A Bailarina, Romance, Cap. XVIII

Pequenas bolas de gás, presas no teto em treliça da sala maior e da saleta, decoravam a suíte do diretor. Copos para whisky, taças finas para vinho e champagne e copos menores para água e refrigerante, todos em cristal, chamavam a atenção de quem entrava, pela disposição enfileirada sobre a arca encostada na parede frontal à porta da suíte. Um conjunto de três bandejas douradas, apoiadas individualmente sobre alvíssimas toalhas de linho com a gravação discreta do logotipo do hotel, era usado para reunir as taças e os copos. Uma bandeja menor, ao lado das outras três na mesma arca, com o fundo revestido por uma toalha vermelha de linho, continha os dois tipos de garfos, colheres e facas a serem usados pelos convidados.

Marluce resolvera ir. Decidira-se durante o banho após a chegada da Oktoberfest. Muitas vezes se cortam os efeitos da picada da cobra com o seu próprio veneno. Ficar no quarto ou pelas dependências do hotel, esforçando-se para demonstrar que nada do que tivesse acontecido causara-lhe retraimento, não contribuiria para a recuperação de seu estado de ânimo anterior. E sua presença no quarto com Ingrid certamente contribuiria para o favorecimento de um ambiente de desconforto. Pelo pouco interesse na sustentação de diálogos com a professora e, muito menos, na aproximação física entre as duas. O que Ingrid já tinha percebido.

Ingrid, por sua vez, notando que havia algo de estranho em Marluce, pensara em convencê-la a não ir à festa na suíte de Afonso. Por experiência própria em dois ou três encontros desse tipo na casa de Afonso, poderiam acontecer surpresas que Marluce não tivesse condições de assimilar com facilidade. Mas preferiu manter-se neutra. Não queria dar a impressão de que estivesse tomando conta de Marluce. E menos ainda de que achasse que Marluce não saberia se conduzir adequadamente por não ser adulta.

Ao entrarem as três na suíte presidencial – Vilma juntara-se às duas ainda no corredor –, Marluce espantou-se com o requinte do ambiente, que lhe pareceu muito mais luxuoso do que o local em que estivera logo após o almoço. Bolas pendendo do teto, cortinas brancas decorando os janelões das salas, os diferentes tipos de copos e taças sobre as reluzentes bandejas douradas, os talheres de aço inoxidável sobre a bandeja de fundo vermelho, as toalhas branquinhas sobre a arca, os confortáveis e amplos conjuntos de sofá na sala maior, um deles já seu conhecido, tudo conduzia à idéia de opulência. O luxo como dimensão do poder de ostentação. Ele próprio com o seu poder emasculador, que explicaria talvez a preferência de homens como Afonso por ambientes desse tipo. Diante de todo esse aparato de luxúria, Marluce se deu conta de repente de que não saberia dizer onde poderia estar a sua vontade pessoal. Começou a pensar que todos esses atributos poderiam estar destinados – ou pelo menos acabar provocando – ao enfraquecimento da vontade de cada um, levando quem sabe à degenerescência moral de todos. Ou pelo menos dos mais desavisados. Ingrid parecia ler seus pensamentos. Ao tempo em que ela mesma, apesar de não estar tão desabituada a tais ambientes, lembrava-se das leis suntuárias, segundo às quais produtos como jóias, ouro e prataria só poderiam pertencer aos reis, ou quando muito à classe nobre. Tratava-se da distinção social, da qual faria parte o argumento do prazer. O luxo seria o ápice da busca do prazer. Necessariamente atrelado ao individualismo. Que naquele caso se estendia ou disseminava entre os que compunham o seleto grupo de pessoas presentes. Marluce ali entre eles.

Afonso cumprimentou as três, vindo recebê-las à porta. Mas não houve a esperada distinção à Marluce. Que já contava com isso, achando até melhor que fosse assim. Porque não representaria nenhum ganho, em relação à ela, sob o ponto de vista moral. Marluce estava indo à festa com a disposição de ignorar Afonso, tanto quanto fosse possível. E este a tratava com uma disfarçada indiferença, valendo-se para isso de uma polidez e delicadeza enganadoras, em geral disponíveis aos que chegam para encontros dessa natureza.

As três notaram a ausência de Roger que, conforme souberam depois por Wandinha, tinha sido incumbido por Afonso de procurar por Marcel.

Escobedo e Ochoa, que haviam conhecido no Morro do Aipim, conversavam animadamente num sofá da saleta menor, enquanto Wandinha e sua amiga Celita, de Blumenau, entre risos e cochichos na cozinha, enchiam de salgados um pequeno tabuleiro de madeira envernizada com dragõezinhos incrustados em suas bordas.

Marluce e Ingrid ocuparam o mesmo sofá na sala maior, separado do outro conjunto por uma ampla mesa de centro. Num dos sofás desse outro conjunto, precisamente o que fora utilizado por Afonso e Marluce mais cedo, sentou-se Vilma, impressionada com a bandeja de prata vazia, sobre a mesa de centro, cujo fundo parecia um espelho de tão reluzente. Dois pesados cinzeiros de cristal estavam dispostos a cada lado dessa bandeja vazia, na direção da diagonal em relação à mesa.

De onde estavam, Marluce e Ingrid podiam notar que permanecia fechada a porta do único quarto da suíte, que dava para o pequeno hall que a separava da saleta menor. Por esse hall se dava o acesso ao banheiro social do apartamento.

-Vocês bebem o quê?, perguntou Wandinha, depois de ter colocado sobre a mesa de centro o tabuleiro com os salgados.

-Bebo um vinho, respondeu Ingrid.

-E você, Marluce?

-Vou de água mineral.

-Água mineral! Tá maluca, menina? Quer enferrujar, é?, brincou Wandinha.

-É que tomei muito chope na Oktoberfest.

-Vou querer um vinho também, antecipou-se Vilma. Que por estar de costas, não viu as duas mulheres que saíam do quarto da suíte, uma delas, sem muito sucesso, ajeitando com as mãos os cabelos, que continuaram bastante desalinhados. Tratavam-se de Telma e Andreza, as duas bailarinas que tinham sido objeto das imprecações do mendigo antes de irem ao aeroporto tomar o avião para Blumenau – Telma, a da língua gorda e vermelha.

-Como vão vocês?, indagou Telma, sentando-se com Andreza no sofá vazio próximo a Vilma. Curtiram muito a Oktoberfest?

-Deu pra curtir, sim, respondeu Vilma.

-E vocês? Não foram?, perguntou Marluce.

-É bacana, é legal. Mas já fomos umas cinco ou seis vezes. Já não é mais novidade pra gente, respondeu Andreza.

-A surpresa vai ser chegar aqui um cara com aquele boné 88!, disse Vilma,

-É ruim, héin! Aqui não dá pra ele não, disseram Telma e Andreza praticamente ao mesmo tempo.

Foi nesse exato momento, cerca de meia noite, que a campainha soou. Ochoa, que servia-se de whisky, apressou-se em abrir a porta.

-Olá, Mumbaça!. Como é que tá, negão?

-Manero, manero. Tudo joinha.

-Pensei até que você não viesse mais, falou Afonso, aproximando-se da porta ao ouvir a voz de Mumbaça. Tudo em cima aí, negão?

-Tudo certo, chefe. Feijão da melhor qualidade. Arroz nem se fala.

-Valeu, valeu. Bandeja de prata ali na mesa de centro. Se ajeita com a Wandinha lá na cozinha e depois elas e você começam a servir aqui pela sala. Vamo à luta porque já tá ficando tarde. Senão ninguém pega avião nenhum amanhã. Certo?

-Já é, chefe, respondeu Mumbaça.

Mumbaça não perdeu tempo. Juntou-se logo a Wandinha e Celita na cozinha, deixando com as duas a incumbência de acabar de enrolar os cigarros de maconha, enquanto ele se encarregava de estender as duas carreiras de cocaína na bandeja de fundo reluzente. Mumbaça, um negro alto e forte que fora lutador de luta livre e policial civil, era o contacto de Afonso em Blumenau para a obtenção daquilo que significava para alguns uma das modalidades do verdadeiro prazer. Mumbaça atuaria também como segurança, especialmente numa reunião como aquela, com um número pequeno de participantes, no caso de uma eventualidade.

Wandinha e Celita ainda não tinham terminado de enrolar os cigarros e Mumbaça já estava servindo a cocaína na bandeja a Afonso, Escobedo e Ochoa. Que cheiravam sem se importar com a presença de Ingrid, Marluce e Vilma ali ao lado. As três não sabiam se riam disfarçadamente ou se ficavam sérias. Os olhos arregalados de Vilma talvez indicassem uma vontade de participar. Nada foi oferecido a elas.

Na cozinha, tendo terminado de enrolar os cigarros de maconha, sob o efeito do whisky que haviam bebido, Wandinha e Celita beijavam-se e se esfregavam ainda discretamente, entre risos e cochichos, Celita sendo contida na sua intenção de tirar a saia da amiga. As duas vieram depois oferecer os cigarros de maconha a Ingrid, Marluce e Vilma. Apenas Vilma aceitou, no que não houve interferência contrária das outras duas. Os cigarros chegaram até Telma e Andreza, que se aconchegavam no sofá que ocupavam. Afonso e os dois cubanos, devidamente “cheirados”, retiraram-se para a saleta ao lado, de onde poderiam ser vistos por quem estivesse na sala maior, face ao largo vão em arco entre os dois ambientes.

A tensão aumentava a cada momento. Era o que sentiam Marluce e Ingrid, esta não desgrudando os olhos da primeira. Esperava a qualquer instante pela decisão de Marluce de ir embora. Vilma estava mais relaxada. Sendo por isso objeto dos olhares insinuantes de Celita, sem prejuízo das carícias mais ousadas que esta fazia em Wandinha quando as duas chegavam à cozinha.

Mumbaça mantinha-se discreto, com seu cigarro de maconha, a um canto da sala. Marluce não pôde deixar de notar, assim como Ingrid e Vilma, as três ainda sentadas, o corpo de Andreza desaconchegando-se do de Telma em direção à extremidade do sofá, trazendo nesse movimento a calça jeans da amiga. Telma ficara apenas de blusa de malha e calcinha, convergindo para o meio de suas pernas os olhares das quatro mulheres na sala, intrigadas talvez com o volume criado pela grande quantidade de pelos contidos sob a calcinha. A excitação foi maior quando Andreza puxou com violência a calcinha de Telma, até aos tornozelos, para mergulhar o nariz no meio da mata negra à sua frente. Ingrid, Marluce e Vilma fazendo o que podiam para se manter impassíveis. Sendo que Ingrid deixava-se trair pela inquietação quando via, valendo-se das pernas afastadas de Telma e do rápido afastamento da boca de Andreza, a ponta do grelo avantajado da primeira, lembrando-se da língua vermelha e gordinha que fora exposta ao mendigo.

Vilma havia esquecido dos olhares de Celita. Que havia esquecido dela também, na medida em que ficavam cada vez mais imaginativas as brincadeiras sexuais entre ela e Wandinha na cozinha. Vilma começava a não ver mais sentido em permanecer ali, a não ser pela maconha, que julgava ser de boa qualidade. Mumbaça não era bem o seu tipo.

Havia dois banheiros na suíte. O do quarto e o que se tinha acesso pela saleta menor. Marluce não desejava sair de onde estava. Talvez por já estar satisfeita com o que estava vendo. Ou, na verdade, por temer o que ainda poderia ser visto. Mas não houve jeito. Não poderia continuar contendo a urina. O que a levou a encontrar na saleta ao lado Afonso e os dois cubanos sem calças, mantendo no corpo apenas as camisas: Ochoa tentando penetrar Afonso e este oferecendo o pênis a Escobedo. Marluce entrou no banheiro, fechando rapidamente a porta. Afonso, visivelmente sob os efeitos da droga, ainda a olhou com visível desinteresse. Os outros dois não a viram.

Contemplando no interior do banheiro, enquanto urinava, nas paredes o belo efeito das peças cerâmicas num salmão que se diluía progressivamente até se transformar em azul, Marluce não conseguia entender como podiam conviver numa só pessoa elementos do mais absoluto caráter mundano, da mais absoluta morbidez e desvario, e recursos profissionais de tão elevado conteúdo artístico. Mas concluiu rapidamente que não estava sendo vítima de um choque visceral. Que não estava sendo agredida. Que a única pessoa que a agredira fora ela mesma. O que não a impediu de se comprometer de fato com a decisão acalentada à tarde, depois dos acontecimentos anteriores na suíte presidencial.

Ao regressar à sala, agradecendo ter sido ignorada por Afonso e seus cúmplices na sala menor, Marluce comunicou a Ingrid e a Vilma a sua intenção de ir embora. Encontrou as duas ainda sentadas e também inteiramente deslocadas em relação ao que acontecia na festa. Telma e Andreza agora pareciam querer a participação de Mumbaça, que sorria despreocupadamente a seu canto, dando a impressão de não estar muito interessado. Talvez por participar com freqüência de reuniões desse tipo. Iria sair também pouco depois de Ingrid e suas alunas, para quem abria a porta agora. Elas saíram sem se despedir de ninguém, além dele. No exato momento em que Roger chegava, sem notícias de Marcel.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 28/10/2011
Código do texto: T3302449
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