A Bailarina, Romance, Cap. XVII

Os jovens que discutiam com seguranças e a equipe de apoio do teatro o direito de se sentarem no chão do corredor entre as duas fileiras de assentos, não tinham a menor idéia da apresentação a que iriam assistir. Com o teatro completamente lotado, o espetáculo só teve início depois de vinte minutos da hora marcada, com todos devidamente acomodados, face à permissão para que se sentassem no chão os que tinham adquirido ingressos extras.

Do primeiro ao último minuto Marluce dançou o que sabia e tudo o que ainda faltava a aprender. Leveza, concentração, firmeza de movimentos e até sutis e cabíveis nuances de criativa improvisação individual, que compensassem alguns equívocos do outro solista, puderam ser observados. Marluce tinha a noção de que aquela seria a sua mais completa apresentação. Porque o fazia com raiva ou pena de si mesma. Às vezes ódio somente. Ou talvez a sinistra mistura de temor com amor. Diante do público, olhava sempre para o fundo do corredor que separava os dois lados da platéia. Por onde esperava entrar Eleonora, abrindo-lhe os braços para o abraço sincero de uma irmã. Ou andando debochadamente na sua direção para cumprimentá-la com escárnio. Nesses momentos era maior a superação de si mesma, o que permitia que uma forte carga de emoção se transmitisse até aos que estavam no andar superior. Fato que redundou na maior ovação jamais presenciada em toda a história daquele teatro. Para o disfarçado desespero de Afonso que, impassível em sua cadeira, não conseguia entender a razão de toda aquela assombrosa capacidade interpretativa. Atrás dele, como na noite anterior, Ingrid também não podia acreditar no que estava vendo. Era muito bom para que fosse somente aquilo. Haveria uma razão para todo aquele excesso de beleza e contundente perfeição artística, privilégio apenas reservado aos grandes mestres. Por conta do que temeu que houvesse algo de errado naquilo tudo.

Oktoberfest. Apenas Ingrid e suas alunas foram conferir. Marluce procurando convencer a todas que mantinha o mesmo entusiasmo. Fazia parte da sua tentativa pessoal de auto-reconstrução. Não que tivesse sido inteiramente destruída. Mas não podia ignorar que os acontecimentos tinham tomado um rumo que não previra. Não propriamente a sua desconstrução, mas talvez a de alguns dos seus desígnios, para não dizer alicerces. Não fora o apelo físico o que a assombrara. Mas o que ele continha de excesso em relação à sua essência. Porque não se tratava apenas do prazer. Mas do prazer atrelado à punição. Ou será que estou viajando?

Ingrid percebia a mudança. Notava o esforço que Marluce fazia para mostrar que continuava a mesma. Algo tinha acontecido enquanto Ingrid estivera com Wandinha.

Marcel não tinha aparecido. Ninguém sabia dele. Antes do início da apresentação ainda se esperava que ele pudesse surgir, do meio das nuvens do seu capricho. Tal era a noção que Afonso queria que todos tivessem. Marluce admirou o solista. O coração tem o seu momento de falar alto. De suplantar a razão.

Roger e Wandinha, depois de deixarem o teatro, acompanharam Afonso ao hotel. Para dar início aos preparativos para a festa que se realizaria na suíte do diretor. Agora mais confirmada ou mais necessária ou mais oportuna que nunca. Marcel tinha ido, e o quê? Todos um dia se vão. E um dia podem ir sem querer. Pelo menos posso escolher onde ir agora, pensava Afonso. Que conhecia bem o festival de cerveja de Blumenau. Assim como seus assistentes e a maioria das bailarinas de seu Corpo de Baile. Então não precisavam ir até lá de novo.

Era de jovens a maioria dos presentes na Oktoberfest. Só eles seriam capazes de enfrentar a maratona de 17 dias de festa, mais de 450 horas de música e milhares de litros de cerveja. A festa era uma verdadeira feira, para a qual concorriam bandinhas de música, um variado comércio e a distribuição de bebida em carros de chope ou cerveja. E uma azaração total. Marluce e Vilma, do grupo as mais assediadas. Objeto de olhares insistentes. Até de algumas garotas. Ingrid não precisava fazer questão de mostrar a Marluce que se mantinha imune ao sentimento de posse. Sentia que Marluce já não era mais tão sua.

-Blumenau é a maior cidade alemã fora da Europa, bradava um homem louro de meia idade.

Gordo, a bermuda cinza encharcada de suor, meias brancas até aos joelhos encardidas de poeira, o bigode acompanhando o movimento dos lábios. O sorriso que parecia infantil vindo junto do oferecimento da tulipa de um metro a Marluce.

-Vamos ver se a morena linda consegue beber tudo.

-Eu posso tentar. Se não conseguir, você me dá um prêmio, disse Marluce.

-Deveria ser o contrário, correto?, protestou o louro.

Marluce não conseguiu ingerir tudo. Terminou em sorrisos que Ingrid considerou meio forçados. A professora a ajudou com o restante. Estava atenta à aluna desde que a tinha encontrado no salão de jogos ao telefone com a mãe. Parecia calma demais. A voz muito mais suave do que de costume. O diálogo ao telefone o atestava. E depois, à noite, aquela irretocável, inesquecível exibição. A exuberância do balé clássico que, segundo Ingrid fora informada, tinha sido o carro-chefe das escolas que antecederam ao PróDança de Blumenau dentro do Teatro Carlos Gomes. Uma tradição mantida pelo Corpo de Baile local, através de encenações clássicas e neo-clássicas nos padrões da Royal Academy of Dance. Isso explicaria a surpreendente ovação do público ao final do espetáculo e o reconhecimento das bailarinas da cidade, que completavam a equipe dirigida por Afonso, do valor artístico demonstrado por Marluce.

Mas não explicaria o que fizera a garota dançar daquela forma, atingir aquele nível reconhecidamente insuperável. O que poderia levar meses ou anos, Marluce o tinha conseguido de uma hora para outra. Era um salto de qualidade de que se devia desconfiar.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 26/10/2011
Código do texto: T3298853
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