Com certeza, não

Jade Lira, uma jovem estudante de jornalismo, algumas vezes ao voltar da faculdade cortava caminho por um trecho isolado, que muito raramente alguém se arriscava por lá. A paisagem desse caminho era uma rua deserta, com várias casas abandonadas. Telhas arrancadas pelo vento, rebocos que se desfaziam, vidraças quebradas, pinturas descascadas e o mato rivalizando de altura com paredes e muros eram atributos de todas essas antigas moradias.

No fim da rua na parte mais deserta dentro daquele deserto existia um prédio acinzentado, que comparado às casas era o que ganhava em altura e boatos fantasmagóricos. Essa torre, assim como os outros imóveis, estava abandonada havia alguns anos, e qualquer observador falaria que pelo estado dela, com muitos apartamentos sem ter a janela instalada e paredes com manchas escuras, confirmaria que seria mais velha ainda que na idade documentada.

Jade quando passava pela rua e olhava para esse prédio sentia um misto de curiosidade e medo, uma sensação que de certo modo a excitava, e seu coração acelerava cada vez que se aproximava, chegando ao ápice quando andava na calçada e via pelos buracos do muro cômodos vazios, escuros e aparentemente sem vida. Um boato que se ouvia muito dessa torre era de uma menina que misturava algumas características felinas e olhos de gato, como garras nas mãos, que foi certas vezes vista por lá, segundo se rezava a lenda.

Num final de tarde, quando voltava da faculdade, a pacata moça, que tinha um sorriso tímido, olhos sonolentos, sobrancelha grossa, aparelho de dente colorido e cintura larga, percebeu de longe que uma das janelas do prédio estava aberta, jurando para si mesma que no dia anterior estava fechada. Ela desacelerava os passos, investigando com seu sorrateiro olhar se alguém tinha feito tal proeza. A jovem mulher ficava parada em frente a uma improvisada abertura do muro, se perguntando se deveria ou não passar pra área interna do prédio. Sem hesitar muito e impulsionada pelo momento ela avança, sentindo o mesm misto de excitação e medo, invadindo com sua torneada perna esquerda aquele lugar aparentemente sem vida.

Entre o espaço do muro e o salão que ficava no térreo do prédio Jade Lira percorre lenta e cuidadosamente, desviando do monte de capins e carrapichos que insistiam em grudar em suas meias arrastão, analisando cada centímetro que sua visão conseguia alcançar. Ao adentrar no que deve ter sido planejado como o salão de entrada do prédio, ela se deparava com inúmeras teias de aranha no teto, uma mesa revestida pela poeira e uma parte do piso solto e os poucos raios solares que invadiam com alguma dificuldade o quarto. A corajosa moça procurava algum sinal de vida por lá, e a única coisa que havia achado foram três riscos finos que cortavam uma fina camada de poeira sobre a mesa, que poderia ser, aliás, feitos por um felino qualquer perdido por lá.

Num canto do salão, Jade Lira reparava que existia um escuro, estreito e serpentado corredor, que se ligava aos andares superiores. Seu coração acelerava quando se aproximava do corredor negrume e respirava fundo antes de seguir rumo à escada, rompendo pouco depois uma barreira invisível de teias de aranha que se enroscavam em seus cabelos, pernas, braços, vestido e face, sentindo inclusive o gosto nada saboroso da invisível armadilha das aracnídeas. Distraída pelo ocorrido ela entra num cômodo que julgava ser aquele do apartamento da janela estava aberta pouco atrás e em sua mente passava um flashback de sua vida, com todos os momentos mais marcantes que ela conseguia se lembrar.

Seu coração acelerava e desacelerava rapidamente, ainda mais quando caia a ficha de onde estava. Ela entrava no cômodo, uma sala pequena coberta de poeira e teias de aranha aos montes, e seguia rumo a um curto corredor que ligava ao quarto da janela aberta, procurando por algum sinal de vida que a tivesse aberto.

Seu coração disparava ao ouvir um barulho que vinha de algum cômodo de lá, que parecia algo que caia no chão ou algum objeto que encontrava a parede e sentia-o subir até a garganta. Jade ficava cada vez mais ofegante, observando atenta ao vão da porta aberta do quarto, esperando se mais algum barulho se seguiria ou se alguém surgisse, levando sua mão esquerda pouco acima da altura de seus seios, deslizando até seu suado e tenso pescoço e procurando algo para se defender, mas sem sucesso. O único barulho que se seguiu foi de uma coruja solitária, de algum terreno vazio.

- Santa mãe de Deus, se eu sair daqui nunca mais volto, juro por toda minha geração, Deus do céu, estou tremendo...

A voz baixíssima e assustada de Jade Lira deixa de ser a primeira e única de lá naquele momento, para ser continuada por uma inesperada presença, que empurrava sorrateiramente a porta.

- Com certeza, não...

De tão apavorada, Jade sente as pernas tremulas esfriarem e o coração, agitado, querer explodir e fugir de seu peito. Uma das impressões que sente é que pudesse desmaiar a qualquer instante. Ela mal conseguia reparar na figura que havia aparecido de repente e falado com ela, mais via uma mistura de traços da raça humana, se assemelhando até certo ponto a uma adolescente do sexo feminino e de características felinas, como os pelos, olhos e garras numa estranha mistura que ela não compreendia, e naquele momento ela inclusive a última coisa que lhe interessava.

Ela disparava sentido a outra porta do quarto, esbarrando num canto de parede, e sai por outro cômodo que ficava ao lado do quarto, correndo desesperadamente sem ter coragem de olhar atrás. Ao alcançar a escada, ela trupica em algo e desce rolando, protegendo com os braços seu rosto, mesmo assim ainda sente uma quina acertar do lado direito de sua cabeça e vários outras em algumas partes de seu corpo. Após parar de rodar, ela levanta desnorteada, sem saber se tinha quebrado alguma coisa, e cambaleando identifica que estava no salão térreo, se arrastando até a porta que conduzia a parte externa do prédio, caindo e se levantando sobre os montes de matos e sentindo o corpo começar a doer, conforme seu sangue esfriava.

Ela finalmente chegava na rua, e com vários machucados distribuídos pelo corpo parcialmente coberto pelo que havia sobrado de suas roupas, ela olha assustada para o misterioso prédio, se perguntando se tinha se safado porque alguém assim queria ou se tivesse sido ágil no momento e lugar certos.