Clarisse

Certo dia se encontrava numa fila de banco, como qualquer pessoa, estava ali parada, distraída e só mesmo prestava a atenção nas pequenas crianças que brincavam despreocupadas na porta giratória. Foi quando sentiu que o ser que ocupava a posição menor na fila lhe tocava as costas. Era Josiane que com um sorriso lhe entregou o broche em forma de cavalo marinho que acabara de cair sem que ela percebesse. Ela agradeceu e até explicou que fora um presente do primeiro namorado, depois se virou e voltou a observar as crianças.

No momento seguinte ao escândalo feito pelo menino que fingiu ficar preso na porta, devo acrescentar que a interpretação foi digna de um grande ator, mas ela se deteve somente com um discreto sorriso.

Mesmo antes de o banco se acalmar, houve um enorme barulho e as pessoas se afastavam de Josiane que jazia no chão em uma intensa crise de epilepsia, mas rapidamente foi socorrida pelos bombeiros, a moça foi levada a um hospital, ali nas proximidades do banco e depois de algumas horas foi levada para casa por Clarisse, que a acompanhou desde o instante em que caiu.

O sentimento de gratidão foi mutuo, os telefonemas eram freqüentes, havia sempre a preocupação com a saúde de Josiane e com o descuido de Clarisse. Saíram juntas algumas vezes, chegaram a fazer planos para conhecerem um clube só para mulheres, mas acabaram em um jantar beneficente promovido pelas freiras do Lar Fabiano de Cristo, instituição que D. Glória, mãe de Clarisse prestava doações mensalmente.

Depois de uma hora de conversa, D. Glória não estava a vontade, pois a presença da amiga da filha a incomodava, deixava a desconcertada e sem assunto, portanto a enxaqueca dissimulada foi importante, pediu desculpa e se retirou. Clarisse insistiu em acompanhá-la, mas foi aconselhada a ficar e se divertir.

Ao chegar em casa, Clarisse encontrou a mãe tomada por uma inquietação sem precedentes e desde então notou grandes mudanças no comportamento de sua genitora e as coisas começaram a ficar a cada dia mais complicadas, isto é, passou a ser comum os choros de D. Glória pelos cantos, insônia, passeios noturnos, conversas solitária e como se não bastasse, a matriarca ainda fazia torradas, lavava as cortinas e as janelas, regava as plantas e até trocou uma telha da cozinha na ultima madrugada.

As coisas pioravam sensivelmente, e sempre que Clarisse se aproximava era recebida com um certo desinteresse, chegou a sugerir o tratamento com um profissional, quem sabe alguém especialista em comportamento humano ou psicólogo especializado em doenças de ordem psicológica, mas foi repreendida veementemente e a culpa acabou ficando com o cão que rasgou o tapete e com a crise financeira que vem assolando o país nos últimos meses e que em virtude desta, as vendas caíram drasticamente.

Clarisse procurou a amiga para dividir o problema, foi ouvida com entusiasmo e preocupação e logo em seguida foram até a cozinha, local onde Josiane contou lhe com detalhes que sua mãe havia lhe deixado em uma instituição de freiras ainda quando era só um bebê e que teve muitos problemas para chegar a vida adulta, pois sua doença atrapalhava até mesmo a vida acadêmica, reclamou dos poucos e rápidos namoros, do reduzido numero de amigos e da falta que uma mãe lhe fez pela vida afora e no momento em que se dirigiam ao quarto, mais uma crise e foram as duas para o hospital.

Nas semanas seguintes o laço da amizade entre elas fora se apertando e a presença de Josiane na casa de Clarisse passou a ser mais freqüente, ao passo que também aumentou a freqüência dos ataques epiléticos e as crises de loucura de D.Glória que agora não eram raras as vezes que substituía o açúcar do café pelo sal do feijão, trocava sempre os moveis de lugar e surrava o pobre cão regularmente.

A amizade entre as meninas se intensificou e D.Glória passava cada vez mais tempo na rua, sua insanidade se acentuava na medida em que as preocupações de Clarisse se tornavam um tormento e sempre ao chegar em casa indagava a filha a respeito de Josiane.

Ontem D. Glória amanheceu muito inquieta, mais estranha que nos outros dias e bastou um descuido de Clarisse para que ela saísse com o carro e depois de longas horas de espera, chegou D. Glória, chorava muito e não conseguia se explicar e em meio o desespero o telefone tocou.

Era do hospital, josiane havia sido atropelada e morreu antes de ser socorrida, o desespero de Clarisse a levou a sair em alta velocidade rumo ao Instituto Médico Legal, mas antes que chegasse a ver o corpo da amiga foi abordada por policiais. Testemunhas passaram as características do veiculo que Clarisse dirigia e a parte dianteira do automóvel denunciava o atropelamento.

Na delegacia Clarisse denunciava a mãe, dizendo incessantemente ao delegado: Foi ela, ela matou minha amiga, minha mãe me tirou minha melhor amiga.

Com calma o delegado pediu que alguns homens fossem com ele buscar D. Glória, Clarisse algemada foi junto e ao chegarem em casa encontrou a já sem vida ao lado de um bilhete no qual se lia: Desculpe filha, ela era doente!

Sidi Leite

Sidi Leite
Enviado por Sidi Leite em 21/02/2007
Código do texto: T387954
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