Rosa e o amor

Conheci Rosa quando tive que deixar meu carro na oficina durante toda uma semana. Na saída da universidade, pegamos o mesmo ônibus e sentamos no mesmo banco. Eu, 32 anos, professor universitário. Ela, com pouco mais de vinte, estudante de letras. Levamos uma conversa animada e franca ao longo de todo o trajeto. Interessante a menina, boa de papo, amante das letras, principalmente poesia. No outro dia nos encontramos de novo e ela já veio me declamando uns versos. Até que eu gostava de literatura, mas envolvido com as aulas de engenharia, me restava pouco tempo para outras leituras. Coincidência ou não, todos os dias daquela semana nos encontramos no coletivo. Inevitavelmente, na sexta-feira fomos para um barzinho – eu já com meu carro que saíra do conserto – e terminamos a noite num quarto de motel.

Sinceramente eu não sou do tipo canalha. Aliás, havia recentemente saído de um relacionamento de oito anos que por pouco não deu em casamento. Mesmo tendo me envolvido com Rosa – de uma maneira um tanto inconsequente, como constatei depois – não me passava pela cabeça naquela época me envolver seriamente com ninguém. Mas logo percebi que não era essa a visão dela. E sua presença constante, os seus telefonemas incessantes, a sua marcação cerrada, foram minando meus sentimentos com relação à ela, até que um dia, no próprio estacionamento da faculdade, tratei de esclarecer as coisas. Rosa ouviu sem tirar os olhos de mim. Quando terminei desejando-lhe boa sorte na vida, ela explodiu. “O que é que você está pensando que eu sou?”, disse, visivelmente abalada. Eu tentei acalma-la, o que provocou ainda mais a sua ira. Vi que não teria jeito, entrei no carro e deixei-a falando sozinha. No outro dia apareceu no prédio onde eu morava. Quando me dei conta já estava sentada no meu sofá, aos prantos. Eu entendi que ela poderia ter mesmo se fascinado comigo, um cara mais experiente, com certa estabilidade na vida, descompromissado, sabe-se lá o que eu havia despertado nela. Mas só então percebi o quanto Rosa era emocionalmente imatura. Fiquei preocupado, minha luz vermelha interior acendeu. Tentei conforta-la, conversamos longamente por quase toda a tarde, e quando a noite já estava chegando, ela se foi – dizendo que aquilo era um adeus.

Respirei aliviado, acreditando que aquilo tudo não tinha passado de um mero delírio juvenil da sua cabeça. Dois dias depois encontrei um bilhete no pára-brisa do meu carro, onde ela pedia pra eu ligar. Não liguei. De madrugada o telefone tocou, e eu, mesmo entorpecido pelo sono, pude distinguir o som de um choro contido vindo do outro lado da linha.

Passei a manhã seguinte preparando as aulas que iria proferir à tarde. Almocei apressado e fui para a faculdade. Mas quando cheguei e abri minha pasta, vi que havia esquecido todas as minhas anotações. Corri para o estacionamento e voltei pro meu apartamento. Passava esbaforido pela portaria quando o Seu Jorge me falou:

_Sua namorada está lá te esperando.

_Namorada?

De imediato veio-me em mente o semblante da Rosa.

_Porque você deixou ela entrar?

Ele levantou os ombros, fazendo cara de desentendido.

_Ela disse que ia subir pra te esperar...

Sem perder tempo, fiz um aceno e subi correndo as escadas até o quarto andar.

A porta estava só encostada – eu não costumava trancá-la ao sair. Detive-me esperando encontra-la na sala, mas não estava ali. Nem na cozinha, nem no quarto. Nesse instante ouvi um ruído vindo do banheiro. Abri a porta e me assustei quando vi seus pés se debatendo. Então olhei para o lado e a vi pendurada no suporte de toalha por uma cordinha de varal que envolvia seu pescoço. Estava se enforcando.

Mais que depressa, agarrei-a e levantei o seu corpo, aliviando a pressão em torno do pescoço. Com a outra mão alcancei a gaveta do armário onde havia uma tesoura, e cortei o nylon da cordinha. Ela se desfaleceu em meus braços. Deitei-a no sofá e chamei o Seu Jorge pelo interfone. Minutos depois enfermeiros entraram pelo apartamento e a levaram de ambulância para um hospital.

Rosa sobreviveu. Mas a intenção dela não era essa. Se eu não tivesse voltado para buscar o meu trabalho, sem dúvida o pior teria acontecido.

Passado o susto, não a vi mais, e deixei de ter notícias dela por um bom tempo. Até que um dia recebi uma ligação sua. Disse que havia feito uma série de sessões de análise, estava bem. Pediu-me desculpas. Eu pouco falei. Ela então desligou.

Dia desses a encontrei no supermercado. Estava junto com uma menininha de cabelos castanhos e lisos como os dela, e cativantes olhos esverdeados. Lindíssima. Rosa também. A maternidade realmente faz muito bem a uma mulher. Perguntei o que estava fazendo da vida, ao que me respondeu:

_Estou dando aulas num colégio. Sou professora. E mãe – desviando os olhos para a criança, abaixou-se e deu-lhe um beijo na fronte – não é, meu amor?

Naquele instante me lembrei do seu bilhete, que encontrei sobre a pia do banheiro logo depois de voltar do hospital naquele dia quase fatal. Lá ela escrevera: “Poderia ter feito isso em qualquer lugar, mas resolvi fazer aqui pra você nunca mais se esquecer de mim. Com amor, Rosa”.

Despedimos-nos e saíram as duas, sorridentes e felizes.

Amor.

Certamente agora Rosa sabia o seu verdadeiro significado.