Rodriguinho, um "mané "com quem muito aprendi

RODRIGUINHO UM “MANÉ” COM QUEM MUITO APRENDI

Residindo numa cidade aonde a violência, vícios e criminalidade imperam, o “mané”, como “carinhosamente” são chamados os cidadãos de baixa renda, que vivem nesse maravilhoso Brasil, acabam envolvidos pela necessidade de sustentar-se e aos seus parentes desde a mais tenra idade, enquanto seus pais envelhecem e necessitam sobreviver com as migalhas de uma aposentadoria, insuficiente até para uma alimentação mínima e, pior, incapaz de permitir-lhes a compra de remédios indispensáveis a sua sobrevivência. A falta de atendimento médico, de dignidade e respeito social, como aconteceria com qualquer um de nós, faz brotar-lhes no peito a revolta e, é exatamente aí que o “mané”, começa a se configurar perante a sociedade, a qual o despreza, desconhece e ainda lhe aponta o dedo em riste, como se fosse bandido.

Numa dessas grandes cidades conheci um “mané” chamado Rodriguinho, na época com 12 anos, que desfilava portando uma metralhadora em um dos pontos do morro aonde vivia com a família.

Seu pai ficou inválido, devido a uma lesão na coluna, conseqüência de acidente de trabalho, como o fato ocorreu quando tinha apenas 48 anos, teve sua aposentadoria reduzida para pouco mais de R$ 200,00.

Sua mãe acabara de sofrer um derrame e ficou paralisada do lado direito. Seu trabalho foi seriamente prejudicado, pois lavava roupas para fora.

Rodriguinho, ainda uma criança, não encontrou trabalho para fazer na comunidade, e não poderia ficar muito longe dos pais, pois precisavam de atenção, já que nada mais lhes restava.

Os traficantes de drogas logo se aproveitam dessa situação e investem nessas crianças e, para Rodriguinho, não foi diferente.

Marcão, o chefe do tráfico na região quando soube da situação daquela família, foi conversar com o menino e lhe fez uma atraente proposta. Além de pagar-lhe R$ 1.200,00 por mês pelas 12 horas diárias de plantão, ainda poria à sua disposição, sempre que desejasse, uma condução com motorista para levar seus pais ao posto de saúde ou Hospital da região. Portanto, o que nos parece um absurdo, acaba tornando-se uma realidade inconteste e até justa, ao menos na cabeça dessas crianças.

Diariamente, eu conversava com esse “mané” e, com o passar do tempo, pude conhecê-lo melhor e aprender os diferentes meandros da vida miserável e também como funciona.

Sem nunca passar por qualquer problema parecido com os do Rodriguinho, comecei a analisar o seu comportamento, postura e conduta, perante aquela sociedade e em sua casa diante dos pais. Comecei a visitá-lo com maior freqüência e tive a oportunidade de conversar com seus pais. A partir daí, entendi como uma família pode ser tão unida e de que maneira cada um ocupa seu espaço, sem interferir no do outro. Como o respeito e hierarquia são mantidos apesar das evidentes controvérsias e disparidades de gerações, pensamentos e entendimento do que seja a vida.

Aquele menino de 12 anos não via perigo em nada, era capaz de disparar sua metralhadora diante do menor perigo, não tinha sonhos ou ilusões para o futuro, era o mesmo que baixava a cabeça, quando repreendido pelo pai ou cumpria um castigo imposto pela mãe. Presenciei algumas vezes cenas semelhantes e ele jamais se insurgiu nem mesmo com uma mudança da fisionomia.

Certo dia, no final da tarde, Marcão estava vistoriando a metralhadora de Rodriguinho, enquanto um velho rádio do boteco se rendia aos primeiros acordes da Ave Maria, os policias invadiram a comunidade. Marcão saiu em disparada para um esconderijo, instintivamente, Rodriguinho disparou uma rajada de metralhadora como aviso, conforme previa a sua função. A seguir, para dar tempo ao Marcão, acabou por enfrentar a situação e confrontou-se com os soldados, executando dois policiais. Depois de se desvencilhar da arma, atirá-la morro abaixo, o menino fugiu e foi se esconder na própria casa. Eu estava lá, naquele momento, conversando com seus pais. Quando Rodriguinho entrou muito ofegante e disse “sujou”, Júlio, o seu pai, tinha consciência do que teria ocorrido, tanto que falou para Melissa, sua esposa, para manter a calma e agir como sempre treinaram para o caso de uma emergência.

Minutos depois, os policiais invadiram o barraco e de armas em punho, perguntaram pelo Marcão.

Júlio, calmamente, respondeu-lhes que não havia passado por ali, perguntou para Melissa se tinha visto o Marcão naquele dia e em seguida chamou Rodriguinho, ao qual fez a mesma pergunta e ambos responderam negativamente. Depois de fazer uma rápida revista no barraco, a polícia seguiu morro acima em busca do chefe do tráfico que agora era também o suspeito pela morte dos dois policiais. Durante toda à noite e manhã do dia seguinte, foi grande a movimentação da policia naquela comunidade, revistando barracos, pessoas e buscando evidências sobre a morte dos policiais, que pudessem direcioná-los rumo ao autor do crime.

Por volta das três horas da tarde, uma notícia se espalhou entre os moradores. A policia havia encontrado a metralhadora, com a qual executaram os dois soldados, que a levaram para a devida perícia técnica a fim de obter impressões digitais. Duas horas depois, Marcão, devidamente algemado, era levado pela polícia sob os olhares indignados de todos os moradores, que saíam de seus barracos para verem o seu líder. Ao passarem em frente do barraco do seu Júlio, o chefe do tráfico, discretamente, piscou os olhos para Rodriguinho. Senti naquele instante, que uma mensagem estava sendo passada. Foi uma coisa muito forte tanto que o menino no mesmo instante entrou em casa e se pôs a chorar. O momento não era oportuno, por isso evitei lhe fazer perguntas, mas, no dia seguinte ao cair da tarde, lá estava eu, curioso por maiores informações, diferentemente de seus pais que nada perguntavam ou comentavam.

O tempo é implacável e a vida continua, sem máscaras e evidenciando seus meandros obscuros. Rodriguinho estava cabisbaixo, sua expressão em nada se assemelhava a uma fisionomia infantil. Sisudo, com traços fortes, e olhar concentrado o semblante estampava a imagem de uma grande derrota.

Júlio e Melissa apenas executavam as tarefas do cotidiano e eu titubeava, devo ou não entrar no assunto? Perguntava-me. Porém, a irreverente curiosidade não mais cabia em meu pequeno peito e num rompante momento a deixei escapar. Cheguei ao menino e perguntei o que acontecera no dia anterior e de que forma poderia ajudá-lo. Levantou a cabeça, olhou para mim e respondeu com outras perguntas:

- Já mataste alguém?

- Tiveste em suas mãos a responsabilidade de cuidar dos seus pais aos 12 anos de idade?

- O que fazia nessa idade?

- Ah! Também me explique, por favor, como é ser criança?

Caso consiga me responder

às perguntas, entenderá o que estou sentindo e depois, quem sabe, possa fazer alguma coisa para me ajudar.

Seu olhar furou minha alma, as perguntas fizeram ruir todo meu orgulho e, bem ali, senti a insignificância do existir, a força do nada, mas também o significado da razão, a lógica do óbvio e ainda pude valorar a liberdade. A bem da verdade eu era mero espectador colhendo informações. Minhas buscas eram apenas fantasias, desejos profissionais, porém para aquele menino era muito mais, estavam em jogo algumas vidas, sentimentos verdade e o que de concreto existe no mundo atual, correndo contra o tempo, esperanças que não se alcançam, desejos que se frustram logo ao nascer, realidades que chegam antes mesmo de serem entendidas, visto que precisava absorvê-los a cada instante, não só para manter a família como também a própria vida.

Apesar da aparente revolta, Rodriguinho demonstrava confiança em mim e desabafou: - Cezar, desde que te conheci tive uma atração irmã, por isso deixei que entrasse na minha família, conhecesse as nossas condições, sentisse as nossas dificuldades, desgostos e desilusões, porém, espero que nos recompense nos julgando com isenção de ânimo, analisando cada fato sob a luz da razão, usando a fé como uma opção, o amor a Deus como um sentimento e objeto do próprio homem, pois a lógica não existe, a desigualdade é patente e cada um de nós terá que amargurar o que lhe cabe, ao menos sejamos fiéis uns aos outros e aos nossos próprios princípios e conceitos de vida.

Tenho doze anos, acabo de tirar a vida de dois homens para permitir àquele que me sustenta e ajuda minha família que fugisse, embora sabendo ser um infrator, bandido e criminoso. Era meu compromisso e dever sabe? Assim, como um soldado mata o outro na guerra, é matar ou morrer, obedecer à ordem de alguém sem perguntar quem é. A única diferença é que na guerra, quando o soldado mata é herói, está atendendo interesses maiores e milionários, mas aqui não, o que impera é a pobreza, por isso matamos e somos apenas assassinos e criminosos.

Quem sabe num futuro próximo, essa laia criminosa e ladra que mantém as rédeas do poder, entenderá como nós, que temos apenas uma vida, que deverá ser reverenciada, respeitada e utilizada da melhor forma possível, prevendo-se melhores condições para nossos filhos e netos. Buscar a igualdade de tratamento entre os seres humanos das diferentes classes culturais e sociais, é o único caminho capaz de fazer do homem um “ser humano” na concepção da palavra.

Atônito, diante da maturidade daquela criança, perguntei-me o que estava fazendo ali. Afinal, quem precisava de orientação e um motivo para justificar a sua existência, era exatamente eu. Envergonhado, procurei fatos mais concretos e, a partir dali, usei minha profissão com o coração, único capaz de manter a minha vida e justificar a existência.

Meses depois estava estampada nas páginas dos jornais a foto de Marcão, julgado e condenado a 27 anos de reclusão pela morte dos dois policiais. Intrigado com a notícia, fui até a casa de Rodriguinho e, ao passar pelo segundo posto de observação, lá estava ele portando uma metralhadora. Sua expressão era mais forte e dominadora. Olhou para mim e disse:

- Olá, quanto tempo! Meus pais perguntaram por você, vai visitá-los? Respondi:

- Sim, vou lá. Segui até o barraco de Júlio e ali estava, como sempre, numa cadeira de rodas, agora motorizada. Cumprimentei-o e perguntei por Melissa.

- Ela está bem, graças ao bom Deus, arrumando as roupas que lava e passa para a comunidade. Porém, com a ajuda de duas máquinas de lavar.

A felicidade era inegável e impossível também, era não adentrar naquele clima de satisfação. Senti uma forte emoção e fui no fundo do barraco para vê-la. O barraco havia aumentado, agora tinha um tipo de lavanderia onde ficavam as duas máquinas de lavar e Melissa, cantava um samba de carnaval, muito alegre e sorridente. Abracei-a e desfrutei do sentimento recíproco, fomos até a sala e começamos a conversar com o Júlio. Era outra família, pareciam mais jovens, cheios de esperança, a felicidade estava ali.

Conversamos, aproximadamente, duas horas, aí Júlio pediu licença, ligou o rádio e junto com Melissa, rezaram a Ave Maria. Passavam alguns minutos das dezoito horas. Aguardei o momento de fé e, quando íamos recomeçar a conversa, Rodriguinho chegou cantarolando. Agora era um menino feliz, senti no seu semblante seguro e sem contrações.

Então, lhes perguntei o que havia acontecido para tanta transformação em apenas alguns meses. Júlio me deu a resposta:

- Sabe Cezar, depois da prisão do Marcão o Rodriguinho foi visitá-lo e daí muitas coisas foram esclarecidas.

- Ah! Interpelei. Inclusive não entendi como só acharam as impressões digitais do Marcão na arma se o Rodriguinho é que a usava todos os dias.

Eis aí uma questão:

- O Marcão não permite que os menores portem armas sem luvas e se algum deles for pego fazendo uso de bebidas ou drogas é excluído da comunidade. Quanto a nós, estamos melhor de saúde porque fazemos um acompanhamento mensal no posto e exames no hospital regional. Agora não nos faltam remédios. Temos tudo que necessitamos. É uma questão de como você quer ver as coisas e sentir as emoções, nós aprendemos a viver na nossa comunidade com seus problemas.

Esses ricaços da sua sociedade desigual têm seus filhos expostos a rachas com motos e carros de última geração, bebidas e drogas nos embalos, seqüestros, prática de violência contra mendigos, roubos de caixas eletrônicas, entre outras atividades que acabam por lhes tirar a vida prematuramente. É igual à nossa situação e, portanto, caso haja um imprevisto desse tipo, saberemos entender e agradecer a Deus, não lamentando o que perdemos, mas agradecendo ao que tivemos.

Depois daquele papo me despedi, abracei Rodriguinho e lhe agradeci por todos os ensinamentos que havia obtido depois que o conheci. Afinal, nem todos têm essa oportunidade de ver a vida como ela é: dura, nua e crua. Mas, esteja você do lado que estiver, procure que encontrará a felicidade, ela está à sua disposição e sempre bem perto de você.

Muitos anos se passaram, estou velho e encarquilhado, meus conceitos mudaram, porém, estou muito feliz, hoje, tomei conhecimento de que Rodriguinho venceu na vida escolhida. Ele é o atual chefe do tráfico na favela aonde sempre morou.