O tormento - parte II

A água da chuva lavava as dezenas de estátuas de anjos que guardavam a entrada principal do Hospital Psiquiátrico Beneficente de São Paulo. Formavam uma espécie de portal, com dois semi-arcos laterais e, no centro, uma vistosa imagem de Nossa Senhora, remetendo uma sensação de paz gélida aos que por ali passavam. Fazia frio. Um carro escuro estacionou bem em frente ao hospital e dele saiu um homem alto, magro e de casaco preto bem comprido. Usava chapéu e luvas também pretos e carregava um guarda-chuva.

Enquanto isso, dentro do sanatório, um rapaz estava prestes a se despedir daquela que havia sido sua casa nos últimos três anos.

_Até logo, Drim! Vá e seja feliz! Saiba que sempre poderá contar conosco! - balbuciou a enfermeira-chefe, com lágrimas nos olhos.

Drim observava tudo e olhava para todos com uma expressão singela. Estava de bermuda e casaco cinzas, camisa e meias brancas e sapatos pretos. Há muito, não se vestia assim. Só os pijamas, as meias e os chinelos do hospital. E os cobertores. "Oh, fétidos cobertores!" Levava uma mochila nas costas com seus pertences pessoais, livros e um diário que, por recomendação médica, preenchia todos os dias. Fora seu único amigo nos últimos anos. Não estava nem um pouco exultante por poder deixar o claustro. Parecia congelado. Depois de ser abraçado por toda a equipe que o assistiu e ouvir palavras de motivação, seguiu indiferente pelo corredor. Havia ainda muitos obstáculos entre ele e as emoções.

O motorista de tio Eduardo já o esperava na antessala. O médico entregou-lhe alguns fármacos, prescrições e deu-lhe recomendações.

Quando Drim chegou à casa de tio Eduardo, foi muito bem recebido.

Todos estavam muito felizes em vê-lo. Tia Vanusa tinha preparado seu prato favorito: bife à milanesa com purê de batatas. Drim comeu, agradeceu e foi dormir. Todos estranharam, mas entenderam.

_Não!! Socorro!! Me deixem!! - os gritos horríveis de Drim acordaram a todos na casa. Tio Eduardo se esquecera de dar ao rapaz os remédios que seu motorista lhe entregou junto com as recomendações. Quando entrou no quarto, encontrou Drim contorcendo-se na cama, como se tivesse convulsões. Aproximou-se com os remédios, tentando medicá-lo, mas quando lhe ofereceu o copo com água, Drim o arremessou longe e começou a chutar o tio. A cama estava encharcada de suor. Drim babava.

_Me deixe em paz! Saia daqui! Não! Não vai me matar! - os gritos eram cada vez mais fortes e os olhos pareciam querer saltar pra fora.

Tio Eduardo prendeu-o pelos braços com muito esforço, pois já era um rapaz de 16 anos, enquanto instruía a esposa aos gritos sobre como proceder. Depois que ela finalmente conseguiu enfiar-lhe o comprimido goela abaixo, o rapaz foi cedendo aos poucos até apagar. Estavam todos exaustos e pálidos. Definitivamente, Drim não poderia ficar ali.

Na semana seguinte, o tio o levou para conhecer a pensão da Dona Lourdes. Ali seria seu novo lar. Ficava a duas quadras da Estação da Luz, de onde iria de metrô para seu novo colégio no Paraíso. Sempre que precisasse, seu tio estaria a sua disposição. Era só ligar.

A primeira impressão que teve da pensão não foi boa. Dona Lourdes, uma senhora gorda, mal-encarada e de bigodes, era uma coronelzona. Controlava tudo. Desde os minutos que se podia ficar no chuveiro até o número de bifes que se podia comer no jantar. Drim nem ligava. Para ele, tudo isso era banal.

Voltar a estudar lhe fizera muito bem. Acordava às seis horas, tomava café e às sete, já estava na sala de aula, onde preferia se sentar nos fundos. Não por ser um mau aluno, mas porque ali evitava maiores intimidades com professores. No "fundão", sentia-se blindado. Às treze horas, já estava almoçando na pensão para depois passar a tarde toda lendo. Ler era o seu principal passatempo. Mantinha sua mente ocupada e o "tormento" distante. Colocava tudo em seu diário. Adorava revisar o que escrevia.

Certa noite, num destes "reviews", deparou-se com uma frase que lhe servira de lema durante todo o período em que esteve no sanatório: "Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito." (*)

Durante o seu tratamento, Drim entendeu, ou fizeram com que ele entendesse, que essa era a única maneira de ele continuar vivendo: apagando definitivamente "o tormento" da lousa de sua vida. Mas uma força incomum e nefasta crescia cada dia mais dentro dele. E dizia exatamente o contrário. Ele precisava entender "o tormento". Ele precisava voltar.

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CONTINUA...em:

"O tormento - final"

(*) trecho do conto “Verba Testamentária”, de Machado de Assis.

Jack Cannon
Enviado por Jack Cannon em 14/06/2012
Reeditado em 03/09/2018
Código do texto: T3723229
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