todo ódio é um prisão.     
 Odeio o meu trabalho, passei a odiar mais ainda quando voltei do Rio de Janeiro e um dos gerentes estava me esperando no aeroporto.
        -Flávio, vem comigo, o gerente geral quer falar com você.
        -Qual seria o problema? Estou doido para chegar em casa.
        -Acho que é coisa boa. -riu baixinho
        Adolfo chegou ao cargo de gerência sacaneando os outros, entregando, puxando o saco, pode um homem sozinho fazer tanta merda? Adolfo era aquele cara que queria agradar a todo mundo, mas ninguém gostava dele, era baixo, pesado e usava um terno surrado cinza, tinha um bigodinho desenhado no lábio superior, coisa insuportável de olhar, não era careca, mas seu cabelo era tão ralo que seu couro cabeludo aparecia em várias áreas da cabeça. Usava um lenço para assoar o nariz a cada dois minutos.
        Coloquei o óculo escuro, peguei e bagagem que não era muita.
        -Isso deve ser alguma merda de viagem. Adolfo, não aguento mais viajar!
        Trabalhava para uma distribuidora de alimentos, uma mega empresa, dizem até que estava metida com coisas ilegais tem juízes e policiais no seu bolso. São empresas monumentais, dessas que aparece e desparece, no Brasil são fachadas para um grupo de milionários, sonegam impostos e quando a coisa está feia, eles pulam fora, desintegram.
        Estava tentando escrever um livro, porém literatura não paga as contas de ninguém, eu tinha um filho que teve paralisia cerebral. Minha mulher morreu no parto, uma dessas barbeiragens médicas, no século vinte uma linda mulher morrendo de parto? Faz um ano, ainda dói.
Sinto muita falta dela, todos os dias eu escuto com Bruno, nosso filho, a música que ela amava, é como se ela estivesse ali, falei com Natália, não deixaria de amar aquela mulher. Quando alguém vai me amar assim? - perguntou Natália. Disse que tentaria esquecer, mas era muito difícil. Foi por isso que Natália estava decidindo ir embora.
No carro Adolfo me acordou do meu sonho com assuntos banais.
-O chefe gosta de você, a chefe também, você é bonito, tem boa lábia, ele quer você gerenciando a nova loja que vai abrir, é um cara acima de qualquer suspeita, só não sei por que largou a polícia?Foi alguma merda? Droga? Suborno?
-Não deveria responder para você, mas como você vai encher o meu saco, digo logo. - Foi um pedido da minha mulher quando o irmão dela, que era o meu melhor amigo, morreu na polícia.
Ele apenas franziu a testa, ou vi um “rum sei”, nem prestei mais atenção, Adolfo era um pobre coitado, então eu voltei ao assunto do trabalho.
-Gerente, que loja é essa? Nosso trabalho é distribuição, vendemos no atacado e varejo, não sou gerente. Não tenho experiência.
-Sei lá, chegando lá você se entende com Matias.
Quando chegamos a central o gerente geral estava na sala dele, era um cara sensato, porém como qualquer gerente da empresa extremamente traiçoeiro, usava terno e gravata, alinhados, bigode, barba aparada, cabelo crespo, mais para negro, tinha dedos amarelos e dentes quase marrons, a face toda denunciava um fumante nervoso.
-Matias, que negócio é esse de gerência? -Perguntei quando abriu a porta, não deixei ele nem respirar -  você sabe que tenho um filho doente e que minha mãe ajuda a cuidar , fiquei viúvo, não posso sair da cidade agora. Não vou aceitar essa merda de gerencia não.
-É por isso que escolhemos você, verdadeiro, leal, honesto e não poupa as palavras.
-Loja? Que merda de loja? - perguntei sentando no sofá. – Vocês não estão me zoando?
-Não fica nervoso – disse Adolfo.
-Adolfo, você pode sair – falou Matias abrindo a porta e fazendo um gesto impaciente.
Ele me ofereceu uma bebida que eu recusei, aquele salário era o único sustento de três pessoas, não consegui sustentar o restaurante depois da morte de Nívea, tive que fechar, outra habilidade minha, sem modéstia, sabia a arte da cozinha como ninguém, Nívea sempre me falava, você é o melhor cozinheiro que conheço, larga a polícia, montamos o nosso restaurante e ficamos ricos, nada disso aconteceu. O restaurante quebrou e agora tinha muitas dívidas e trabalhava duro. Onde queriam chegar com toda aquela merda, queriam que eu pedisse demissão? Como me arrumaria com todas as dívidas?
-O que eu fiz Matias, eu preciso desse emprego.
-Nós precisamos de alguém de confiança.
-Nós quem?
Ele pegou o paletó e abriu a porta.
-Venha comigo.
Subimos até o terceiro andar, era a sala de dona Rita, uma das donas, uma coroa super turbinada, cheia de silicone, que morava com o marido dono da empresa, mas já era divorciada dele, tarada, sempre que eu passava  por ela me olhava, perguntava se malhava muito, doida, perdia a noção, tanto que às vezes dava em cima de mim, me agarrava, principalmente quando o marido estava viajando.
-O que vamos fazer na sala dela?
-Esclarecer por que você, saber por que foi escolhido? Talvez seja o seu rostinho bonito? – saiu rindo com os seus dentes marrons de cigarro.
A mulher na minha frente tinha uma beleza feita em consultório médico, com muita maquiagem, seus braços com joias caras e um ar superior, sempre tive um pé atrás, agora estava com os dois.
-Flávio, como foi de viagem? – Falou Rita estendendo a mão que eu só apertei porque era minha chefe.
-Bem.
-Café?
-Sem açúcar.
-Sempre preocupado com a forma.
Olhou para Matias e pediu que saísse.
-Todos nós sabemos de sua tragédia.
-Estou bem, a vida segue, tenho muito a fazer para viver me lamentando, fiz isso por um ano inteiro, não sou o único que teve a vida tocada por uma tragédia. – disse tomando o café, eu tenho que confessar o café da sala do chefe é o melhor. A pequena distância que ela estava de mim eu podia sentir o perfume dela, sabia que estava flertando comigo, odiava aquilo.
-Essa empresa está para quebrar ao meio, tudo vai virar pó, o que era faturamento de milhões vai virar pó, haverá demissões, quebras, até suicídios, assassinatos, muita gente vai ficar no desespero, capital se alimenta de almas; eu gosto do luxo e da beleza, essa quebradeira toda não vai me pegar, e se você for bonzinho, nem você.
-Se você vai me demitir, pra que esse teatro todo? Até agora não entendi nada, isso parece uma armação, sabe que não gosto de nada ilegal?
-Não, estamos tentando deixar muito legal, não digo que é perfeitamente legal, nem quero demitir você, pelo contrário querido, gosto de você, escolhi você para partir comigo para uma cidade programada, pequenina, mais aconchegante, que vai surgir substituindo outra que será coberta pelas águas de uma represa. Por que tudo isso? Preciso desaparecer, soube que sua esposa morreu de parto – deu uma risada – sabe que vou assumir a identidade dela, desaparecer, nada melhor de que assumir a identidade de sua mulher, que era arquiteta, teve um filho com paralisia, não tem mãe, nem pai, nem irmão, ninguém no mundo, achar uma pessoa assim é achar uma agulha no palheiro. Não se preocupe, haverá dinheiro bastante para você a sua mãe e a criança doente. A tal da Natália, a sua namoradinha, está de saída para Londres.
Pensei em como conheci Natália, ela morava no apartamento duas quadras do meu prédio, conheci na livraria, ela gostava de livros de história da arte e Jose Saramago, passamos horas conversando sobre a obra de Saramago, ela era linda e nosso relacionamento estava apenas começando, me ajudava muito com meu filho, sabia que ela estava de partida para Inglaterra, resolveu partir quando soube que meu luto não teria um fim breve, seria outra perda para que eu teria, não estava em condições de amar outra mulher agora. Estava arrumando a minha vida, não queria desamparar o meu filho, tinha vontade de voltar para a polícia.
Não poderia fazer o que Rita me pediu, nunca fiz nada ilegal. Não era o meu estilo, havia deixado a polícia civil depois de ver a corrupção, vi o meu melhor amigo ser morto por policias corruptos, queria ficar longe da violência, tive um treinamento intenso na elite da polícia, todos falavam que eu tinha futuro. Minha mulher sofreu muito com a morte do único irmão, pediu para que saísse da policia e eu saí.
-Pode me demitir, que loucura é essa? A polícia vai chegar até você, à justiça é um leão, que corre atrás, demora, mas um dia te pega, aí eu espero que apodreça na cadeia.
Havia dois monitores a nossa frente, ela ligou um, Matias e dois homens estavam na minha casa, um deles atirou na minha mãe, no primeiro momento fiquei gelado diante da violência, três tiros com uma automática, ela caiu com os tiros, gritei.
-Miseráveis! Matou minha mãe, juro que vou te matar Rita - tentei agarrar aquele demônio em forma de mulher, jamais pensei que estivesse trabalhando para gente assim, suja e perversa, esse não era o meu mundo. Um homem que fazia a segurança apontou a arma para a minha cabeça, eu parei, havia meu filho no quarto ao lado com os bandidos sanguinários, que mais aconteceria?
-O próximo será seu filho - ela ligou o outro monitor - uma câmera na casa de Natália.
-Está bem – disse. – Você já tem tudo preparado, isso é coisa de crime organizado, pois minha mulher já tem um ano que morreu, eu tenho o atestado de óbito dela. Não vai funcionar.
-Não tem não, você tem um atestado falso, Nívea está viva, bem aqui na sua frente, o corpo tem o meu nome, venho planejando isso há muito tempo, quem morreu oficialmente fui eu, o médico, os policiais, tudo devidamente arrumado, veja eu aos quarenta anos morri de parto? Não é bonitinho? Agora precisamos ter outro filho, como casal que se ama, normal, não um retardado, por favor! Odeio retardados, no mundo animal são sacrificados. Logo que tivermos outro filho eu viajo para o exterior, você vai ter sua vidinha de volta, e a sua recompensa, planejei para os próximos três anos uma vida calma na pitoresca numa cidadezinha, cheios de amor, os homens que tenho são fiéis a mim, se eu for presa ou morrer, seu filho morre.
-Por que você simplesmente não foge? A polícia nunca vai achar você.
-Quem está ligando para a polícia, quando você deve no crime organizado, tem que sumir, desaparecer, o único jeito certo é morrer entendeu? Você não anda me vendo muito por aqui nos últimos seis meses, um ano, para eles meu marido está sozinho na empresa, já receberam até o meu atestado de óbito, você conversa com uma mulher morta.
-Por que o teatro? – perguntei.
- Tenho vinte milhões espalhados pelo mundo, em várias contas, dinheiro que dá para viver do jeito que eu gosto. Os donos desse dinheiro vem procurar por mim e meus amigos, não tenho dúvidas, eles precisam checar todo mundo da empresa, vão atrás de você, talvez por você ser muito certinho, ficarão no seu pé por um ou dois anos, depois eu posso sumir, já programei uma  cirurgia plástica, ficarei o mais parecido possível com sua mulher, depois seremos felizes para sempre.
-Como sei que não vou ser morto? Como minha mãe?
-Porque Nívea não é uma assassina, ela será apenas uma mulher separada vivendo nas Bahamas. Não vou ariscar o meu disfarce, ficaremos casados para sempre até que um dos dois morra, depois de três anos terei minha vida e você a sua, vivos e felizes. – Ela bebeu um pouco de água – tive que matar a sua mãe, era a única parente viva sua e do menino, dano colateral, já estava planejado, sinto muito. Agora sou Nívea, de volta do túmulo.
Aquilo parecia uma loucura muito além da capacidade do meu cérebro.
O ódio é um amigo fiel, muitas vezes a única saída.
Com meu treinamento no exército e na polícia civil, comecei a preparar um prato perfeito, que deveria comer muito frio, muito frio mesmo.
Fui morar com Rita em uma cidade de cinco mil habitantes que apenas mil moravam na sede, quando completou três anos, ela e o bebê viajaram para as Bahamas, deixando eu e meu filho doente na cidade. Os dias passavam e éramos vigiados por dois homens. Um que ficava na capital e outro que vinha todos os dias na loja e me olhava na mesma hora pela janela. Enquanto me mantinha no cativeiro, ela me mandava cartas de amor falsas, se passava por Nívea, provavelmente, além de procurada pela polícia, deveria ser procurada pelos rivais do crime organizado. Todos os dias também me enviava e-mails automáticos e ligava uma vez por semana, seu personagem estava convencendo as autoridades, buscava um visto americano.
Oito anos se passaram, estou ainda como gerente de uma loja na cidade construída as margens da represa, o homem agora vem de três em três dias, eu tenho que estar lá, caso contrário meu filho morre. Felizmente Natalia vive em Londres.
Matias, dias depois quando esteve na cidade me contou tudo, ela me escolheu porque era bonito, tinha um filho com paralisia, o que tornava as viagens mais fáceis de fazer, além de minha mulher não ter nenhum parente vivo.
-É muito estranho, até o Adolfo tem um tio, sua mulher só tinha você, seu filho e a sogra.
-Pensei que fosse meu amigo, viu o cara atirar na minha mãe, não fez nada.
-Nesse mundo ninguém é amigo de ninguém. Sinto pela sua mãe, mas Rita não viu nenhuma outra alternativa.
Ele continuou a história.
Rita achou que todo mundo tinha pena de um aleijado cerebral, minha mulher não morreu por negligência dos médicos, foi assassinada. O marido de Rita, depois que o crime organizado descobriu o sumiço do dinheiro foi morto pelo crime organizado, à cabeça dele, Matias, estava por um fio, ficaria no interior do nordeste escondido por um tempo. Quanto à empresa, bom além de falir, deixar centenas sem emprego, era uma fachada para o tráfico de drogas e a venda de cargas roubadas.
À tarde eu me exercitava, pela manhã estudava um jeito de ir atrás de Rita nas Bahamas, a única coisa que ela não contava é que em julho meu filho havia morrido. Escondi de todo mundo, eu mantinha em um respirador improvisado, no mês que vem é a consulta com o médico que Rita controlava, tudo teria que ser resolvido em agosto. Meus amigos da polícia já sabiam, pedi segredo, arrumaram uma enfermeira e o respirador, me ajudavam, dois deles eu havia salvado a vida em combate. Enquanto cultivava o meu ódio e planejava minha vingança, às vezes, o ódio é o único sentimento que sobra.
 Aprendi tudo, como manejar uma arma, como usar explosivos, onde comprar um passaporte falso, identidade, tudo, habilidades de um policial da elite, o que faltava, um de meus amigos da polícia me passava pela internet, juntei um dinheiro com a grana que ela me dava, recebia um salário regular, tudo para manter as aparências, não gastava nada, em quinze de agosto, aniversário da minha mulher, quando o homem de Rita surgiu as seis da tarde, na calmaria da minha cidade atirei na cabeça dele, seu corpo caiu num baque, puxei o corpo para dentro da loja vazia e queimei em uma fornalha que havia construído apenas para aquele momento.
Viajei para Bahamas no mesmo dia, com pouco tempo, tive que alugar um jato particular. Planejei minuciosamente os detalhes. O piloto é um amigo que tirei de uma enrascada com transporte de drogas uma vez em uma operação no interior do estado, era laranja, o deixei ir, quando delegado chegou disse que um dos bandidos havia escapado, mas poderia ser  laranja, era o coitado do piloto, o delegado não engoliu as minhas palavras, só que ele confiava no seus policiais.A partir desse dia o piloto  me devia um favor.
A única pessoa que sabia o endereço dela, a única pessoa que poderia incomodar era eu, pode aposta, eu estava com vontade de incomodar.
A casa de luxo era cercada de seguranças, meu arsenal era apenas uma nove milímetros e um silenciador, duas facas e muita munição, nos últimos oito anos foram horas de treinamento, horas planejando, cultivando a vingança.
Matei os guardas, até chegar ao quarto dela, estava de camisola, que dava para ver o corpo inteiramente modificado, sua semelhança com Nívea era impressionante, sua surpresa não foi tão grande quando ela me viu.
-O menino morreu, não foi?A única coisa que eu não gostava em você querido é que você foi policial do grupo de elite, sempre odiei policiais?
Atirei na cabeça dela.

Voltei no carro e coloquei aquela música.  Woman in love, que Nívea tanto gostava.

 

 

 

 

 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 20/10/2012
Código do texto: T3942487
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