certo?

Algumas pessoas sorriram descontraidamente, sem prejuízo da atenção ao diretor, posicionado no meio do semi-círculo formado pelos bailarinos. Marcel, ao lado de Afonso, assim como Roger, não tirava os olhos de Marluce. Que fingia não perceber. O diretor deve estar preocupado com a recuperação de suas energias. A noite pode ter sido longa e cansativa. O sorriso disfarçado nos lábios de Marluce era devido a esse comentário malicioso feito consigo mesma.

-Começo dizendo, continuou Afonso, que o trabalho respiratório depende dos princípios de concentração e relaxamento de que possamos nos valer, assim como dos movimentos de contração e expansão que utilizemos. A respiração sempre terá influência sobre a movimentação. Segundo Brenno Mascarenhas, coreógrafo (sei que vocês já devem ter ouvido falar dele), “a respiração incorreta possibilita um número menor de movimentos, além de provocar uma ruptura na seqüência de harmonia da dança”. Vejam como isso é importante. Devemos inspirar a cada vez que abrimos os braços, e expirar ao fechá-los, disse Afonso, procurando exemplificar com gestos. Com isso a coordenação fica mais clara, o que nos leva a poder entender o movimento. Brenno diz ainda que “a respiração deficiente provoca uma queda substancial na qualidade da dança. O desgaste do bailarino torna-se maior porque os músculos ficam tencionados e o equilíbrio e a sustentação do corpo são prejudicados”. Recomendaria que vocês em casa, tendo em vista apresentações futuras, se dessem à leitura de algo sobre Bioenergética. Com o objetivo de terem importantes informações sobre respiração e concluírem que a sua atuação não se dá apenas no plano físico, mas também no psicológico. Lembro ainda a professora de balé clássico Sylvie Lagache, para quem “antes da técnica é fundamental compreender o movimento. De dentro para fora. Sem separar o corpo da mente. Deixar a respiração fluir sem suspendê-la ou bloqueá-la, para que se tenha não somente uma substancial melhora na qualidade da dança e dos demais exercícios físicos, como também na qualidade de vida”.

Marluce vibrou interna e intensamente com os ensinamentos. Não se lembrava de ter ouvido algo assim nas suas aulas com Ingrid. O que não era pecado. Mas ficava comprovado, através dessas valiosas informações, o valor técnico e artístico de Afonso, e a enorme capacidade de recursos de que ele poderia dispor para o aprimoramento de sua técnica, o que lhe conferia o prestígio que tinha a nível internacional. E que ele colocava também à disposição do aprimoramento técnico de seus discípulos.

A ovação no fim do espetáculo Les Sylphides, protagonizado pela equipe de Afonso no Teatro Municipal de Blumenau, superou todas as expectativas dos organizadores do evento. Adivinhava-se pelo semblante das autoridades da Prefeitura presentes que tinha valido a pena o investimento. Não poderia ter sido melhor a relação custo-benefício.

Delirantemente aplaudido o casal Marluce e Marcel, antes de cerrar-se a cortina no palco e antes de receberem em seus camarins os efusivos cumprimentos dos patrocinadores do evento, professores, críticos e alguns bailarinos da Escuela Nacional de Ballet de Cuba, amigos de Afonso que visitavam Blumenau a convite do Estado de Santa Catarina.

Evidentemente que no palco, até pelas atitudes, liderança e exigência de Afonso, não pode ter qualquer influência o problema criado por Marcel em relação a Marluce. Cuja profunda concentração durante a dança não lhe permitia deter-se na figura de ninguém na platéia, nem mesmo em Ingrid, sentada na segunda fila atrás de Afonso, que passou a chorar discretamente durante a meia-hora final da exibição.

Após a saída do teatro, o grupo decidiu voltar de novo ao mesmo restaurante no Morro do Aipim. Dessa vez iriam todos, incluindo-se os dois amigos cubanos de Afonso. Marcel e Vilma eram os mais curiosos quanto à possível presença do cavalheiro alto e elegante em seu traje social e a bela e provocante loura que o acompanhava. Esperavam ver como ele se sairia ao retornar do banheiro à sua mesa.

Marluce estava feliz. Prometera a Ingrid que dessa vez ficaria com o vinho, já que o domingo estava reservado para a profusão de tulipas de chope na Oktoberfest. As ligações protocolares para mamãe e papai já haviam sido providenciadas antes do almoço no hotel. Do que se aproveitou Marluce para dizer que provavelmente não ligaria mais até ao seu regresso. A intensa movimentação mantinha-a ocupada quase que o tempo todo. Foi que o que transmitiu a eles sem a preocupação de convencê-los.

-E você, Ingrid? Ligou para a Eleonora?, perguntou Marluce, praticamente ocupando com a professora na mesa do restaurante as mesmas posições da noite anterior.

-Liguei de manhã. Daqui do Morro do Aipim. Naquela hora em que contemplávamos a vista da cidade. Você tinha ido buscar água mineral no bar com a Vilma e a Érica. Lembra?

-Acho que sim. E aí, tá tudo bem por lá? Ela já está mais recuperada?

-Creio que sim. Aceitou meus conselhos e até já foi ao cinema sozinha, isto é, com uma prima.

-Ela soube que as apresentações aqui seriam no sábado e no domingo?

-Claro. Ela sabe de tudo. Entrou no site do teatro. Tem toda a programação. Não teria sentido virmos até aqui, com todo esse investimento, para uma só apresentação.

-Você não vai ligar pra ela para dizer-lhe como foi tudo hoje?

-São onze horas da noite, Lu. Ela pode até estar acordada. Mas fico com medo do que sua mãe poderá pensar. Não quero parecer mal educada ou inconveniente.

-Está bem. Posso perguntar se já pediu o vinho?

-Pode perguntar o que você quiser, carinho. Você esteve esplendorosa hoje. Emocionei-me bastante. Fiquei até com vergonha de que as pessoas ao meu lado pudessem ter percebido.

-Foram suas aulas. Fiz o que pude. Mas foram também os ensinamentos de Afonso. Você estava lá hoje de tarde. Viu o que ele disse sobre respiração? Foi um recado rápido, límpido e maneiro. E como me ajudou!, observou Marluce, não escondendo o entusiasmo.

-Ele é maravilhoso. E bonito. Fico feliz por ele não usar esse atributo sobre você, disse Ingrid, deixando-se envolver pela ambiência de festa e certa lubricidade trazida pela reunião animada e pela esperada chegada do vinho, que parecia fazer efeito antes de ingerido. O que fez com que Ingrid aproximasse a pesada cadeira de madeira em que estava sentada da de Marluce, na intenção de que dali a pouco as pernas dela e da aluna, posicionadas em paralelo, pudessem eventualmente se tocar.

-Você sabe que beleza pra mim não é tudo, ponderou Marluce, embora ele pareça ter o resto.

-Viu só?, disse Ingrid, mostrando com o leve sorriso que aceitava a possível provocação. Temo que ele seja irresistível.

-Muitas coisas o são. Gostou da colocação do objeto?

-Petulantezinha, você, héin?, ironizou Ingrid. Não..., não diria isso nunca.

-Teria todo o direito. Se muitos de quem não gosto dizem... Você, eu perdoaria.

-Adoro ser perdoada. Apesar de não ser irresistível.

-Quem sabe? Irresistível como o azul do fundo do mar, quando podemos ver; como a vontade de se jogar debaixo da cachoeira; como o sorriso do bebê; como a sombra da grande árvore num campo florido; como o colorido da cor da pele de quem se gosta... E por aí vai...

Ingrid gelou ao ouvir as últimas palavras de Marluce. O colorido da cor da pele poderia não ter nada a ver com a sua pele sardenta. Mas seria apenas uma coincidência? Ou uma feliz armadilha do destino?

-Irresistível é você, carinho, disse Ingrid, recuperando-se do devaneio. E também bastante intelectual pra idade que tem. Estou cada vez mais apaixonada, se é que posso falar assim. Na foi à toa que chorei no teatro.

Marluce nada falou. Apenas valeu-se de um sorriso contido e da aproximação cada vez maior entre as duas para pousar os lábios rapidamente nos lábios da professora. Um selinho tão nu e sozinho quanto delicado.

-Oh, meu Deus!, falou Ingrid, respirando fundo. Você quer decretar a minha morte ou o quê?

-Soa como uma tragédia brasileira aqui em Blumenau, interveio Marluce, rindo mais desinibidamente.

-Você brinca, né? Agora... Ia falar uma coisa, mas deixa pra lá.

-Isso é pra que eu insista que você fale?

-Provocadora mesmo, não é?, respondeu Ingrid, resolvendo sorrir também. Mas vamos lá. Eu aceito. Agora, falando sério: você sabe que há todas as condições para que possa pintar uma dependência de que eu não possa me livrar facilmente?

-E pra quê se livrar se ela não lhe trará mal algum?

O vinho chegou, a comida foi servida e de repente as duas se deram conta de que precisavam participar do bate-papo animado da mesa. Pondo fim àquela conversação paralela que, apesar do selinho provocativo, não chamou a atenção de nenhum dos presentes. Marcel, e agora também Vilma, continuavam ainda preocupados com o cavalheiro elegante e o seu possível deslocamento até ao banheiro. Mas ele acabou não aparecendo. Nem a sua bela loura viera esperá-lo como na noite anterior.

Depois de pagarem a conta, providência que ficara a cargo de Wandinha, Afonso esperou que alguns dos titulares de seu Corpo de Baile se retirassem para combinar com seus dois amigos cubanos e com os demais um encontro em sua ampla suíte para o dia seguinte, depois do espetáculo e da noitada na Oktoberfest. Além dos dois amigos de Afonso, dos assistentes e de Marcel, o convite foi estendido a Ingrid, a Marluce e a Vilma, esta certamente pelo maior envolvimento com Marcel, que se dera a partir do interesse dos dois pela presença no restaurante do cavalheiro que intrigara o grupo na noite anterior. Afonso desaconselhara a presença de Camila que, por ser muito novinha, poderia suscitar algum tipo de observação desconfortável da gerência do hotel, no caso de eventuais excessos que não pudessem ser evitados. Érica, quase que da mesma idade da mais nova do grupo, não iria também para que Camila não ficasse sozinha. No mais, era possível que duas ou três bailarinas do Corpo de Baile de Afonso, mais chegadas a ele, também pudessem aparecer.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 20/10/2011
Código do texto: T3287467
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