O ENIGMA

O ENIGMA

Sou repórter investigativa e trabalho em um grande jornal na cidade de São Luís. Limitava-me a cobrir pequenos casos, até que um dia recebi uma ligação durante a madrugada. Era José Roberto, o meu editor, dizendo que eu deveria estar no cais do porto às seis da manhã.

Estranhei o fato e perguntei o que havia acontecido e como resposta ele disse que eu deveria pegar o primeiro barco em direção à cidade de Alcântara.

Meu instinto avisou-me que eu teria o meu primeiro grande caso! Ansiosa, não consegui mais dormir, então arrumei uma bolsa de viagem com algumas roupas, minha câmera e alguns apetrechos indispensáveis a um bom trabalho.

Cheguei pontualmente ao local combinado e José Roberto já havia comprado as passagens. Fui informada que iria cobrir um estranho assassinato na pacata cidade turística de Alcântara e que uma equipe formada por legistas, policiais e alguns fotógrafos já estava na cidade... Viajaram de avião durante a madrugada e somente eu e um detetive embarcaríamos pela manhã.

O tal detetive chegou em seguida, era Ricardo Talvani, um tipo arrogante, cínico e metido que ao chegar, mediu-me dos pés à cabeça e falou em voz alta meu nome, Nina Cavalcante. Limitei-me a um aceno de cabeça e embarcamos. Em menos de uma hora já estávamos na cidade, onde um simpático motorista nos aguardava.

Seguimos diretamente para o local do crime, um antigo casarão, que no passado abrigou em seus porões centenas de escravos traficados da África. Ao passarmos pela imensa porta, senti um estranho calafrio...

Devido a uma série de imprevistos burocráticos, o corpo ainda estava no mesmo local. Em anos de trabalho, eu nunca havia presenciado algo parecido! O cadáver apresentava uma coloração esverdeada, incontáveis hematomas e centenas de minúsculas perfurações. Tive a impressão de que haviam sugado até a última gota de seu sangue... Em sua testa estava gravado a ferro quente um estranho símbolo e na parede uma palavra escrita com sangue se repetia, parecia um dialeto africano ancestral.

Comecei a fotografar tudo e avistei uma porta meio escondida que conduzia ao porão da casa. Desci as escadas e em meio a sufocante escuridão, vislumbrei um vulto luminoso e em seguida outros mais que me cercaram... Então desfaleci e acordei nos braços de Talvani que parecia muito preocupado, mas ao me encarar demonstrou ironia.

Perguntaram-me o que havia acontecido e eu disfarcei, dizendo que passara mal devido à viagem, mas Talvani percebeu a minha mentira, encarando-me com aquele olhar sarcástico.

Logo o corpo foi levado e decidimos revistar o local em busca de alguma pista que levasse ao assassino. Nada encontramos e como o local não possuía instalações elétricas, voltamos ao hotel para buscar lanternas e outros equipamentos. Assim, meio a contragosto, tive que voltar ao tétrico porão, onde avistamos terríveis aparelhos de tortura, correntes, alguns móveis antigos, quadros, muitas fotografias que pareciam datar do século XIX, vários baús contendo trajes de época e muita poeira.

O ar era muito abafado e depois de revistar tudo, nada encontramos de relevante. Decidimos ir embora e disfarçadamente coloquei algumas fotografias e correspondências amareladas na minha pasta.

No hotel, fomos informados de que um funcionário do consulado de Gana viria para identificar o símbolo e decifrar a palavra escrita na parede.

Somente bem mais tarde, lembrei dos objetos que trouxera do casarão e tomada de curiosidade, corri para o quarto alegando cansaço. Ao olhar as fotografias, fiquei gelada, pois pude identificar claramente as pessoas que me cercaram no porão... Uma jovem muito pálida, um homem de porte altivo e uma mulher com ar sofrido. Nas fotografias seguintes, reconheci os outros. Eram negros, com certeza escravos e todos apresentavam na testa o mesmo estigma encontrado no cadáver... Entrei em desespero e corri até o quarto de Talvani, onde entrei sem sequer bater. Como sempre, ele ironizou a situação, mas eu estava tão assustada que logo ele estava ao meu lado analisando as fotos e os documentos que eu havia levado. Descobrimos que eram papéis de posse dos escravos e que aquele símbolo, era o brasão da família Albuquerque, que na época era proprietária de metade da cidade e possuidora de centenas de escravos, que segundo soubemos através de antigos jornais e de moradores idosos, eram torturados até a morte por motivos banais. O homem assassinado era João Albuquerque, único descendente vivo daquela poderosa família, os outros todos haviam falecido de forma trágica.

No dia seguinte, o funcionário do consulado de Gana chegou à cidade e ao ler a inscrição na parede, demonstrou surpresa. A palavra, disse ele, estava escrito em um dialeto muito antigo e há muito era considerado extinto. Queria dizer Vingança! Eu e Talvani entreolhamo-nos e decidimos voltar ao porão para tentar decifrar o enigma. Encontramos um baú com fundo falso e dentro dele, um medalhão, um diário e uma pequena caixa. No medalhão, duas pequenas fotografias, uma mostrava a jovem pálida, mostrando um sorriso exultante e na outra um belo rapaz de aspecto jovial e sorriso perfeito. Causou-nos certa estranheza, pois o rapaz era... negro! Naquela época, quase todos os negros eram escravos, então, como se explicava aquele fato? Fomos ler o diário e descobrimos que a jovem era Lucinda de Albuquerque, filha única de Carlos e Maria Lúcia Albuquerque e o jovem era escravo de propriedade da família. Os dois cresceram juntos e apaixonaram-se perdidamente, Lucinda engravidou e quando o pai descobriu, torturou o rapaz até a morte, arrancando-lhe todos os dentes e castrando-o sem piedade. A jovem foi mantida presa naquele porão e definhou até a morte... O diário terminou de ser escrito por sua mãe, que não concordava com aquela situação, mas nada pôde fazer ante a fúria assassina do marido. Antes de morrer o rapaz gritou o nome de Lucinda e em seguida a palavra vingança! Fui às lágrimas ante aquele relato e pela primeira vez, ao encarar Talvani, percebi o quanto ele era belo e profundamente sensível. Demo-nos as mãos e em seguida abrimos a caixa... Dentro dela, longas mechas de cabelo, provavelmente pertencentes à Lucinda e em outra caixa menor, os dentes do seu amado. Saímos dali emocionados e eu decidi que não publicaria aquela tragédia, mas lançaria aquelas tristes lembranças ao mar e lutaria até o fim dos meus dias pelo fim do preconceito, da intolerância e das desigualdades sociais.

O avião estava nos aguardando, mas resolvemos voltar no barco à noite, onde lançamos os despojos daqueles dois jovens, vítimas de uma brutal tragédia. Ao longe, conseguimos avistá-los muito felizes, abraçados e envoltos por uma aura resplandecente, olhando-nos com uma intensa gratidão...