SOB AS CHUVAS DE FEVEREIRO

Nuvens escuras pairavam sobre Socorro. Assustavam os moradores, vítimas de uma engenharia malfadada que soterrou, de certo modo, a maioria das casas no bairro. A chuva cairia. Tudo indicava que seria inevitável. A mudança do tempo acompanhou a lentidão da tarde mas a chegada da noite, no entanto, obscureceu a afirmação que ainda se insinuava com a ausência da luz das estrelas. Isso encorajava as pessoas. E assim os bares e lanchonetes foram, vagarosamente, tomados pelos devotos de barzinhos nos fins de semana.

Pingava e parava. Já não era preocupante. Os meteorologistas de ocasião definiam de que um vento estava carregando as nuvens. A chuva não cairia. Talvez ficassem para outro dia. E cada opinião era uma vontade e todas as vontades era de que a chuva não caísse.Uns pela noite outros pelas suas casas.

Bidê ocupava uma mesa no canto. Seu lugar preferido. Era supersticioso e não dava as costas para a rua. Além disso, do local que ocupava, tinha visão completa do ambiente. Sabia quem chegava e quem ainda continuava ali. Conhecido, era cumprimentado por todos. O ape-lido ajudava. Era engraçado ser tratado de Bidê, alcunha que lhe coube por ocasião de uma excursão, quando se hospedou em um hotel. Ao retornar passou a exigir, em bares e aloja-mentos, nas empresas onde trabalhava, que se colocassem um bidê. E como em boca de peão não se põe taramela, a coisa pegou e Jarbas, antes conhecido por Jarbinha, separado da famí-lia, morando sozinho numa casa no fim do bairro, passou a ser conhecido como Bidê.

Bidê era um sujeito atraente. Apesar de quarentão ainda provocava suspiros. Tinha os cabelos grisalhando e um bom porte físico . Nunca bebia uma só cerveja e naquela noite já tinha meia dúzia de garrafas vazias sobre a mesa. Entre uma e outra ingeria uísques, como quebra gelo- dizia - que já lhe faziam a cabeça. Observava e acompanhava com o olhar todas as mulheres que entravam. E media-as de cima em baixo mesmo que estivessem acompanha-das. Então entrou Melina que há muito já lhe despertava a atenção. Fazendo vinte anos, cheí-nha, Bidê gostava de garotas cheinhas, rosto arredondado e cabelos estendidos sobre os om-bros. Seu sorriso nascia como o desabrochar das flores e se abria como uma rosa púrpura. Não caminhava, flutuava. Seus amigos eram poucos e sua vida se resumia entre a escola, o traba-lho e a igreja. Era evangélica. Poucas vezes ia à lanchonete e quando se decidia estava sozi-nha ou, raramente, acompanhada de alguma amiga que fazia parte do seu mundo silencioso e reservado.

Simpática à seu jeito e agraciada pela natureza com os dotes dos lírios do campo, Me-lina era cultuada à distância. Não que ela se restringisse ao seu mundo e muito menos o mun-do a ela, mas pela redoma invisível que lhe impunha a sua graça e beleza.

Mas o seu comportamento era aparências apenas e Bidê descobriu isso. Ele a queria e a respeitava pelo que demonstrava ser. Mas agora ela estava em suas mãos. Encontrara-a na contra mão da vida. Não era legal fazer chantagem, mas Melina não suspirava por ele. Ti-nham uma boa amizade. Já dividiram a mesma mesa, por várias vezes, na mesma lanchonete, mas era apenas amizade que não era cor de rosa. Bidê tinha um desejo enorme pela Melina mas não sabia de sua outra vida. Agora era diferente. Bidê tinha os trunfos e ia usa-los naque-la noite porque naquela noite ele queria a Melina.

Melina chegou sorridente, o que lhe era peculiar. Bidê sorriu feliz. Fez-lhe um gesto chamando-a. Melina se dirigiu para a sua mesa. Assentou-se cumprimentando-o. Bidê ofere-ceu-lhe refrigerante e partiu para elogios. Melina suspirava disfarçadamente e devagar Bidê foi lhe confessando os desejos. Melina continuou sorrindo, um disfarce para os presentes, mas se incomodava e lhe pedia para maneirar. Dizia-lhe que era efeito da bebida, mas Bidê insisti-a. Melina perdeu o sorriso e ameaçou mudar de mesa. Bidê silenciou para mudar de estraté-gia e quando voltou a falar , dirigiu sua conversa para a chantagem. Cartas na mesa.

- Vi você terça –feira.

- Onde ?

Bidê levou um momento para responder. Queria medir as palavras. Melina voltou a sorrir. Estava satisfeita com os novos rumos da conversa mas foi por pouco tempo.

- Eu fui ao motel com uma pessoa daqui.

- Sim, mas... onde você me viu ?

- Eu entrava e você saía ...

- Olha aqui, Bidê – Melina voltou a ficar séria – você está bêbado. Depois conversa-remos.

- Calma, garota. Isso fica só pra nós. Não estou julgando você e muito menos lhe con-denando. Ao contrário, estou lhe querendo. Aliás há muito lhe quero. Só que achava que você não toparia...

-Bidê, você deve estar enganado. Isso é a bebida que está lhe fazendo imaginar coisas. Não vamos macular nossa amizade.

- Melina, como lhe falei eu estava entrando no motel. Logicamente não estava sozinho e quem estava comigo não gosta de você. Vai manter o bico calado porque , vez em quando, faço algumas despesas pra ela. E eu lhe exigi isso.

Bidê foi claro. Disse-lhe que a queria naquela noite. Sabia que seus pais haviam via-jado e só voltariam no dia seguinte. Melina ainda tentou resistir. Insistiu que ele estava enga-nado, pois ela jamais faria essas coisas. Tinha uma família, um emprego e uma religião que lhe exigia um comportamento exemplar. Era evangélica. E ela era assim. Vivia para seus estudos, era acadêmica, para sua família e para sua igreja.

E quando Melina levantou-se para sair, magoada e assustada, Bidê lembrou-lhe

- Melina, pare de bobagens. Vamos nessa e tudo fica como está.

Melina saiu. Começava chover. Chuva forte. Relâmpagos riscavam o céu. Trovão re-tumbava e as pessoas corria para suas casas.

A chuva pegou Melina na estrada. Assustada e indecisa tinha a sensação de estar fu-gindo. Ora adiantava os passos ora retardava. Imaginava sua vida desmoronada. Todo o seu segredo, guardado à sete chaves, agora às vésperas de ser exposto. Ela tinha vida sexual . Há mais de dois anos se acostumara mas sabia se comportar onde morava. Não namorava mas tinha encontros furtivos em outros lugares, nos seus passeios. Agora, um descuido jogava tudo por terra e seus pais saberiam e se decepcionariam e seu mundo, antes reto e cheio de cores, mergulhava na escuridão do fim. As lágrimas de Melina se misturavam com a chuva que lhe descia no rosto. Morrer - pensou - morrer para não ver sofrer aqueles que a amavam. Talvez fosse covardia fugir dos problemas, a dor é universal, mas meus pais não mereciam.

Empurrou o portão. Molhada. Encostou-o apressada, preocupada com seu cachorrinho que estava chorando e algumas peças de roupas no varal. A chuva caiu tempestuosamente.

Bidê tentou chegar em casa. A água já descia em enxurrada. Lama. Junto, arrastado pela força da natureza, lixos se acumulavam nas bocas de lobo e as águas começavam a se-rem represadas. Dobrou as pernas por várias vezes, embriagado. Sua casa, quase aterrada como tantas outras, acumulava as primeiras águas no quintal.

Colocou a chave na fechadura. Parou, cuspiu. Não atinava para a tempestade que de-sabava sobre Socorro. Desistiu de abrir a porta.

- Errado. Ela me quer. A chuva estragou tudo, mas eu vou tentar.

Bidê voltou. A chuva era mais forte. A enxurrada, que já descia dos barrancos, amea-çava várias casas. Corre-corre. Famílias se preveniam tentando salvar seus móveis . Bidê caminhava, ninguém lhe observava. Ninguém observava ninguém. Todos estavam preocupa-dos com seus problemas. Melhor para Bidê. Cambaleava. A chuva fria lhe amenizara o efeito do álcool, mas ainda cambaleava.

Chegou na casa de Melina. Havia movimento nos fundos . Empurrou o portão. Aberto. Entrou assustando Melina que,na cozinha, enxugava seu cachorrinho. Ensaiou um grito. Bidê acalmou-a com um gesto. Parecia curado da bebida. Melina tremeu mas achou melhor deixa-lo falar. Tentaria convencê-lo ou lhe daria mais bebida até faze-lo cair, depois o colocaria na rua. Havia um litro de cachaça debaixo da pia. Seu pai sempre tinha uma cachaça em casa. Havia uísque e cerveja. Ofereceu-lhe e ele rejeitou. Melina começou a temer e tremer. Seus recursos terminavam e já passavam de uma hora.

Bidê se acomodou na cadeira e tentou ser romântico. Melina tentava persuadi-lo de que tudo aquilo era efeito do álcool . E quando seus argumentos perderam as forças, propôs –lhe uma noite num motel, qualquer outro dia, desde que ele fosse embora. Desde que ele a deixasse dormir.

Naquela distração não observava do lado de fora. Então a água lhe tocou os pés. Na cozinha chegou com dez centímetros de altura. Ameaçava ir para a sala. Melina esqueceu Bidê que achava graça a água lhe cobrindo os pés. Colocou seu cachorrinho nos degraus da escada. Correu para a sala. Recolheu alguns livros colocando-os em lugar mais alto. Assim fez também com o aparelho de som que estava num canto da sala. E foi no quarto e na outra sala. E a água subia e Melina corria pelos cantos da casa. Foi até a varanda. Ouviu gritos nas casas vizinhas. Então compreendeu. Era enchente e naquela hora era cada um pra si. Lembrou do Bidê. Correu na cozinha. A água já alcançava trinta centímetros. Bidê levantou-se e agar-rou-a . Tentava beijá-la. Rasgou-lhe a blusa. Belina não tinha para quem gritar. Todos esta-vam desesperados. Era madrugada. A água já quase lhe alcançava os joelhos. Gritou para seu cachorrinho subir as escadas. Ele entendeu e subiu.

Melina usou estratégia. Parou de fazer força como se estivesse aceitando. Bidê acal-mou-se. Respirou forte. Pediu-lhe que sentasse enquanto ela salvava mais alguns móveis. Prometeu subir para o quarto com ele.

Bidê assentou-se na cadeira já quase coberta pelas águas. Pediu um uísque e Melina lhe deu um copo quase cheio. Bidê bebeu e colocou o queixo entre as mãos. Cotovelos apoi-ados na mesa . Abriu-lhe uma cerveja e encheu-lhe o copo. Bidê aceitou, bebeu, e reclamou, ainda com as mãos lhe apoiando o queixo:

- Isso vai demorar muito, amor ?

- Não

Melina tremia de frio e desespero. Bidê parecia não vê a invasão das águas e os gritos do povo. Foi então que Melina tomou uma decisão.

- Acho que vou brindar com você.

Bidê continuou com o queixo apoiado. Melina pegou o litro de uísque, aproximou-se dele e ameaçou colocar no copo. Bidê empurrou-o para o lado dela e então Melina bateu-lhe com força com o litro da bebida. Bidê balbuciou qualquer coisa e deixou o queixo cair contra a mesa. Melina tornou a correr pela casa, já com bastante água, tentando salvar mais alguma coisa. Momento exato. Lembrou de retirar as tomadas dos seus aparelhos. A água se aproxi-mava delas.

Um barulho nos fundos do quintal fê-la vir até a cozinha. Da varanda , assustada com a força e o barulho das águas, viu com surpresa que o muro que separava seu quintal do córrego havia desaparecido. Um pedaço apenas se mantinha de pé. Um pedaço pequeno. A casinha do seu cachorrinho também não estava mais ali . Gaiolas e pássaros, que seu pai cui-dava com muito carinho, lançados pelo vento, havia sido arrastados pela enxurrada..

- Tenho que acordar esse homem. Tenho que manda-lo embora. Vou subir para o meu quarto mais não posso deixa-lo aqui. Pode morrer afogado e se não morrer eu estarei em

apuros logo que curar a cachaça.

Voltou-se para a mesa. Puxou-o pelos cabelos. Sangue. Ela havia batido com muita força. Seus lábios havia arrebentado contra a mesa. Sua cabeça também sangrava. Chamou-o. Sacudiu- o. Estranho. A água lhes chegava acima dos joelhos. Bidê não despertava. Assusta-da levantou-lhe a cabeça, tentou abrir-lhe os olhos. Morto. Bidê estava morto.

Um desespero maior se apossou de Melina. Chorava e tremia. Com dificuldade, água acima dos joelhos, foi à janela e voltou por duas vezes. Buscava solução e era recebida pelo clarão dos relâmpagos e o retumbar dos trovões.

Foi até a área de serviço. Segurou na pilastra para não ser levada pelas águas. Olhou para os fundos. O relâmpago não lhe mostrou o córrego. Não havia o córrego. Não havia mu-ro. Era um rio que descia com violência. O córrego e seu quintal eram um rio só. Olhou para a cozinha. Bidê morto. Encheu-se de coragem.

Arrastando-se com dificuldades foi até a mesa. A água subira um pouco mais. Acima dos seus joelhos. Pegou Bidê pela camisa. A água tingiu-se de vermelho. Rapidamente dissi-pou o colorido. Puxou o corpo de Bidê, segurando-se para não ser carregada pela fúria da en-xurrada. Bidê queria afundar. Era pesado mas ela suportava amparada pelo desespero. Le-vou-o até a saída da área de serviço e empurrou-o para o quintal e a água o levou. Até a divi-sa onde um resto de muro permanecia, teimosamente, vencendo a força da natureza.

Melina olhou para o céu para gritar por Deus e o que seus olhos viram foi o varal que, amarrado à pilastra e ao muro, impedia que aquele resto de placas fosse levado pelas águas. Subiu no parapeito e balançou-o cada vez com mais forças. Foram cinco minutos que mais pareciam uma eternidade. Melina agora pensava : “e se a tempestade parar. E se Bidê estiver vivo?”.

Chegou a querer mudar de idéia. Trazer Bidê para dentro de casa. Leva-lo para a rua. Mas a rua também estava cheia de água. E enquanto pensava sacudia o varal e seus pensa-mentos atordoados não perceberam que o muro já se distanciava levando o corpo de Bidê.

Melina desceu do parapeito. A água lhe atingia as coxas. Chocou-se com o fogão que boiava. Alguns livros e outros objetos menores. Deixou-os a mercê da água. Subiu as escadas e encontrou seu cachorrinho no ultimo degrau tremendo a cada trovão. Pegou-o . Foi no seu quarto pegou um lençol da sua cama e caminhou-se para a varanda. Num único cantinho que não estava molhado, cobriu-se e também seu cachorrinho, e viu a natureza se aplacar e o dia chegar lentamente iluminando toda a sua beleza e formosura, guardiãs do seu segredo.

TiaoNascimento
Enviado por TiaoNascimento em 08/02/2007
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