A Fotografia

Chovia e eu já podia sentir o clima de Natal batendo à porta. Ontem mesmo quando voltava do estúdio de carro, parei no semáforo em frente à antiga rodoviária, me deparei com a primeira decoração natalina da cidade. E ela era gigante! Monstruosa! Ocupava toda a fachada de um prédio de cinco andares que era todo uma clínica hospitalar. Eu odeio o Natal. Desde criança nunca tive o Natal que sempre que quis ter e não espero que eu vá ter, ainda mais depois que minha esposa faleceu num acidente de carro justamente no dia 25 de Dezembro, dois anos atrás. Eu olhei para aquela aberração capitalista disfarçada de festa religiosa e reparei que nem os pinheiros lindos que eles conservavam o ano inteiro haviam escapado das luzinhas brilhantes e das enormes bolas de plástico (mais baratas e quebram com mais dificuldade) que variavam entre vermelho, azul e dourado. Nunca entendi por que o Natal tinha essas cores específicas. Certo que as coisas devem ter uma cor, só nunca vi uma explicação racional para essas escolhidas para o Natal. Vermelho, azul e dourado.

Eu estava cansado daquele dia no estúdio. De mau humor por causa de uma cliente implicante decidi que outro dia me importaria com o Natal e com toda a carga de hipocrisia que ele traz. Aquele dia não. Eu só queria chegar em casa, acender um cigarro na varanda na mesa redonda enquanto a chuva caía e esperar até a hora de dormir. Nunca fui religioso nem mesmo acredito nessas bobagens religiosas cheias de discursos falsos-moralistas de que a humanidade precisa de algo maior em que se firmar. Frescura!

Enquanto fumava meu cigarro e olhava a chuva cair forte por todos os lados, pensei em viajar naquele final de ano. Sozinho mesmo. Assim, sem mais nem menos. Sem ter que avisar ninguém mais além do hotel em que me hospedaria. Ficaria por umas duas semanas e depois voltaria. Ninguém quer fazer um book sensual nem casar em dezembro, de qualquer forma. Todo mundo está viajando, em lua-de-mel, curtindo as férias, de qualquer forma. Eu que não me sentaria no trono da minha casa de cara emburrada enquanto todo mundo estaria curtindo. Estava decidido. Iria mesmo viajar. Semana que vem mesmo. Ligaria para qualquer hotel à beira-mar do estúdio mesmo e faria uma reserva logo no dia seguinte para a semana que vem.

Acabei o cigarro e fui para o quarto pesquisar e pensar para onde poderia ir. Viajar por viajar é um problema. Quando se tem vastas opções de caminho e todos eles praticamente dão o mesmo resultado, você simplesmente fica sem saber para onde ir. Parece bobagem, falando assim, mas na prática é como ir ao McDonald’s e com 100 reais na carteira e saber que você pode gastá-lo com qualquer hamburguer que eles oferecem. A diferença é que o McDonald’s é uma merda, mas a comparação serviu.

Enfim, lá estava eu, folheando meus cadernos de anotações de viagem à procura de um hotel para ficar quando de dentro de um deles caiu uma foto avulsa em tamanho 10 x 15 cm que eu não me lembrava de tê-la ampliada. Era uma foto antiga que eu fizera quando ainda nem tinha estúdio e era um freelancer de casamentos e festas de formatura. Época promissora que abriu muitas portas. Eu estava naquela fase típica do deslumbramento das possibilidades e achando que faria sucesso mundial e teria documentários sobre a minha carreira. Mas foi um lixo de fase.

Odeio esses momentos de nostalgia e recordações. Se existe nostalgia é porque algo aconteceu, foi bom e não existe mais. E se não existe mais é porque o que era bom ficou uma merda e a gente resolveu deixar pra lá. Se a gente deixou pra lá é porque a gente perdeu a noção do limite. Apesar de pensamentos bons e pensamentos ruins irem e voltarem da minha cabeça já bagunçada, aquela foto e toda aquela arrumação me deu uma ideia.

A foto era de uma dessas casinhas de um único cômodo construídas no meio do nada. A porta parecia ter sido roubada, a entrada era um vão retangular onde antes ela ficava e os vidros das quatro janelas, cada uma das quatro paredes, haviam sido todos quebrados completamente. As telhas estavam quebradas ou faltavam e o mato crescia em volta sem restrições ou qualquer sinal de vida humana que lhe atrapalhasse. Não era uma casa grande, lá com seus 3×3 metros.

Fiquei olhando a foto por alguns segundos, me lembrando da ocasião, quando voltava da cachoeira com os amigos e pedi para que encostassem o carro para eu poder fazer a foto. Lembro que foi uma sequencia, quase um ensaio dessa casa, com sol forte. Fiz umas quinze fotos e escolhi a que eu achei a melhor para meus propósitos. Naquele momento eu tive uma ideia.

Iria voltar naquela cidade só para rever e, quem sabe, fotografar outra vez, a mesma foto, anos depois, aquela casinha. Quando saísse do estúdio, não importava o quão cansado estivesse, pegaria o carro e iria direto para a estrada. Seis horas de viagem até a cidade onde a casinha ficava. Passei os dias seguintes reservando hotel, fazendo ligações e avisando a quem precisava saber que eu viajaria assim que saísse do estúdio e não tinha planos nem sabia exatamente quando voltaria. Isso preocupou algumas pessoas, mas nada alarmante.

Peguei a estrada no dia 15 de dezembro, ainda com luz do sol por causa do horário de verão e também porque dispensei o último cliente e meus funcionários mais cedo e fui embora. Peguei a estrada ainda com luz e cheguei de madrugada no hotel que havia reservado para mim. Não era o melhor hotel do mundo, mas para um solteiro que não liga muito para conforto, sem expectativas de encontrar uma mulher a fim de sexo sem compromisso, sem expectativas de qualquer tipo de companhia, na verdade, aquele quarto era mais do que suficiente. Como não tinha pressa de fazer coisa alguma, dormi até tarde no outro dia, cansado da viagem e de mau humor pela dor nas costas deixada pelo colchão mole do hotel. Naquele dia eu fiquei por conta de apenas ficar no hotel, ajeitando as coisas e descansando o corpo da viagem e das horas de sono mal dormido. Dormi quase o tempo todo, com a TV ligada em um canal qualquer de filmes em um volume alto o bastante para preencher o quarto com som e baixo o bastante para não escapar pelos corredores e incomodar todo mundo.

Acordei de tarde no dia seguinte, com a luz laranja do por do sol entrando pelo meu quarto e iluminando-o como se estivesse em chamas. O céu rajado parecia estar em chamas. Eu queria visitar a casinha ainda naquele dia. Tomei um banho e acordei, tomei um café no restaurante em frente ao hotel e peguei o carro. Demorei um tempo até achar o lugar, não me lembrava onde ficava a cachoeira, mas sabia que a casinha ficava no caminho. Quando a encontrei, ainda estava lá, à luz da lua ela parecia ainda mais convidativa a ter umas fotos da mesma forma que fiz no passado.

Eu estacionei o carro e desci, com a câmera pendurada no ombro direito. Antes, dei uma olhada, ainda da rua, para a casa. Não parecia ter mudado em aspecto algum. Não sei dizer por quantos anos eu fiquei sem lá, mas a casa estava a mesma que a foto. O mato cresceu um pouco, não muito, provavelmente alguém o cortava com alguma frequencia. A lua estava brilhando alta e cheia no céu negro. Eu poderia fazer a mesma foto, com o mesmo enquadramento, mas à noite. Só precisaria do tripé, que estava no carro. Me virei para ir buscá-lo, mas com o canto do olho eu percebi que uma luz fraca e amarelada bruxuleava de dentro da casa. Como uma vela. Talvez houvesse alguém ali dentro que a acendeu. Um mendigo, talvez.

Curioso que eu era, me aproximei da janela e olhei lá dentro. À medida que me aproximava, ouvia o barulho de água vindo dentro da casa. Uma vela e agora um balde com água? O que será que estavam fazendo ali dentro? Olhei através da janela e meu corpo enrijeceu com a figura pálida que habitava ali dentro.

Uma idosa jazia agachada no centro da casa, que nada mais era do que quatro paredes com um telhado por cima. Eu não vi o rosto dela, mas seu cabelo, longo e ensebado, como se não visse uma escova há anos, era de um prateado absurdo e fantástico. Ela tinha a pele enrugada e cheia de cicatrizes, feridas infeccionadas e marcas de maus tratos percorriam seus braços e o pouco das pernas que eu conseguia enxergar. Ela usava um roupão cinza que me parecia ser um de algodão que já estava tão surrado que um pano de chão que fora muito usado traria mais serventia. O pano que cobria seu corpo era comprido, cheio de remendos e fiapos se soltando pelas pontas em uma peça de roupa puída pelo tempo e pelo uso constante. Ela era raquítica, os ossos dos pés nus no chão de terra batida de dentro da casa e as mãos pálidas denunciavam isso.

Então eu vi a fonte da luz. Uma bacia rasa e grande de alumínio cheia de água estava logo à frente dela. A luz amarela vinha do fundo da bacia. Das mãos calejadas e cheias de feridas dela, gotas de água pingavam, como se ela tivesse acabado de mexer no líquido que brilhava com uma luz amarelada e preenchia o quarto. Eu não vi o rosto dela até então, o cabelo desgrenhado era robusto e o escondia em sombras. A bacia era um mistério para mim. A luz brilhava de dentro dela, mas não havia nenhum dispositivo ou qualquer coisa ali dentro que a fizesse brilhar feito uma vela. Eu não conseguia enxergá-la direito, então me mexi para melhorar minha visão e então tive a ideia de fotografar aquilo. A foto era simplesmente fantástica. Levei a ocular ao rosto e enquadrei a cena.

Pensei que o barulho do espelho se movendo da câmera fosse alertar a velha da minha presença ali, mas ela não se moveu. Então, sem retirar a câmera do olho, fiz a mesma foto variando um pouco o enquadramento e a exposição. Sempre fazia isso. Ao total, devo ter feito umas 7 fotos e quando abaixei a câmera para olhar o resultado, devo ter me distraído por tempo demais. Me virei para olhá-la mais uma vez, antes de ir embora, mas ela havia se levantando e caminhado até a jenela. Segurou nas barras de aço sem vidro dela e então fitei os olhos pálidos e vidrados dela. Os dentes estavam podres e ela tinha um mau hálito perturbador. Me fitou longamente enquanto eu, paralisado de susto, pensava em algo a dizer ou alguma saída inteligente daquela situação apavorante. Ela parecia ter saído de algum pesadelo, com aqueles olhos esbranquiçados, dentes podres, cabelos ensebados e uma expressão dura no rosto. Segurava as grades com força nas mãos quando disse:

- Esqueça os mortos que você deixou, eles não irão lhe seguir.

Eu fiquei ainda sem saber como reagir àquilo tudo. Não sabia o que pensar, se ligava para alguém retirá-la dali ou se simplesmente ia embora e a deixasse onde estava. Virei as costas, olhei as fotos mais uma vez e de repente me senti tonto. A visão escureceu e eu caí desmaiado na grama.

Acordei no dia seguinte no meu quarto de hotel, era dia e o sol estava brilhando forte. A primeira coisa que procurei foi pela minha câmera, e ela estava sobre o criado-mudo ao lado da câmera. A roupa do meu corpo era a mesma com que eu havia chegado no primeiro dia. Eu tentava descobrir quem havia me levado de volta para o hotel. Me levantei e procurei saber com os funcionários quem havia me levado de volta, mas eles me afirmaram o tempo todo que eu não havia saído do quarto em momento algum desde quando fiz o check-in, quando cheguei na cidade. Não falei com ninguém e fui direto para o quarto. Continuei insistindo para os funcionários que desmaiei na rua e não me lembrava de ter voltado para casa sozinho, mas eles afirmaram categoricamente que eu não havia deixado o quarto em momento algum.

Pensei que eles poderiam estar mentindo, não era possível que eu ficaria dois dias preso no quarto, sem comer, sem beber água, apenas dormindo. Imediatamente corri para o quarto e peguei a câmera. Liguei-a e procurei pelas fotos. Elas estavam lá. A bacia brilhante cheia de água, a velha saída de um pesadelo. Talvez ela morasse lá. Peguei o carro e voltei na casinha, mas ela deveria ter ido embora. Não havia vestígios de que ela havia passado por ali. Como poderia nenhum dos funcionários ter notado minha saída. Eu me lembrava de ter deixado a chave do quarto e ter feito o check-out quando saí na noite anterior para ir lá.

Confuso, eu me sentei na grama ao lado da casa e fiquei ali, ao sol, pensando no que poderia ter acontecido comigo durante esse lapso misterioso de tempo. Sem chegar a qualquer conclusão, me levantei, refiz a foto de anos atrás, entrei no carro, e abandonei a viagem. Voltei para casa.