A espera



    Ela vinha sempre à mesma hora. Já fazia tanto tempo... Algo deve estar acontecendo, pensou, o coração acelerando e parando, acelerando e parando, como que em uma dança agourenta e desconhecida.
  Deixou-se ficar mais algum tempo, tempo esse que ele não poderia saber. Talvez cem anos, ou apenas dez segundos. A única certeza, era essa de que o tempo havia perdido seu poder sobre ele, pois que, mirando aquele canteiro de flores violeta, ele não mais era, não mais existia. Até o medo de que ela não mais viesse desapareceu.
  Tentou desesperado por resgatar algo de si, ou do que fôra, agarrar-se a qualquer pedaço de memória, mas o sorriso dela não lhe aparecera...
  Choveu. Choveu muito aquela tarde, mas nem a água gelada de um outono cinza e sombrio despertou-o de seu transe. Apenas permaneceu ali, enquanto a chuva lhe encharcava os ossos; enquanto o vento gélido lhe secava as vestes, enquanto os transeuntes por ali passavam lançando sobre ele olhares assombrados.
  Que diferença fazia afinal? Não fôra Margarida a única flor daquele jardim? Não era apenas à sua passagem que apareciam rosas, rosas mesmas que teimavam em fenecer sempre que ela se afastava? Então, porque passava por ali toda aquela gente?
  Não escutou o roncar do estômago, depois também não sentiu a dor. Sentara-se? Ou estaria ainda de pé? Ainda via o canteiro violeta, mas tinha os olhos abertos? Quantas escuridões enfrentara e quantas ainda teria que enfrentar até que ela voltasse? Ele não sabia, nem poderia saber; a mente confusa ou vazia...
  Pensou sentir o toque de sua mão e pela primeira vez em muito tempo pensou em abrir os olhos. Não os pôde abrir, mas mesmo assim pôde observar o menino, quase rapazola, ainda em calcas curtas a acender a vela, enquanto tocava-lhe a fronte e fazia uma prece.
  Engraçado. Podia vê-lo, sentir o toque de sua mão pequena e quente, mas não podia abrir os olhos ou falar... Então ocorreu-lhe que morrera. Morrera ali, à espera de que ela voltasse.
  Não sabia para onde iam os espíritos. Não deveria ele ter visto um túnel e encontrado velhos retratos em preto e branco a falar-lhe naquele linguajar ultrapassado e rebuscado? Ou nada existia, mais que aquele parque? Deveria ficar ali esperando-a? Mas e se ela não retornasse?
  Não sabia quem era o menino, mas vira quando ele retornara, juntamente com um certo número de pessoas. Eles levaram dali o que ele costumava ser, mas não pôde seguí-los. Ali devia ficar à espera. 
  Muito tempo se passou antes que ele tornasse a ver  o menino. O menino não o olhava, não falava com ele, mas sabia que ele estava ali e sabia que esperava. Nem sabia como sabia essas coisas, apenas sabia. Escutou as orações pelo menino proferidas, deixando-as cair no vazio de sua alma.
  Assim, o tempo arrastou-se, o menino vinha, depois o rapaz, depois o homem, depois um Senhor, depois um velho, mas sempre vinha. Apenas ela não vinha...
  Diante do canteiro de flores violeta, oração após oração o velho se encurvava, os ossos já encolhidos, a cabeça branca, a mesma doçura, a mesma suavidade...
  Trazia consigo bengala longa por aparato e à tiracolo, moço jovem como ontem fôra. O velho, sempre de frente ao canteiro, proferia suas orações enquanto o jovem postava-se solene esperando à certa distância. 
  E assim, ela não vinha. Ela nunca vinha, mas vinha o velho e seu jovem acompanhante. O velho a orar ao vento, o jovem a esperar rígido de semblante sério e cabeça baixa.
  E voltaram depois e depois e depois. Até que ela veio.
  Sentira o perfume, pressentira a pele, como se ainda hovesse nuca para arrepiar-se.
  O velho abaixou-se em seu ritual, suas orações indo em direção ao nada. Mas ele não poderia saber. Novamente não poderia saber, apenas podia sentir, como outrora sua ausência, sua presença. Enfim ela viera encontra-lo.
  A alguns metros do canteiro, olhando fixamente para o carro, Ronaldo aguardava seu avô terminar com suas orações. Não viu quando a esposa caiu. Apenas deu pelo fato quando o avô soltou o alarme. 
  _Serena!
  Mas ela estava fria como um cadáver velho, a pele, antes muito branca, com um tom de violeta como o tom de violeta dos canteiros a servir de fundo.
  _Desculpe-me querida! Mas se eu não a trouxesse ele não me deixaria partir.
  Ronaldo tentou desgrudar o avô do corpo da esposa morta, mas incrivelmente o velho centenário tinha grande força nos bracos magros. Ele sempre fôra tão lúcido. A morte de Serena por certo arruinara seu juízo.
  _Vamos embora vovô. Precisamos chamar aslguém para tirá-la daqui.
  _A culpa foi minha. Mas eu precisava trazê-la. Eu não pude mais dormir des de que fechei aqueles olhos, e sei que fraco, velho e cansado não pude morrer. Eu precisava trazê-la! Eu precisava trazê-la! 
  Ronaldo arrastou o velho, que fazia força e voltava-se para trás. Até que de repete interrompeu seus protestos e passou a caminhar amparado em seus braços.
  _Melhorou vovô?
  O velho olhou com intensidade para o neto. 
   _Ela também o esperava. Ví seu sorriso.
  Sem entender, Ronaldo continuou seu caminho. A mente confusa acompanhou os corpos descerem ao túmulo sem registrar o ocorrido.
  Perdera a esposa e o avô naquele estranho entardecer no parque, mas não sentia dor...

  

 










 
Monique Freitas
Enviado por Monique Freitas em 11/01/2007
Reeditado em 14/08/2013
Código do texto: T343910
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