Os demônios de Sophia

PEDRO

Quando se é jovem todas as coisas ruins parecem inalcançáveis, por mais errados que fossem os caminhos que você tenha tomado. Quando jovens somos inatingíveis. E quando somos jovens que não precisam se preocupar com o futuro, em nenhum aspecto, bom, aí somos invencíveis também. Hipócritas, vazios, também se encaixam. Mas a verdade é que até o momento em que algo realmente ruim acontece permanecemos errados.

Um típico grupo de jovens, ricos, filhos de magnatas, estudando nos melhores colégios, gastando pilhas e pilhas de dinheiro com futilidades e com as coisas mais banais possíveis, dinheiro este que não precisou de uma gota do suor deles para ser conseguido, e nem para ser perdido. Não pensem que isso foi um tipo de crítica, eu sou um desses jovens, nunca tive nada de valor sentimental na vida, só por não me dar o luxo de perder, então essa vida vazia sempre foi mais fácil pra mim... É mais fácil trair do que perder alguns minutos do meu tempo em uma conversa franca, mas eu não iria estar sendo sincero. O que eu diria para a garota? Que tenho medo de compromissos porque nunca tive isso em nenhum aspecto? É mais fácil acordar e não se lembrar de nada da noite passada do que lidar com as outras pessoas. Esse é o problema da maioria das outras pessoas, elas têm sentimentos. Eu também devia ter, mas quando se passa por cima deles se sofre menos.

Toda essa filosofia barata para contar o único acontecido em meio aos meus dezoito anos que me fez repensar em tudo o que já fiz. De errado, porque não acho que tenha acertado algum passo, não ainda.

Sophia e Renan, gêmeos, o pai vivia no exterior, e para suprir a necessidade de sua presença na criação dos dois ele mantinha toda e qualquer vontade deles sem nem perguntar, quanto, por que, nada. A casa onde os gêmeos moravam já tinha sido palco de muitas coisas, de muitas cenas que eu nunca esqueceria, que nunca esquecerei. Minha primeira vez foi lá, na verdade, minhas primeiras vezes, com bebidas, cigarros, maconha, sexo. A segunda e a última juntamente com Sophia. Nossa relação era um tanto difícil de se entender, nem sei se tem algo passível de entendimento entre nós. Ela nem era minha namorada. Nunca foi. E depois do seu aniversário de dezoito anos, a tão esperada noite, nunca será. Vou me focar nos acontecimentos, por o personagem principal dessa história não sou, a voz sim é minha, mas Sophia, com certeza e como sempre, é o alvo dos holofotes.

Foi na madrugada de sábado para domingo. A casa dos gêmeos ficou cheia e movimentada até umas três da manhã, daquele horário em diante éramos só nós quatro, Sophia, eu, Renan e Eliza. Eliza foi minha namorada até aquele dia, até às três e meia da manhã daquele domingo. Em algum momento na saída da maioria dos estranhos eu resolvi procurar Sophia, não a via há algum tempo. Subi as escadas até os quartos, eu conhecia o caminho até o quarto dela por hábito, já fazia algum tempo que não passava por ali, a última vez fora na minha casa, no meu quarto, nossa confusão em meio à minha bagunça, até que nos afastamos quando Eliza quase descobriu sobre nós. Renan sempre soube.

A porta do quarto estava aberta, a janela que dava pro telhado também. Saí à procura da moça dos cabelos escuros pelo telhado e a encontrei na parte de trás da casa, olhando fixamente para o jardim lá embaixo, o cigarro aceso, o vento frio. Uma paisagem tão fria quanto nossas almas. Ela percebeu que eu me aproximava, e não sei como mas sabia que era eu, estendeu o cigarro quase inteiro, pegou outro do maço, só me olhou quando eu já a encarava por um tempo.

_ Que foi? - ela desviou o olhar para o celular que vibrou em cima das telhas e fez um barulho forte - Mas que merda! - ela arremessou o celular longe o suficiente para perde-lo de vista na escuridão.

_ Ei, ei, perdeu o juízo?

_ Você é até engraçado sabia? Quando foi que eu tive juízo? Quando você teve juízo? Não se fazer de preocupado agora, vai?

_ Por que você sempre desvia o assunto? Por que você não se aceita?

_ Ah, cala a boca Pedro! Vai bancar o perfeito agora? Hein? Tão perfeito que deixa a namorada e vai dormir com a melhor amiga dela! Engraçado!

_ Melhor em que sentido? Pelo amor de Deus Sophia! Eu vim ver se você estava bem e é assim que você quer conversar! Que merda! - fui me levantando para sair dali.

_ Era meu pai - ela abaixou a cabeça e as lágrimas rolaram pesadas na pele fina e lisa, a maquiagem preta borrada, era a primeira vez que eu a vi chorar, não gostei.

_ Ele não ia vir?

_ Sinceramente Pedro as vezes eu desconfio da sua inteligência! Meu pai prefere me dar metade do dinheiro que ele tem do que vir pra cá e agir como se deve! Eu não acredito mais que ele venha... E depois, ficar ligando pra quê? - eu não sabia o que fazer, meus pais por mais ausentes que fossem ainda existiam de alguma forma na minha vida, apenas abri os braços e deixei que ela viesse como sempre faz, e o choro sossegou.

Silêncio por uns poucos minutos que foram longos na minha agonia.

_ Pedro?

_ Oi.

_ Você sabe que eu nunca tive medo que a Liz descobrisse sobre a gente. Você sabe que eu usei aquela desculpa dela ter lido nossas mensagens. Você sabe que eu menti.

_ Que conversa é essa agora Sophia?

_ Eu to grávida.

_ O quê?! - a voz veio da janela, olhei para trás e Eliza estava lá, parada, meio tonta, os olhos se enchendo de água. Soltei Sophia e fui atrás de Liza, dois passos mais rápidos e a alcancei - Me solta! Verme!

_ Ei, que é isso? - Renan entrou no quarto - Solta ela Pedro!

_ Sua irmã tá grávida dele! Dele! Do meu namorado!

_ Calma Liz! - Renan a prendeu em seus braços.

_ Você nem se abalou! Você sabia! Me solta! Não acredito nisso!

Perdi a paciência.

_ Eliza chega! Eu já vi o vídeo de você e o Renan juntos! E sabe o que eu fiz? Eu ri sua idiota! Sabe por quê? Porque eu não amo você e você não me ama! A gente nem sabe o que é isso! Esse namoro nunca existiu de verdade... Chega! - senti uma das mãos de Sophia em meio às minhas costas.

_ Vagabunda! - Eliza quase alcançou Sophia se não fosse pela agilidade de Renan em segurar seu braço, Sophia nem se mexeu, eu sentia o olhar de desprezo que ela fazia ardendo no ar - Vagabunda!

_ Pelo amor de Deus Liza, me surpreenda com alguma coisa que eu não escute de todo mundo da escola! Se for pra ofender se esforce mais, eu fui criada com gente me chamando assim! - e riu, deixando o corredor pelas escadas, com aquele ar de Sophia.

Em poucos segundos depois que ela saiu de cena o som foi ligado no andar debaixo, Eliza desceu as escadas furiosa, bateu a porta, Renan foi atrás. Sophia estava no balcão, o coturno estava no chão, a blusa preta larga e curta mostrava a barriga enquanto ela se movia, sem sentido, sem rumo, cheia de si e vazia de sentimentos. Ao passo que me aproximava do balcão ela ia se abaixando, passou as mãos em volta do meu pescoço.

Daquele momento até a hora em que apaguei no sofá esvaziamos mais algumas garrafas. Fui abrindo os olhos, Sophia calçou o coturno jogado no chão da cozinha, tirou a blusa preta e vestiu um moletom por cima do sutiã. Abriu a porta da sala e saiu. Fui até o lado de fora da casa e não a encontrei em lugar nenhum.

SOPHIA

Chega um momento em que os demônios que vivem em você têm que sair. De um jeito ou de outro eles têm que sair.

Depois de ter passado o resto da madrugada enroscada em Pedro, de ter adormecido e de ter esquecido completamente o fato de que eu estava grávida eu acordei perdida. Eram muitas vozes em minha mente. Diziam muitas coisas, nada fazia sentido, nem conseguia separar uma da outra, ouvi o choro de uma criança. Aquilo me sufocava. Fugi o mais rápido que pude para a rua, para qualquer lugar. Era domingo de manhã, muito cedo, não via quase nenhum carro passando. Até o parque foram dois no máximo que passaram por mim.

Fui me embrenhando no bosque até o lugar onde eu ia para fumar de madrugada com Pedro e Renan. Sozinha, não tinha ninguém por lá. Me sentei , sentindo as lágrimas escorrendo e me enchendo de ódio. Para com isso! Meu corpo não me obedecia.

A cada segundo a respiração ficava mais complicada. A dor de cabeça ia ficando mais forte e aguda, senti vontade de gritar e tentei, comecei a tossir muito, sentia o sangue subir queimando pelo esôfago. Tremia por inteiro. Consegui ficar de pé e dar mais alguns passos em direção à ponte que conectava os dois lado do parque separados pelo lago.

Parei lá em cima e fiquei encarando o rio. Convidativo ao extremo. Fiquei de pé nas laterais da ponte, mesmo tonta e sem ter noção nenhuma de como me manter ali. Essa era a questão, eu era jovem, o que de mal ia me acontecer? Era só um mergulho. E de repente a água meio suja do rio enchia meus pulmões no lugar do ar e me faziam ficar ali. Todo aquele caos dentro de mim foi ficando quieto, calmo. Era ali que eu queria ficar. Mais alguns segundos e pronto, tudo ia passar.

PEDRO

Quando me lembrei do bosque saí em disparada até lá, um carro estacionou do meu lado. Era o pai dela.

_ Pedro o que você está fazendo aqui? Onde está minha filha?

_ Ela saiu de casa sozinha agora há pouco, acho que foi pro parque! - ele abandonou o carro e foi correndo comigo.

Não falamos nada até chegarmos no lugar onde pensei que ela estivesse. Olhei em volta do lago, um rapaz tirava alguma coisa do rio. Era Renan. E Eliza.

Me aproximei dos dois. Era Sophia, molhada. Desmaiada.

_ O quê?! - levantei sua cabeça - Como isso aconteceu?!

_ Eu estava com a Liz, do outro lado - Renan estava sem fôlego, encharcado - Ela subiu no parapeito e se jogou! Eu, eu não estava perto o suficiente! Eu gritei mas ela nem olhou pra mim! - ele se abaixou para mais perto da irmã - Sophia acorda! Acorda!

Todos se afastaram, só saí de lá quando a polícia me tirou de perto dela.

Daí em diante a cena se tornou fria de novo. Quatro corpos vazios, em choque, mas sem derrubar uma lágrima que fosse, simplesmente por que não sabiam como. Não sabiam sentir.

Algumas semanas depois Renan foi estudar em um colégio interno fora do país. Eliza, não sei, nem soube mais nada dela. O pai dos gêmeos voltou para a Itália. E eu fiquei, vazio como sempre, mas marcado pela perda de qualquer esperança de uma vida que eu viesse a ter ao lado dela e da minha filha ou filho. Na verdade isso não importava mais.

Fernanda Ferreira
Enviado por Fernanda Ferreira em 21/01/2012
Código do texto: T3454158
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.