Revés

Esse foi o primeiro conto que escrevi. O enrendo é meio complexo e alguns, talvez a maioria, podem não entender.

Mas vale a pena. Foi assim que comecei...

REVÉS

Ele fitava o nada, preso em pensamentos. O que estaria pensando? Olhou melhor para não ver nada e permaneceu com o olhar fixo e a cabeça acima das nuvens. Vivia numa casinha de fazenda e adorava o clima, as árvores, o pequeno rio que atravessava a natureza, os macacos bagunceiros que urinam em seu rosto se você ficar olhando pra cima. Ele adorava isso, melhor, ele amava. Mas o que estaria pensando tão envolto em seu mundo? Aquele era um lugar ótimo, ele tinha uma esposa linda e fogosa, e mais duas filhas de beleza incomum que o amavam. Elas tinham oito e seis anos. Clarinha, a de oito, era morena, cabelos curtos e olhar forte, de uma inteligência fora do comum. Já Aninha puxara a mãe, cabelos claros e olhos azuis, completos por um sorriso delicado e voz angelical. Duas perfeições que a natureza havia lhe dado. E agora ele estava pensativo e inoperante, sentado em sua amada e gasta cadeira de balanço, que agora depois de velha quase que não balançava. O que o preocupava tanto? Suas filhas passaram rente ao seu rosto, mas ele nem piscou. Sua mulher passou com sua bunda redonda e durinha e novamente ele não piscou. No que estaria pensando?

Sua mulher sentou-se na cadeira ao lado, mas ele permaneceu sem reação, solitário em seu planeta de outra galáxia. Ela era loira e tinha um corpo exuberante, mas sua sabedoria era o que deixava ela mais encantadora. Eles formavam o casal perfeito, ele era moreno, corpo atlético e sorriso sedutor, a barba por fazer. Eles se conheceram ainda crianças, formando uma amizade forte que com o passar do tempo transformou-se em amor, dando em casamento e resultando em duas filhas lindas. Eles tinham uma vida perfeita, mas no momento ele parecia ser o maior infeliz do mundo. Por quê? Sua mulher percebendo que o marido estava estranho se levantou e saiu do alpendre arejado e pequeno, deixando o homem sozinho e balançando em devaneios em sua velha cadeira. A cadeira fora presente da irmã há muitos anos atrás, quando ele ainda era um pivete franzino e espinhento, com os cabelos desgrenhados e sorriso amarelo. Hoje o cabelo está ralo e levemente grisalho. Mas ele está preocupado. Com o que?

Ele chegaria escondido, com o rosto escondido por uma máscara e diria que era um assalto. Claro que não seria um assalto, mas era uma boa desculpa. Em seguida ele sacaria seu revólver e atiraria três vezes mirando o coração do infeliz, desejando que o seu sangue imundo inundasse o chão. Depois ele tiraria a máscara enquanto o homem ainda lutava para dar seus últimos suspiros, esboçaria um sorriso fulminante. Seria a última imagem que o ordinário veria. Ele pensou bem e jogou a ideia fora, era ridículo.

Aconteceu há cerca de uma semana atrás. Ele saíra para jogar conversa fora com os amigos no bar do Lê e deixara sua mulher em casa, só com uma filha, a outra havia ido para a escola. Ele bebeu, riu, zombou e foi zombado. Na verdade era um dia comum, um dia normal na vida dele. O Lê sempre com aquele guardanapo encardido jogado no ombro e com o sorriso cativante. Seus amigos sempre alegres e falando alto. Era o seu cotidiano, e ele sempre ganhava uma dose extra por conta da casa. Ali era um ponto muito bom, o dia todo tinha movimento. Ele adorava passar horas ali, bebendo sua mais que sagrada cerveja gelada e suada.

Parecia tudo certo quando ele voltou pra casa e flagrou sua mulher aos beijos com Nego, seu amigo de cachaça. Ele olhou meio hesitante pela porta entreaberta do quarto e seu coração palpitava, parecendo que sairia de dentro e cairia no chão. Ele apertava seus olhos desejando que quando os abrisse aquilo não passasse de uma visão, um jogo que sua mente fazia com ele. Mas parecia que não, nessa altura eles já estavam nus e o homem a penetrava ferozmente, fazendo sua mulher gemer como ele nunca havia visto ou ouvido. Tudo pareceu rodar, ele queria abandonar tudo e se matar, mas suas filhas eram um imã que o prendiam com aquela mulher que até mais cedo era santa, mas dentro de segundos havia se tornado uma vagabunda. Enfim a porta se fechou sozinha com um vento que bateu e ele não fez questão de abrir novamente. Saiu dali e começou a planejar o assassinato de Nego. E também de sua mulher.

Ele simplesmente o convidaria para tomar um goró e o deixaria bêbado, levando ele para alguma rua escura e isolada. Depois ele tiraria a faca que levaria no bolso e furaria ele como uma peneira. Não, esse também não.

Suas filhas estavam falando com ele, enquanto o homem permanecia estático. Elas o balançavam e chacoalhavam, mas ele era só inércia.

E ele ainda planejava uma forma de matar o homem, quando uma bala atravessou sua cabeça, o tirando desse mundo.

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 05/02/2013
Código do texto: T4124817
Classificação de conteúdo: seguro