(...) Os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. (...) Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
 
Venha ver o pôr-do-sol - Lygia Fagundes Telles

 
O Enigma do Diário
 
Capítulo I: O Sangue


O homem sentou-se no banco enquanto seus filhos corriam para o balanço. Não corram! - gritava.
 
O gramado da praça havia sido cortado há pouco tempo e ainda era possível sentir o cheiro do mato; os brinquedos foram pintados na semana anterior e os que estavam enferrujados haviam sido todos trocados.
 
O rangido deu lugar ao silêncio. Tudo ali era novo, pronto para um recomeço, receber novas visitas, novas histórias. Apesar de tudo ninguém frequentava aquele lugar.
 
O silêncio deu lugar à solidão. Porém a solidão nunca fora inimiga daquele pai - ele nunca foi homem de amigos, de lugares badalados, muito menos homem de família. Os filhos eram acidente de percurso, mas eles não precisavam saber disso. Se sabiam, viviam de forma consciente num mundo cenográfico, e aquela ilha mágica e colorida no meio de uma cidade-fantasma era um comercial perfeito de uma família feliz. Ergueu a cabeça e viu que o mais velho olhava para ele. Não se sentiu culpado, nem monstro. Apenas fazia seu papel. Era o que todos esperavam.
 
Tirou da mochila um pequeno diário que encontrou naquela mesma praça, no dia anterior. Pensou em procurar o dono, mas não achou nenhuma anotação de endereço ou telefone. Que se dane, pensou, e começou a ler uma página qualquer.
 
Acima dos ossos vem a terra; acima da terra, a grama. Depois disso vem a humanidade: pele, sangue e raciocínio.
 
- São lindos, não são?
 
Não notara a presença de uma senhora ao seu lado. Beirava uns setenta anos, mas a rouquidão denunciava dez anos mais.
 
- Sim.
- Eles têm muita energia.
- Sim, são crianças. - respondeu em tom de tédio.
- Não é preciso ser criança para se ter energia, filho.
 
Ele não quis argumentar e voltou à leitura.
 
Eu poderia dizer corpo e espírito - é o que todos esperam, seria mais humano. Mas essa não é minha verdade e aqui posso ser quem eu quiser, sem culpa, sem frustrações.
 
- Não fui eu, eu juro! Ela caiu sozinha! - gritava o garoto correndo em direção ao pai. Ele trazia a irmã que estava aos prantos.
 
- Foi só um arranhão. - disse o pai sem paciência, vendo o joelho da criança - E você é o mais velho, deveria cuidar dela em vez de ficar me vigiando.
 
O garoto não respondeu, embora o silêncio fosse a única coisa que pudesse pronunciar em respeito ao pai.
 
- Tá doendo, pai! Olha só, tá saindo sangue!
 
O pai lembrou-se de um lenço que a ex-mulher colocou na mochila, mas antes que pudesse pegá-lo foi interrompido pelas mãos gélidas da senhora.
 
- O que foi? - Indagou ainda mais impaciente.
 
A senhora ignorou sua reação e continuou.
 
- Veja o contraste entre a pele pálida e o vermelho-sangue; veja o caminho tortuoso pelo qual o sangue percorre; veja a dor pulsando na ferida e criando esse belo quadro orgânico, único no mundo inteiro.
 
De súbito, o rosto da senhora adquiriu um aspecto vívido; seus olhos, antes opacos pela idade, tornaram-se tão luminosos quanto aquele dia; sua voz resplandecia jovialidade; suas mãos eram suaves e quentes.
 
O homem não sabia o que dizer, estava enfeitiçado por aquela voz. Subitamente vislumbrou o quadro pintado pela filha: a tela alva, virginal, intocável, inédita; o sangue secular, hereditário, velando segredos e contando a história da humanidade - era como aquela velha praça, que se renovava a cada brinquedo novo, mas a terra - e o que ela guardava - continuava intacta.
 
- Eu quero ir embora! - resmungou a filha.
- Espere, primeiro vamos cuidar desse sangue.
 
E antes que se desse conta, a senhora sumiu da mesma forma que aparecera: repentinamente.

Ver capítulo II - Criador e Criatura
Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 17/05/2013
Reeditado em 18/03/2014
Código do texto: T4295802
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