Dois Contra UM

Minha cabeça estava girando, acendi um cigarro indiano

para me acalmar, mas a fumaça causava-me uma vertigem sem

volta, pois não havia ida, apenas um rumo sem sentido e

sem direção, cinzento. O sangue sacudia-se nas minhas

veias e eu sentia prazer em sentir - sim, senti prazer em

sentir - aquela desordem inconsciente. Eu estava na

penumbra do fórum aguardando o retorno de um julgamento.

Aquela salinha besta, com cortinas escuras, janelas

fechadas, a água do filtro no fim, um copo de plástico

caído ao chão. Como alguém pode errar um lixo com a boca

tão larga? Eu podia ir até lá e colocar no lugar, mas me

faltava força. Além do mais, aquilo não era problema meu.

Talvez... eu não queria que fosse. Não! Eu queria que

fosse, se minhas náuseas se dessem por causa de um erro

tão trivial como não acertar o lixo, a dor de cabeça não

estaria tão aguda.

Não havia vento ali dentro, apenas ar suficiente para

inspirar e viver, expirar e morrer. Eu absorvia o oxigênio

e devolvia veneno. Aquele ambiente estava farto de mim,

mas em vez de me expulsar dali, me atraia às suas

entranhas sem vida para que eu continuasse me matando, Ah,

ele ficaria livre de mim para sempre, eu ficaria livre de

mim para sempre. A fagulha finalmente se apaga. Fica o

cheiro, o último fio de fumaça perambulou entre meus

lábios e se misturou a natureza desgastada, por mim

envenenada. Eu era o próprio veneno. Meu Deus... tantos

anos de estudo, de dedicação... Como eu podia estar

rejeitando a mim mesmo? A adorável filosofia de um jovem

menino que fui, voltava-se contra o detestável adulto que

sou. Era perturbador pensar que perdi todo tempo

do mundo e todo tempo do mundo é todo tempo que temos.

Eu havia penetrado num mar de porcos e ratos. Os porcos

apodreciam e sujavam às escondias, os ratos roíam e

arruinavam tudo aos poucos. Noutro dia, a justiça aparecia

desabada e emporcalhada.

É... era assim, ainda é. Nunca foi problema para mim ser

um porco, mas agora me sentia mal, tenho vontade de cuspir

quando penso nisso, a garganta amarga e a gravata aperta.

O gosto ruim do ressentimento dava para sentir da língua

ao inferno- da- boca. Não havia céu em mim, mas sim um

universo inteiro de estrelas mortas. A ... a vida é

engraçada, quando se é criança se quer ser adulto...

quando se é adulto, o desejo é voltar a ser criança. Há

quanto tempo eu não procuro desenho em nuvem? Por Deus,

oras nem olhar para o céu eu olho. Além do mais, ainda

existe isso? Como... como, me diz, como eu pude deixar que

as coisas chegassem aonde chegaram? A sensação que eu

tenho é que escalei uma montanha íngreme e perigosa, no

entanto, esqueci de levar minha bandeira e desci sem olhar

a vista. Talvez eu deva voltar lá em cima... Mas para

pular.

Eu era um monstro, um bicho do mato disfarçado dentro de

um terno de mais de mil dólares. Como o oceano é o

disfarce da terra, toda de azul, requintada, porém cheia

de sonhadores e predadores de sonhadores. Se apenas

valesse o conteúdo, e como sei da existência de muitos

porcos como eu, a terra já seria um buraco negro. Um

sugando o outro até o sumo virar pó. Todo mundo sabe quem

é Einstein, todo mundo sabe da teoria da gravidade,

relatividade e blá blá blá ... Todavia, ninguém sabe que

as palavras mais sábias que saíram da boca daquele louco

foi quando ele disse que, o mundo é um lugar perigoso de

se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim

por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.

É disso que estou falando. É de mim que estou falando.

Quando me lembro da máxima de Descarter: “Penso, logo

existo” Ah... dá vontade de rir, de rir! A verdadeira

função do homem é viver e compartilhar, não apenas

existir. E quando percebo que, mesmo sabendo disso,

continuo sendo um porco, um porco egocêntrico, a vontade

de rir aumenta. O homem foi à lua, até parece, perda de

tempo... Para quê? Não foi, não foi! Não foi e nem vai. A

maior distância que devemos percorrer está dentro de nós

mesmos. Maldade é óleo e bondade é água, não se misturam.

Eu sei identificar muito bem qual é um e qual é outro

dentro de mim, sabe de uma coisa, estou sedento.

Calei-me por um instante e ouvi o silêncio, o silêncio

interno, parecia a morte, mas não era... Não, uma pessoa

como eu ainda ia viver muito para sofrer as conseqüências.

Apenas os bons morrem cedo, já diz o ditado. Suspirei e

soltei um riso, eu ri! Mas por que eu ri? Eu ia viver

mais, mas para sofrer. E se herói é aquele que torna

magnífica uma vida que já não pode mais suportar, sou eu

então o vilão que vai chorar no fim da história. Quantas

vezes morri antes da morte? Se eu fosse valente, morreria

apenas uma vez. Concordo com Victor Hugo, o remorso é um

suor de sangue, quem viria curar minha hemorragia? Meu

relógio apitou: 14h00... 14h01... Faltavam quatorze

minutos para o fim do recesso. Meu trabalho de porco

estava pronto, tudo em minha pasta, em meu chiqueiro.

Olhei para ela... ali parada, em cima da mesa, inerte e

cheia de papéis com linhas retas e palavras por mim

distorcidas. Sempre tive certeza que a coragem alimenta as

guerras, porém veio meu amigo Alain e disse: “mas é o medo

que as faz nascer”. É o medo... e eu senti medo, nascia

uma guerra contra mim mesmo. Senti meus olhos latejarem

molhados. O que eu estava sentindo? Finalmente a saída do

labirinto que desenhei dentro de mim havia sido desvendada

e a lágrima quente nasceu de meus olhos frios e estéreis.

Eu não era só um porco, eu era um porco que chorava.

Mergulhei num silêncio profundo e eis que a verdade se

revelou: Faz dezenove anos que exerço carreira na

advocacia, abandonei a filosofia, não... Não era para mim.

Transformei-me em advogado, sonho de meu pai, tornando um

pesadelo a vida de outras pessoas, talvez a minha própria.

Porém, até esse exato momento eu não havia percebido. Pois

eu era disputado, bem pago e não falhava nunca. Agora eu

me pergunto: Valeu mesmo a pena ter sonhado? Não sonhei

por amor, sonhei por ambição. Quantas vezes parei para

pensar no que eu estava fazendo? Quantas vezes parei e

olhei para trás... Nunca. Pois me esqueci que fui criança,

afinal de contas por que a gente cresce? Eu temi sentir

compaixão, eu temi sentir o amor, e temer sentir o amor é

temer a vida, e os que temem a vida: já estão mortos.

Acendi outro cigarro, mania tola... Eu era mesmo um fraco!

Em algum momento da vida, fugi do problema e aqui estou

absorvido, roubado, tomado e dominado por algo que cabe

entre meus dedos e acaba comigo. O seu cheiro... o seu

cheiro é o cheiro da fraqueza, da falta de coragem de

assumir o que não suporto em mim mesmo. Vamos encarar a

realidade... Vivo como se estivesse morto e vou morrer

como se eu não tivesse vivido. Ah... o dardo do pecado me

feriu e só agora doía, cigarro e cinzeiro já não podem

mais me consolar. Até a fumaça que, antes, eu nem notava,

agora me faz filosofar sobre meus favos de fel.

Eu não possuía um lenço, enxuguei meus olhos com colarinho

da camisa e resolvi por o copo jogado ao chão dentro do

lixo. Levantando da cadeira, senti-me exausto, amassei o

copo com ódio, como se ele tivesse culpa... A culpa era

toda minha. Porque eu pensava muito e fazia pouco. Eu

nunca havia estendido as mãos para além do que o dinheiro

não pudesse me retribuir. Porém, havia uma chance de me

redimir, a tempestade de ressentimento em meus

pensamentos, faria com que os carvalhos aprofundassem suas

raízes, meu solo arenoso se tornaria fértil. Um ruído me

dispersou, a porta da saleta em que eu me encontrava se

abriu, derrubei o cigarro e ele queimou meu sapato. Era

meu cliente, senhor J. M. Ferraz. Quando olhei para

aquele homem, o peso do dinheiro dos honorários que ele

havia me pagado, não pesou no meu bolso, mas na minh’alma.

Emocionalmente abalado, quase retirei nota por nota e

atirei naquela cara repugnante que me fitava – quase.

Ainda havia razão em mim, uma razão irracional, a qual não

permitia que eu me deixasse levar por qualquer sensação de

compaixão.

Eu evitava lembrar-me, entretanto, ecoando nas vias

estreitas de meu espírito vago e infeliz, vi surgir a

recordação: J. M. Ferraz havia assassinado toda uma

família. Antônio da Silva, Catarina Lima da Silva e

Antônio da Silva Júnior de 8 anos. Meu cliente dirigia em

alta velocidade, ultrapassou o sinal vermelho e bateu no

carro da família Silva. A família não morreu na batida,

usavam o cinto de segurança. No entanto, meu cliente,

saindo de seu carro, foi até o senhor Antônio e iniciou

uma discussão, o obrigou a arcar com as despesas pelos

danos causados no seu carro. Antônio, por sua vez, alegou

que não fora ele quem ocasionou a batida, portanto ele não

tinha culpa. Muito menos dinheiro para o conserto.

Meu cliente, J. M. Ferraz, possuía uma arma, então, foi

até seu carro, a carregou e disparou contra o carro da

família Silva oito vezes. Dois tiros atingiram Júnior,

três tiros acertaram o senhor Antônio e dois tiros

atingiram sua mulher, Catarina. E o que isso significava

para mim? Apenas mais um caso, um caso que garantiria

zeros na conta de um homem de caráter zero. Sim, ele

estava ganho, como eu disse, eu havia mergulhado

profundamente em um mar de ratos e porcos. Pois então, os

ratos já haviam roído as evidências e, os porcos,

emporcalhado a clareza dos fatos. Sem contar que... há

tempos compreendi: uma justiça que se diz cega esconde

seus olhos no bolso.

Retornando o julgamento, eu já sabia o veredicto. Eu ia

triunfar, triplicar minha fortuna, me embriagar com o

melhor vinho junto com outras ratazanas e porcas, viajar

de primeira classe, comer tudo que há de melhor, ficar

hipertenso, pagar um bom médico, fumar mais cigarros e

esperar pela morte. Porém, algo de errado estava

acontecendo comigo nesse dia, eu não sabia o que era,

donde vinha... Eu só queria que aquele miserável fosse

preso. Mas eu era seu advogado... Eu era um ótimo

advogado! E bons advogados não perdem seu caso, não

perdem! Não perdem! Até que ponto deixei-me dominar? Onde

estava a fronteira que dividia o advogado do homem, do

homem que sou... Não havia fronteira, não havia homem.

O juiz retomou o julgamento e lá eu estava, com meus olhos

latejando, meu sapato queimado, a gravata amarrotada e a

fala pronta. Levantei de minha cadeira, dirigi-me ao júri

e limpei a garganta. Eu queria perder a voz, eu desejei

ser mudo. Mas faltei com a coragem, faltei com a

honestidade. A criança que renascia em mim, renascia

morta, com um laço de gravata apertando o seu pescoço. O

advogado e o porco venceram o homem. Eram dois contra um.

Em vez de acender uma vela, permaneci na escuridão. Fui

capaz de sentir medo, mas não fui capaz de deixar de ser

covarde. O destino realmente não é uma questão de sorte, é

uma questão de escolha, e eu... envergonhado e milionário,

fiz a minha.

Notte Fonda
Enviado por Notte Fonda em 03/02/2007
Código do texto: T368280