O Braço *
Flavia Costa


     Na madrugada, Jéssica acordou no quarto escuro.
     Com a mão esquerda, tateou o travesseiro. Encontrou um braço. Agarrou-o e o lançou para o lado direito. Fechou os olhos. Iria dormir novamente.
     - Êpa! Péra aí! – pensou Jéssica, abrindo rapidamente os olhos na escuridão do quarto.
     - Eu durmo sozinha – analisou. - Então de quem é esse braço?
     Buscando respostas, novamente, apalpou o travesseiro a procura de alguma pista. Entretanto, não havia mais nenhum braço ali.
     Procurando compreender o que se passava, voltou sua memória para a noite anterior. Lembrava-se de ter saído com as amigas e de beber um pouco além do habitual.
     - Será que bebi tanto assim a ponto de não lembrar o que aconteceu? – perguntou-se desconfiada.
     - Vamos ver... Eu e a Tati estávamos sentadas, bebendo e conversando. Depois aquele moreno, que eu estava de olho, me chamou para dançar. Nós dançamos, bebemos, nos beijamos, nos agarramos e aí...
     Com a mente nublada de pensamentos e álcool, Jéssica tentava resgatar a imagem do rapaz para que essa lhe ajudasse a recompor a própria lucidez. Não se lembrava de nada. Sabia apenas que estava deitada em um quarto escuro, acompanhada de um braço e dúvidas.
     - Aí... Lembrei. O celular dele tocou, ele atendeu, conversou por algum tempo, olhou para mim e disse que precisava ir embora porque a esposa estava dando a luz ao filho. Ele virou as costas e saiu. Que raiva! Idiota, canalha.
     Mais adjetivos sobre o caráter do sujeito teriam que aguardar. No momento, a preocupação de Jéssica era descobrir a quem pertencia o braço no travesseiro. Certa que não era do moreno da boate, interrogou-se:
     - Droga! Se eu não dormi com ele, então com quem eu dormi?
     - Tá, vamos lá. Eu voltei para a mesa onde estavam as meninas, contei sobre o nascimento da criança a elas, bebi mais um pouco para anestesiar a raiva. Então, rachamos um táxi, e eu fui a primeira descer. Lembro-me de ter aberto a porta do apartamento e, não pode ser –
enrubesceu.
     Jéssica dividia o apartamento com Fernanda, uma colega da faculdade. Estava certa que tinha chegado em casa sozinha. Assim, a perspectiva de quem seria o braço que dormia em sua cama a desorientou.
     - Não pode ser. Tá certo que eu sempre desconfiei da Fernanda com aqueles olhares, mas ela sempre soube que o meu lance era outro. Mas é claro, ela aproveitou que eu estava chapada e atacou. E o pior é que não me lembro de nada.
     Jéssica estava tão desnorteada por não saber de quem era o braço e, como ele foi parar em seu travesseiro que quase se esqueceu de um detalhe importante. Mas, em um breve momento de tranquilidade, recordou-se:
     - Não. Não é da Fernanda. Quando cheguei tinha um bilhete pregado na porta. Ela escreveu que viajou a trabalho e que volta na próxima semana. Isso quer dizer que não dormi com ela e que estou sozinha em casa.
     Confusa, Jéssica tentou esconder de si o próprio pensamento:
     - (Seria melhor ter dormido com a Fernanda e não lembrar, do que estar sozinha em casa e não saber quem está do meu lado.)
     Encerradas as opções para especular, Jéssica criou coragem. Virou-se de barriga para cima, fechou os olhos angustiados e, com a mão esquerda examinou o espaço ao seu lado. Certamente ali, estariam repousando o braço misterioso e seu proprietário incógnito.
     Atordoada, constatou que no espaço não havia braço, corpo, nada. Apenas um lençol vazio.
     A descoberta embaralhou a mente de Jéssica. Mas ela estava certa de duas coisas: primeiro, não estava tão bêbada a ponto de perder a consciência dos seus atos; segundo, de fato acordou com um braço dormindo em seu travesseiro. Então, em pânico concluiu desesperada:
     - Ai Meu Deus! Eu agarrei o braço de uma alma penada!
     Estarrecida com o encontro sobrenatural, Jéssica enrijeceu o corpo e apertou os olhos com força. Especulava-se sobre o que fazer:
     - Será que acendo a luz? Não melhor não. Vai que o quarto está realmente vazio, aí vou ter certeza que é mesmo uma alma penada. É melhor a dúvida que a certeza.
     - Já sei, vou gritar. Não. Ideia idiota. Assim ela pode saber que eu estou acordada e querer me assustar.

     Os pensamentos de Jéssica já não tinham conexão com a realidade. Ela precisava apaziguar o medo e descobrir por que um braço de outro mundo velava seu sono no quarto escuro.
     - E agora?... O que as pessoas fazem para se livrar de uma alma penada, que dorme com elas. Hum... já sei, vou rezar. Como é mesmo o nome do santo para os momentos de aflição. Hum... acho que é São Judas Tadeu.
     Quase em prantos, tentava recordar a oração que a mãe lhe ensinara. Mas, lembrava apenas de partes isoladas:
     - ... eu vos imploro... – era o que ela pálida fazia. –... casos desesperados... – não tinha dúvida, era o caso dela. –... de trazer visível... – Jéssica tinha a certeza que não queria ver.
     Sem conseguir lembrar a oração que lhe trazia mais angústia do que alento resolveu unir as mãos e rezar o Pai Nosso. Ao se movimentar para juntar as mãos percebeu que apenas o lado esquerdo obedeceu ao comando. Esquecendo-se momentaneamente do ser do além que jazia ao seu lado, gritou desesperada:
     - Cadê meu braço direito? – rapidamente, calou-se, temerosa em chamar a atenção do espírito com quem dividia a cama.
     Não tinha jeito, para a oração ter valia era necessário unir as duas mãos. Jéssica precisava saber o que se passava com braço e mão direita.
     Receosa, moveu vagarosamente a mão esquerda até o braço direito. Constatou surpresa e apreensiva que o membro não tinha vida, desceu apalpando até as mãos e, nada. Pareciam partes de outro corpo.
     Raciocinou, recordando-se dos movimentos de instantes:
     - Eu acordei com os braços estendidos acima da cabeça. Encontrei aquele braço com a mão esquerda, isso significa que...
     Como havia feito momentos antes ao descobrir o braço intruso no travesseiro, Jéssica, com a mão esquerda agarrou o braço destro e o lançou no ar. Sem resistência, braço e mão direita se movimentaram como um boneco de pano, totalmente inconscientes.
     Constatando o absurdo de suas divagações, Jéssica percebeu o que se passava. Balançou negativamente a cabeça ordenando palavras e acontecimentos.
     - Braço, moreno, Fernanda, alma penada, braço. Que viagem!
     Às gargalhadas, liberta da dúvida e do medo e, agora, consciente da dormência que a assaltara, Jéssica acendeu a luz do abajur. Sentou-se na cama e massageou os membros do lado direito até que retomassem a circulação e os sentisse novamente partes de seu corpo.
     Apagou a luz, deitou-se novamente. Cruzou os braços em X e fechou os olhos. Extasiada por descobrir a quem pertencia o membro desgarrado, Jéssica adormeceu envolta em seu abraço.


* O primeiro conto que escrevi.