O escapista

Quando entrou no recinto, o sol do fim de tarde martirizava os santos eternizados nos vitrais coloridos. Destilada das imagens vítreas, uma tênue luz de cores mescladas banhava a nave da igreja, pintando-a com um ar sacro e solene. Foi recepcionado pelo mormaço daquele ambiente quente logo em seus primeiros passos, como se um quê de arenoso e velho roçasse sua pele. Seus poros reagiam ao calor daquele dia de fevereiro, respondendo com um suor frio que lhe descia pelas costas, emplastrando a camiseta contra a pele. Estava plena e profundamente convicto das conjecturas que enfim o conduziram até ali, bem como mantinha segurança das eventuais atitudes que tomaria daquele momento em diante, e por isto, justa e unicamente por isto, desconsiderava que o nervosismo tivesse parte naquele suor que parecia minar de seu corpo. Calor do diabo, praguejou por fim, enquanto sacudia a camiseta pela gola em um pinçar de dedos na tentativa de capturar alguma refrescância.

Como que ironizando as noções de céu e inferno, a temperatura parecia ainda mais elevada naquele solo sagrado de ventilação precária; uma inconveniência que levava os fiéis a evitar peregrinações nos horários de pico. Desta forma, a cena com a qual o homem se deparou era exatamente a que havia esboçado em sua mente dias antes: fazendo pouco recheio para as inúmeras fileiras de bancos largos, escassos pecadores e outros tantos desamparados se empoleiravam em frente ao altar, pois, como relembrava agora ao vê-los, concluíra na ocasião que apenas dois pesares arrebatam quem seja a prostrar-se em fervorosa devoção independente de incômodos: se não a culpa, a desolação. Apenas a isto respondem as ovelhas desgarradas; não a promessas de pasto, mas sim quando dele sobra apenas terra nua, pensou. Olhava-as com desdém, e no mesmo instante compreendeu que as odiava. Havia escolhido a hora certa, afinal.

Seus passos firmes ecoavam pelo ambiente enquanto seguia em direção ao altar, dobrando à direita pouco antes de alcançá-lo. Assim, passou despercebido à maioria dos fiéis e infiéis, que, empenhados em aliviar suas dores, tornaram-se alheios ao resto do mundo. Pôde assim manter sua caminhada despreocupada ao longo do transepto, dirigindo-se a uma estrutura de madeira nobre talhada com motivos florais mantida no fundo do apêndice da igreja. O móvel era composto por um compartimento central, onde uma grande cruz estampava sua porta, e um anexo lateral, rodeado por uma pesada cortina roxa de veludo que se desprendia de um semicírculo fixado na porção superior da estrutura principal. Contudo, a despeito de seu requinte destoante, sua posição estratégica nas sombras da igreja garantia ao conjunto o sigilo cobrado em seu uso.

Naquele momento a cortina estava fechada, isolando os segredos que ali corriam do resto do mundo. Por sorte, tão logo o homem se aproximou, uma senhora corpulenta de aspecto curvo e traços duros afastou o tecido roxo com as mãos ressecadas e saiu do confessionário. Ajeitou as longas saias de pregas, aprumou o lenço que levava na cabeça e foi-se embora com um choro manso e remediado, sem ao menos notar a presença do outro a poucos passos dali. Alheios ao resto do mundo, voltou a lembrar, não conseguindo controlar um esboço de sorriso que a boa ventura soltara em seu rosto.

Seus olhos correram furtivos por sobre os ombros enquanto seguia em direção ao confessionário. Por fim, cobriu-se no crepúsculo da cortina e saiu definitivo do alcance do mundo. Em seu novo universo vedado pelos limites do tecido roxo, tateou com os pés uma pequena banqueta. Ao ajoelhar-se, trouxe para sua frente a grelha que divisava o seu lado com o do pároco. Instintivamente, pigarreou tentando conseguir a atenção para si antes de começar:

—A bênção, padre.

—Deus te abençoe, meu filho. – respondeu o sacerdote de dentro do cubículo de madeira.

A despeito da pouca procura por parte dos fiéis naqueles períodos de verão, o padre daquela comunidade, um senhor simples e de olhar cansado, mantinha-se fiel as suas obrigações eclesiásticas. Grande jejuador e mantenedor dos costumes, o taciturno era afamado em todas as paróquias circundantes, tanto pelo clero como pela comunidade, como portador de uma sabedoria desmedida e serena. Muitos recorriam a suas palavras na busca de soluções para seus problemas e verdadeiramente acreditavam na absolvição dos pecados se assim ele o sentenciasse. Por seu conhecimento todos o procuravam, e por seu conhecimento, ele o procurou.

—Diga-me, meu filho, quais são os pecados dos quais se arrepende? – prosseguiu o padre cerimonialmente.

—Bem, senhor – emendou o homem desprendido enquanto endireitava as costas – pecados eu carrego muitos, ah, como carrego! No entanto, não vim falar deles hoje. Deixemos estes onde estão, que ali não farão mal algum. São de tudo inofensivo – então, como que recordando de algo, corrigiu-se. – Ajudarão, na verdade. Ajudarão! Ouça o que te digo! Enfim, padre, não deixe que me prolongue aqui e perca o fio de nossa conversa, sou dado a esses desvios. Não, senhor, não vim falar de meus pecados. Meu alvo é outro. Vim é falar do pecado de Deus.

A última sentença, dita inoculada com malícia, levou o velho a um imediato e momentâneo estado de torpor. Recobrando-se, aproximou-se da grelha até o nariz quase roçá-la e comprimiu os olhos enquanto buscava delimitar um rosto dentro da penumbra do outro lado.

—Ora, meu filho, Deus é benevolente e infalível. Jamais, ouça bem, jamais haverá pecado algum cometido por Ele, isto te digo.

—Aí que se engana, padre. Há sim um pecado. Um único e isolado caso de maldade. Não é evidente como os deslizes escancarados que cometemos. Roubo, morte, estupro. Corrupção! Ah, mas nem a corrupção consegue ser mais silenciosa do que este pecado. Não o vemos, senhor, entende? É algo tão sutil, tão elegante, que a todos passa despercebido. Mas te digo, não há perversidade maior do que a que o habita.

—Não concordo com nada do que diz, garoto. Contudo – ponderou o sacerdote – se quero ajudá-lo em sua angústia, por que de certo há uma angústia, preciso antes entendê-lo. Diga-me, qual seria este pecado que você atribui a Ele?

—Deu-nos a eternidade. Tão só. Nada mais, nada menos. – disse o homem lentamente, como em um sussurro pesaroso.

Com o impacto da revelação, o padre afastou-se da tela que o separava do estranho, como que percebendo que estava em um caminho perigoso. Não tanto pelo terreno em si, mas sim pela companhia que trazia. Por alguns segundos, apenas os Pais-Nossos içados aos céus pelos fiéis em frente ao altar eram ouvidos. Enquanto isso, do outro lado do látice, tinha certeza que o homem sorria.

—Me entenda, padre. Para o caminho que vou seguir, preciso que me entenda – retomou o homem demolindo o silêncio. - Decifra-me, não era isto que dizia a esfinge? Pois bem, decifra-me, padre.

—E na falha, também me devora? – retrucou o vigário.

—Não seja afoito, senhor. Isto só saberá depois que me entender – ao padre, cada frase disparada parecia como que uma armadilha para ursos tivesse sido armada. Todo cuidado era pouco para onde colocaria os pés.

—Está certo, está certo, tentarei entendê-lo. Ou melhor, te entenderei, meu jovem, apenas não concordarei com sua tese, mas só com isto já estarei cumprindo o que me pediu. Sabe, tenho muitos anos de pregação. Foram muitos aqueles que já encontrei com a fé abalada. Mas você... você tem algo diferente, garoto. Disse-me agora que a bênção da eternidade, o tesouro dos eleitos, é uma desventura. Que nos oferecê-la foi um pecado cometido por Deus. Estou curioso, confesso. Como, diga-me, como a vida eterna pode ser algo ruim?

—Como disse, é algo sutil e elegante, um pecado apenas concebível e praticável por uma divindade, de fato. A grande maioria apenas o perceberia quando já fosse caso consumado. Diga-me, padre, quantos anos o senhor tem?

—Setenta e quatro.

—Pois bem, setenta e quatro. Vamos às contas. Por favor, me acompanhe, sim? Custaram-te sete anos até estar apto a entrar em uma escola. Lá, aprendeu a ler, escrever e o básico das ciências humanas. Por este caminho você gastou onze dos seus anos. Joguemos mais uns três anos, para sanar qualquer margem de erro em nosso cálculo, de peregrinações pelo mundo até decidir-se ser padre. Estou certo? Ah, deixe disso, três, cinco, dez anos que sejam, serão absurdamente ínfimos no resultado final, deixemos como está. Paramos onde? Ah, sim, no inicio do celibato. No seminário, suponhamos que sejam mais oito anos até estar finalmente pronto para o ofício. Podemos aí dizer que o senhor já era um padre, não é? Não apenas por ostentar a batina, mas sim por já carregar consigo os conhecimentos de um padre. Está vendo? Conhecimento. Guarde isto. Continuando, seguiram-se muitos e muitos anos com o senhor pregando, vivendo e, logicamente, aprendendo. E este processo mantém-se até hoje, neste exato instante, em que você está aqui diante de mim, com setenta e quatro anos, aprendendo. Agora suponhamos que você viva mais outros setenta e quatro anos, contudo se cansou da vida religiosa. Largou tudo para ser engenheiro. Em todos estes anos, você ganharia todo o conhecimento que um engenheiro conquista em uma vida. Porém, não podemos nos esquecer da sabedoria que você carregava quando padre. Assim, nesse futuro fictício, você carregaria tanto o conhecimento que tem um sacerdote quanto o de um engenheiro. Até agora usamos apenas cento e quarenta e oito anos da eternidade. Vê onde quero chegar, padre?

—Sinceramente, não vejo nada, jovem. Como o conhecimento poderia ser algo ruim? Você apenas está muito confuso e se perde naquilo que pensa. Vamos, deixe-me ajudá-lo.

—Ainda não, padre, ainda não. Depois. Depois deixarei que me ajude. Da minha maneira ou da sua, veremos como irá convir. Você terá seu uso, isto eu te garanto. Agora quero é te mostrar os perigos do saber. Já ouviu que a ignorância é uma bênção, padre? Pois é, de fato. O problema é que o senhor não está vendo a magnitude da situação. Encara apenas um fragmento dela, como faziam os antigos ao imaginar que o mundo quebrava no horizonte. Ah, feliz eram eles, te digo! Sinto muito, mas vou precisar tirar este pedacinho da ilusão que carrega e enchê-lo com a verdade. Sei que pareço paradoxal querendo te ensinar enquanto prego a ignorância, mas esta lição vale a pena. Esta lição é a salvação! Entenda, padre, o que você está desconsiderando é essencial. Esqueceu-se da eternidade! Este é o principal da mistura. Claro, em uma existência mundana, você teria no máximo mais uns dez ou quinze anos; não que te deseje mal, de forma alguma, mas o senhor sabe que esta é a verdade. Contudo, tratamos da eternidade! Não são séculos, não são milênios, mas sim todo o período existente no tempo.

—Ainda assim, não consegui ver nenhum malefício, como você diz haver.

—Agora não, padre. Por favor, não me interrompa. Perde o fio do raciocínio, e talvez nunca mais o encontre! Não há Ariadne alguma disposta ajudar os pensadores. É o que digo. – o homem aproximou-se da grelha mantendo o seu discurso excitado, gesticulando efusivamente as mãos sem se dar conta de que nada daquilo o padre via. - Vivemos por que há no mundo mistérios. Existe o que não entendemos. Se já o conhecêssemos de cabo a rabo, teríamos o jogado fora feito uma criança com um brinquedo velho. Havendo a eternidade, com absoluta certeza, o conheceremos não só de cabo a rabo, mas também cada uma de suas patas. Cada um dos pêlos, sendo mais realista. Entende o perigo agora? Com a eternidade, perderemos o interesse sobre tudo, pois já teremos desvendado os mistérios de toda a existência. E neste exato momento, chegaremos a um estado pior do que a própria não-existência. A completa e definitiva indiferença. Eis a beleza de tudo, se assim puder chamá-la. Temos este monstro escondido na sombra da maior promessa feita à humanidade. O maior malefício trabalhando com a benfeitoria suprema. Este é o pecado de Deus. Este é o fardo da vida eterna. Agora diga, padre... Decifrou-me?

Desconcertado, o padre negava para si que houvesse concordado com qualquer das idéias levantadas. Lembrou-se do que havia dito no começo da conversa, “te entenderei, meu jovem, apenas não concordarei com sua tese”. Por enquanto, não o havia decifrado e, ainda mais, temia estar em dúvida quanto à segunda parte.

—Preciso admitir, embora não concorde com o que disse, não deixa de ser algo fascinante. Vejo que é do tipo pensador, garoto. Poderia fazer uma grande diferença no mundo se empregasse tudo o que tem de outra forma. Neste caminho que escolheu, está apenas desperdiçando sua energia. Veja, reafirmo, tudo é muito fascinante, porém não há alicerces nesta estrutura que levantou. Por exemplo, parece-me que está subestimando a quantidade dos mistérios do cosmo e da vida. Estes também são infinitos. – proferiu o pároco com ar vitorioso.

—Não, padre, não fui tão ingênuo. Sei bem da bagagem que isto representa. O que ocorre é que estamos trabalhando com forças colossais, do tipo que não estamos acostumados. Imagino conhecimento e a vida eterna como duas paralelas, logo irão se encontrar no infinito. Não é o que dizem os matemáticos? E assim o é. Neste jogo, em algum instante, descobriremos tudo.

—Se repudia este argumento, também posso indicar outros. Acredito que também esteja superestimando a capacidade da mente humana. Somos frágeis e quebráveis. Jamais suportaríamos a complexidade dos segredos da existência.

—Outra vez, é o senhor que está me subestimando, padre. Já pensei como o senhor, mas foi antes de perceber que estava errado em considerar o cérebro humano no cálculo. Este órgão é limitado, feito para armazenar uma experiência mundana. Nossa outra essência, a etérea, a alma, esta sim está pronta para o conhecimento infinito. Não fosse isto, a própria noção de vida eterna ruiria; seríamos apenas espectros que não se lembrariam de qualquer passado.

—Ora, então fique no paraíso sem buscar conhecimento. Toque harpa com os querubins e apenas isto e estará fora de perigo. – sentenciou nervosamente o clérigo após ver seus dois contra-argumentos rebatidos com facilidade pelo estranho, como um experto faz com um assunto gasto.

—Está sendo um pouco simplista agora, padre. O conhecimento não vem unicamente de forma ativa. Grande parte dele nos alcança de forma sorrateira e passiva. Acompanhe-me em uma experiência fictícia. Tomemos como cobaia, ou indivíduo, se preferir, um homem do campo comum, daqueles que da escola apenas arranhou o abc. Temos muitos destes por aqui. Pois bem, agora imagine que confinemos este homem por toda a sua existência em um arado isolado, livre de influências externas. Tirando a natureza hermética do isolamento, também há muitos destes por aqui. O senhor acha que, no fim de sua vida, este homem não irá ter aprendido nada? Creio que irá concordar que com os anos ele aprenderá as melhores horas para o plantio e a colheita, e com um olhar dirá que vento traz a chuva. Tudo isto é conhecimento. Primitivo, rude, mas ainda assim é saber. Aqui entra a parte fantástica deste amálgama que insisto em lhe mostrar que faz toda a diferença; a eternidade! Pois eu te digo, sem sombra de dúvida, que em uma eternidade, este mesmo homem, este simplório subsistente, irá pensar tudo aquilo que já pensou Platão, Voltaire e Confúcio. Recitará obras completas de Shakespeare e Borges, bem como folhetins baratos de jornais obscuros. Quando não se dá limite ao tempo, todas as combinações de frases e pensamentos possíveis ocorrerão. Nos limites do universo, este mesmo homem terá feito uma autópsia da criação.

Espantado, o religioso preferiu não mais questionar suas convicções, que se mostravam inabaláveis, mas sim sondar as intenções do rapaz, pois estas eram perturbadoramente emblemáticas.

—Se parece tão certo do que diz... Diga-me, filho, porque veio me procurar?

—Para que me convencesse.

—Convencer? – surpreendeu-se – Convencer-me de quê? Pelo que ouvi, você crê em Deus. Tanto crê que já criou variadas conjecturas a cerca Dele. Estou certo?

—Sim, creio.

—E qual o assunto que as bases não estejam tão sedimentadas em seu interior que disponham espaço para a dúvida?

—Que há uma saída. Ou melhor, que há outra saída, além desta que já encontrei.

—Você diz uma saída para a completa apatia do conhecimento absoluto? E o que seria?

—Padre, você ouve os fiéis lá fora? Percebe essa oração ininterrupta? O murmúrio aflito? Eles não sabem, e até mesmo a renegam, mas está ali, unicamente ali, a saída. Não, não estou dizendo que a oração em si seja solução, mas sim aquilo que os trouxe até aqui. A martirização. Somente ela pode desligar uma mente do mundo, fechando-a até mesmo para o aprendizado passivo. Na dor, no sofrimento dilacerante, esquecemos de todos. Foge-nos até mesmo quem somos, sobrando apenas a afirmativa pulsante de que somos! Somos algo, e queremos sobreviver, queremos escapar! Assim, somente o sofrimento que nos salvará, padre. E para a eternidade, apenas um tormento sem fim.

—Você não está dizendo...

—Estou. O inferno. Apenas ali minha mente estará livre das influências do aprendizado e poderei de fato existir por todo o sempre.

—O caminho para o inferno cobra um preço alto, meu filho. Não diga bobagens, crê no Pai e deposita Nele todas as tuas angústias, pois elas serão remediadas. Já está a blasfemar e dizer coisas além de seu entendimento. Você não me parece do tipo que merece o inferno, apenas está perdido em sua loucura. Irei te convencer, meu filho, hei de convencer! – apavorou-se o religioso enquanto erguia fervorosamente as mãos espalmadas para o teto do cubículo.

—Espero que consiga, padre. O senhor está certo ao dizer que meus pecados ainda não pagam a entrada para o inferno. Creio que o pior que fiz contra Ele foi justamente questioná-Lo. Por isto precisava te ver, padre. Por isto precisava estar aqui. Sei como o senhor é justo e sábio, e se não fosse o senhor, ninguém mais poderia me dar uma alternativa. Sim, outra, por que como já disse, tenho comigo uma saída. Não é nada pessoal, padre, mas nela terei que te matar.

Um tremor crescente tomou conta das pernas ossudas do clérigo logo que a sentença de morte passou por seus ouvidos. Um frio corria-lhe o peito como se centenas de aranhas glaciais saltassem dali para seus membros. O coração disparado parecia comprimir seus pulmões de modo que logo lhe faltou o ar. Levantando-se de abrupto de seu banco, desceu a mão sobre a maçaneta da porta do confessionário e bradou em direção a grelha com fúria fingida:

—Você já passou dos limites! Ameaça já é assunto policial. Eu não fico mais um segundo aqui, pois Deus entende e perdoa a auto-preservação.

—Não, não. Por favor, sente-se, padre. E de agora em diante, sem gritaria. Estamos em uma igreja ou não? – disse ironicamente o homem. – Estou com minha arma apontada para o senhor desde o início de nossa conversa. – no mesmo instante, deu três batidas na parede do cubículo com o cano do revolver, fazendo estrondar o baque seco do metal contra a madeira. –Não consigo ver ao certo o senhor, de fato, mas é difícil que um tiro por esta tela o erre estando confinado em um espaço pequeno como este. Sente-se, vamos. Não disse que te mataria de pronto. Dê-me alguma alternativa e te deixarei viver, isto é fato. Acontece que não quero a sua morte, mas antes disto, não quero o paraíso. Se esta for a única forma de alcançar minha danação, então não pestanejarei.

—Filho, não, filho. Não. Ouça. Olhe o que está dizendo. A loucura! Ah, a loucura te tomou! Não destrua sua vida com estas aberrações que rodeiam sua cabeça. Se atirar, logo os fiéis que aqui estão ouvirão os disparos e chamarão a polícia. Não, não estrague sua vida! – suplicou o pároco voltando a sentar-se em sua cadeira sob o esconderijo do confessionário. Ainda que em pouca luz, jurava que agora via um reflexo metálico em sua direção.

—O senhor não deve ter entendido todo o meu plano, padre. Se assim for, se nenhuma outra forma houver, não será apenas o seu sangue que derramarei hoje. Depois que te matar, o segundo tiro será meu.

—Oh! Céus! Doente! Você é doente! Pelo amor da Virgem, pare com esta loucura! Alternativa? Ah, há alternativa. Como há alternativas! Filho, o próprio suicídio é um pecado abominável. É a negação à vida dada por Deus. Só em se matar já terá o que procura. Por favor, poupe minha vida.- O choro e a coriza do padre tratavam de trazer alguma umidade para sua boca seca, onde a língua colada ao céu da boca fazia-o lembrar-se dos seus piores dias de jejum.

—Pelo visto os setenta e quatro anos de batina não te deixaram menos homem, não é mesmo, padre? “Mata-te, mas deixa-me.”. Uma resposta covarde, mas a aceito. No entanto, há um furo neste caminho. Não se esqueça da brecha do purgatório! Se seguir esta trilha que o senhor indica, corro o risco do Benevolente me sentenciar a este lugar, e sabemos que a função dos que penam por lá é justamente pensar e repensar os erros, e nisto já há aprendizado. Depois, quando purificados, ascendem para os céus. Não. Não posso tomar esta direção, padre.

—Não. Não. Não! Pense, pense. Oh! Sim, veja, crê em reencarnação? Nós, como católicos e cristãos, negamos a existência de outras vidas mundanas. No entanto, quem somos para fixar verdades sobre o além, não é? Não é? Muitas religiões afirmam isto. Vê a Índia, adoram até mesmo aquelas vacas! Vacas! Vê os espíritas e suas regressões! Eis a sua saída, jovem, eis a sua saída! Não tema, porque depois da morte, vem o esquecimento para abrir campo para uma nova experiência de vida. Assim, nunca, jamais conseguirá atingir o conhecimento de tudo. – completou por fim inteiramente cianótico. Agora, o sacerdote arfava freneticamente buscando ar para seus pulmões. A urgência era tão grande que nem deu importância para o calor úmido que descia por suas pernas.

—Negou sua moral e agora nega a sua fé? Infelizmente, aprendi muito com o senhor hoje, padre. Apesar de tudo, tão humano quanto todos. Mas agora me trouxe uma novidade. Nunca havia considerado a questão da reencarnação. Será que... Sim, se assim for, seria uma saída...

—Isso, isso! Uma saída! Glória! Agora enxerga, meu bom homem, agora enxerga. Vamos sair para tomar um ar e reavivar nossos ânimos. Agora enxerga! Esta é a beleza da vida. Sempre nos é oferecida uma solução para nossos problemas. Escrita reta em linhas tortas, certo? Esquece o inferno, pois ainda te esperam muitas e muitas vidas limpas de memórias passadas! Viveremos ambos, e só isto importa. Agora vamos. Levante-se e vamos. Ainda temos um belo dia lá fora. Não é mesmo? Diga-me, não é? Não é?

—Perdão, padre, mas por acaso eu disse que correria este risco?