Sob um torpor

Os olhos em brasa enxergavam tudo vermelho.Luz, ação, câmera...O homem vermelho fumava um cigarro carmim, o barman usava escarlate e não o tradicional blazer branco e gravata-borboleta preta. A dançarina fazia um strip-tease rubro.Todos estavam loucos?Sacudiu a cabeça entorpecida, oca, sem conseguir controlar o torpor que tomava conta do seu íntimo, das suas entranhas.Maldição! Todos malditos, mil vezes! O que sucedia? Tudo girava ao seu redor.O barman servia de cabeça para baixo.A dançarina plantava bananeira.Decididamente, estava perdendo a razão. Os olhos foram se tornando opacos, gradualmente,até sentir-se penetrando numa escuridão infinita, profunda, inexplicável.Tombou, desgovernadamente, derrubando na queda a cadeira onde estivera.

Acordou desconhecendo o ambiente. Onde estava e o que acontecera? Questionou-se até que a cortina se desvaneceu na mente atordoada.Arregalou os olhos desmesuradamente. No começo com precaução. Terrível mal-estar ainda apossava seu corpo.Sentia extrema fraqueza.Seus músculos e a lucidez, aos poucos, retornavam.Encarou o vaso de begônias de folhas brilhantes à sua frente.Um olhar ainda inexpressivo, embaçado por teias de aranhas.Obstinadamente, arregalava os olhos tentando, em desespero, controlar as pálpebras.Sentou-se.Corpo triturado. A verdade cruel com sua impersonalidade foi vindo à tona, sem pressa, machucando com prazer sádico. E aquele besouro, por que atordoava seus ouvidos? Intimamente implorava piedade, piedade, socorro a qualquer ser que tivesse a potência de findar aquela angústia periclitante.Estaria vítima da dictiopsia? Com as costas da mão tentava limpar os olhos, sem conseguir sucesso.Um brilho ofuscante tentou cegar seus olhos. Descobriu um atrevido raio de sol amarelo-ouro entrante pela janela a atingir o espelho oval do ambiente. Um forte cheiro de olíbano afetava-lhe as narinas ainda pendentes de um final de torpor.O polegar e o indicador direitos apertaram e soltaram o nariz repetidas vezes. O cheiro foi se despedindo.

Lembrou-se de ter atravessado uma aléia. Não conseguia, entretanto, identificar onde e quando. Parecia-lhe que um rufar de tambores havia ecoado quando seguia por aquele caminho apertado.Ratazanas atordoadas e ávidas de carne tropeçavam em seus passos apressados que buscavam fugir. Fuga interminável: de quem, por quê e para onde? Não sabia.Não conseguia identificação para nada.Ai, que tormento!Um barulho de passos trouxe um sobreaviso.Parou, escutou.Auscultou o chão.Podridão de chão.Sentiu asco, quase vomitou.Apressou os passos.Uma porta abrira ou fechara? Não viu porta nenhuma. Seria loucura?Fantasiava? Ah, alívio,conseguira chegar ao fim do caminho estreito e tenebroso.Meia satisfação seguida de decepção.A miragem findou ao verificar que o corredor não tinha portas.Inútil. Jamais sairia daquele labirinto túrbido, daquela negrura fétida. Desabalou numa corrida de volta ,em velocidade, saltando sobre as ratazanas perseguidoras implacáveis, até o ponto de partida. Teria que recomeçar a busca para a liberdade. Deplorável seu estado. Estava ofegante naquela solidão imprescrutável. Lutaria sim, por que não? Sempre batalhara e, naquele instante, era extremamente importante vencer o inimigo invisível que tentava a destruição, insistentemente.Ai,que horror!Não se submeteria a um fiasco.Acelerou a corrida até o limite de sua capacidade física que, àquela altura, não prometia muito, comprometida, consequentemente,pelo desgaste causado pela angústia. Tum, tum, tum...- batia-lhe o coração acelerado no peito inquieto, dorido pelo medo agoniado.Deu de cara com um gato albicaude, solitário, que fugiu apavorado, soltando miados agudos.Mas não parou.Diminuiu a velocidade acentuadamente, até que, minutos mais tarde, vislumbrou um panorama esperançoso causando uma parada exausta e um balbuciar de um ah-ah de alívio.Sentou-se, respirou fundo.Estava livre.No alto, o céu sorria.

Abriu os olhos.Olhou a parede branca onde uma cópia reproduzida do "Nu Azul" de Picasso estava exposta.Um tapinha e um sorriso ajudaram a tomada da realidade.Apoiou-se no divã, preparando-se para a saída. Terminava mais uma sessão de regressão de memória no consultório do analista. Começou a ouvir o som melodioso da "Sonata ao Luar-Opus-27, número 2", de L.Van Beethoven, no som situado na estante de tijolinhos.Conseguiu avaliar a brilhante execução do pianista-intérprete.Acabara-se o pesadelo, a vertigem. Com as brumas evanescentes chegou nova vida.Abriu a porta que levava à realidade.Saiu com alívio para a rua barulhenta.

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 21/01/2007
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