O SEGREDO DO LIVRO

Cap. 1 o velório

Estava chovendo quando ele chegou ao velório. A sala era grande, mas naquele momento se tornara pequena diante da multidão que se aglomerava próxima aos cinco caixões. Quando Fernando Prado entrou, fechando o guarda chuva preto e molhando o chão, alguns olhares se voltaram a ele e dele saiu um aceno meio curto e sem graça, alguns abanaram a cabeça num gesto de cumprimento, outros ignoraram e viraram o rosto. Sentou-se numa beira de um banco que acabara de desocupar, próximo à porta, faltava-lhe coragem para ir até os caixões. Foi com muita luta que conseguiu chegar ali. Os choros e gemidos eram constantes, sentia alguns olhares mirando-o, como se quisessem saber como ele se sentia. – “Estou muito mal! – Tinha vontade de gritar – Eram meus amigos...”. Mas não gritava, não dizia nada. Pensava somente. Lembrava de seus amigos e de tantos anos de convivência. Às vezes tinha a sensação de estar num pesadelo.

A mãe de um deles aproximou-se, uma mulher gorda de cabelos claros, tinha um olhar cansado, parecia ter envelhecido em poucas horas mais do que envelhecera nos últimos anos, Fernando se levantou e a abraçou e como estava reprimindo suas emoções, naquele momento chorou. Percebeu que não estava sonhando, o choro foi alto e compulsivo.

A chuva continuou bem fininha e começou a esfriar. Durante todo o velório a mãe do Paulo Henrique esteve ao lado do companheiro de seu filho, que estava tão inconsolável quanto ela, outros tantos se aproximaram com suas condolências. O enterro aconteceu com muita tristeza e depois Fernando foi para casa, mergulhado nas lembranças.

Cap. 2 - Os tempos Áureos

Tinham entre 15 e 16 anos, Fernando Prado e Bruno Veigas se conheceram no primeiro dia de aula e descobriram que moravam na mesma rua, a partir daí nunca mais se separaram. Paulo Augusto e Paulo Henrique, eles conheceram no ano seguinte quando mudaram de escola. Ficaram amigos inseparáveis e se encontravam também aos finais de semana.

Os dois Paulos moravam em um bairro mais distante e vinham de ônibus para a casa dos amigos, até que um deles descobriu um caminho alternativo, passava-se pela porteira de uma fazenda abandonada e cortavam caminho por dentro dela, depois pulavam uma cerca, andavam por uma trilha e atravessavam por um riacho raso, subiam um pequeno morro que também tinha uma trilha já marcada e passavam por um pasto, pulavam outra cerca de arame farpado chegando à ponta do bairro onde seus amigos já o esperavam. Eles vinham todos os finais de semana e se divertiam durante todo o dia. A caminhada era longa, os rapazes chegavam ofegantes, porém ávidos de aventura. Sempre havia uma novidade sobre a fazenda que muitos evitavam passar, mas os dois gostavam do desafio e de demonstrar coragem em trilhar aquele caminho. Um dia Paulo Henrique veio com uma história, foi bem assim:

- Amanhã eu e o Augusto vamos procurar o tal livro...

- Que livro?- perguntou Fernando.

- Você não sabe do livro?- Indagou Bruno. – Aquele que está enterrado na fazenda...

- Isso é tudo mentira. É história pra boi dormir, eu não acredito em nada disso...

- Pois é verdade Fernando, a minha avó trabalhou na fazenda quando era menina e ela conta que o Coronel Anercides quando criança era muito pobre, andava descalço e com roupas surradas e muitas vezes não tinha o que comer. Seus pais eram muito velhos e sujos, sua mãe vivia com um cigarro de palha na boca e xingava as poucas pessoas que se atreviam a passar pela trilha que dava acesso ao seu casebre. Nenhuma das crianças tinha amizade com ele, todas tinham medo, pois havia uma lenda que a velha era bruxa e assassina, diziam que ela matava crianças para seus rituais malignos e que jogava o resto para os porcos. É sério! – contou animadamente Henrique.

- Eu já conheço todo esse blá blá blá! Inclusive essa lenda que ela matava crianças surgiu porque cinco meninos se perderam e nunca mais foram encontrados. Aí outra coisa que eu não acredito...

- E se eu disser para você que minha bisavó, já falecida, conhecia a família dos meninos desaparecidos? Disse Augusto com um ar desafiador.

- Verdade? Perguntou Bruno.

- Mesmo assim eu vou continuar não acreditando – Respondeu o incrédulo.

- Fernando você é cabeça dura... A minha bisavó contava que quatro das crianças eram irmãos e o outro era um primo que veio de outra cidade. Eles começaram brincando no terreiro de casa e depois resolveram mostrar onde a bruxa morava. Com certeza chegaram muito perto e a velha os pegou. A cidade inteira procurou por eles. Primeiro procuraram no rio, que estava muito cheio na época, procuraram nos matos, vieram cachorros farejar, nunca acharam nada...

- E porque acham que foi ela?

- Um velho que estava passando na trilha disse ter visto os moleques por lá, só que o homem bebia muito, então nunca houve a certeza. O povo invadiu o casebre e colocou fogo em tudo, inclusive nos porcos. Iam queimar a velha viva, só que o delegado chegou e proibiu porque não havia nenhuma prova. E ainda falou, minha bisavó contava, que se queimassem a mulher e depois as crianças aparecessem como que ficaria a consciência de cada um. Depois disso as pessoas foram saindo e ficaram na esperança dos meninos estarem perdidos no mato. Só que nunca mais foram vistos.

- Augusto, me diz uma coisa – perguntou Bruno com muito interesse - Se depois os meninos nunca mais foram vistos porque não investigaram melhor a velha?

- Isso eu já não sei. Eu sei que depois de algum tempo acharam o corpo de outra menina boiando no rio, numa época de chuva, ela não era da cidade e nem das redondezas, nunca descobriram quem era, então o delegado concluiu que ela viera boiando de muito longe e que fato igual poderia ter ocorrido com os meninos, que eles poderiam ter se afogado e sido levados pela correnteza, igualmente ao caso da menina, era uma época de muita chuva quando houve o fatídico desaparecimento, alguns se convenceram disso, outros não. O fato é que com isso deu se encerrado o caso.

- É, mas a menina também poderia ter sido morta pela bruxa, que deve tê-la raptado de algum lugar...

- Ué Fernando, não é você que tanto não acredita?- Perguntou todos quase ao mesmo tempo e dando risadas.

- Vocês ficam com essas histórias da carochinha e eu acabo me empolgando, só isso...

- Não é da carochinha não, Fernando, o pior é o que vem depois. Dizem que todos que participaram colocando fogo no casebre da mãe do Coronel morreram de mortes trágicas, não muito tempo depois. Ela jogou uma praga gritando que todos os incendiários iam se arrepender, estava amaldiçoando cada um e que não escaparia ninguém. Depois de alguns meses rolou uma pedra enorme de um barranco e matou três homens que almoçavam na sombra. Surpresa! Os três haviam participado do incêndio. Nem todos acreditaram, acharam que foi uma coincidência. Passado mais um ano, duas mulheres estavam lavando roupa no riacho e veio uma onça e matou-as, outras quatro que estavam próximas, a onça nem olhou. Aí a população começou a ficar com medo, especialmente os que estavam lá, assim como minha bisavó, só que ela não ajudou por fogo como muitos outros. No final de sete anos haviam morrido os exatos doze que participaram ativamente. Reclamaram para o delegado, para o padre e para algumas autoridades que diziam que era tudo fantasia daquele povo supersticioso.

- Como morreram os outros? – Perguntou Bruno.

- Um caiu do cavalo. Dois morreram de doença, outro foi assassinado pela esposa e os outros dois morreram afogados.

- Esta conta está errada, você disse que eram doze e contou a morte de onze. – Falou Paulo Henrique que ouvia tudo atentamente e numerava os casos.

- Não, de jeito nenhum, eu disse doze e numerei doze, você não sabe contar direito – Disse Paulo Augusto irritado.

- Não, o Henrique está certo, você citou onze, faltou um.- Bruno apoia o amigo. – Você disse que três morreram no barranco, duas mulheres a onça matou, um caiu do cavalo, dois morreram de doença, um foi assassinado pela esposa e dois morreram afogados. Não foi Fernando?

- Sei lá, eu não estava contando, que diferença faz, já morreu mesmo...

- Eu quero saber do que o outro morreu – Disse Bruno curioso.

- Você tem razão, tem mais um – Falou pensativo Augusto, com jeito de quem tenta lembrar. - O que foi mesmo o outro caso?...Ah! Lembrei! Esse foi o pior caso, pois essa mulher sabia que havia participado do incêndio, estava aterrorizada após a sequência de mortes, qualquer coisinha a deixava em pânico: barulho, movimento... Sempre achando que a morte a espreitava. Nem saía de casa, estava doente de tanto pavor. Até que um dia uma cobra entrou em sua cozinha e a picou e ela caiu durinha quando sentiu a picada, seu marido que estava do lado matou a cobra e verificou em seguida que não era venenosa, ela morreu de medo. Após todos esses acontecimentos, ninguém ousava mais mexer com a velha, ninguém passava mais pelo caminho. Poucos a viam. E muito raramente.

- E o que foi que aconteceu depois, seu sabe tudo?

- Olha o Fernando interessado pelas histórias da carochinha... – Disse Bruno rindo...

- Eu conto o que aconteceu – Interrompeu Henrique - Quando a velha morreu de tuberculose, foi enterrada no fundo do quintal pelo Coronel, porém, seu pai já havia morrido alguns anos antes e sido enterrado no cemitério, pois ele tinha alguns conhecidos da roça que providenciaram seu enterro, mas quando sua mãe morreu, eles estavam sozinhos e abandonados naquele lugar esquisito, haviam reconstruído o casebre e recuperado alguns porcos e algumas pequenas plantações, mas era tudo muito miserável. Após ficar sozinho, o Coronel, então um menino de seus dezessete ou dezoito anos, passou a ir mais vezes à cidade, mas era muito mal visto por todos, ninguém queria se aproximar dele, dizem que ele começou a vender alguns porcos no mercado, entretanto, um dia algumas senhoras disseram que não comprariam mais carne ali se continuassem a aceitar os porcos do rapaz, que consideravam um herege e como eram freguesas ricas e com muitas amizades na cidade, preferiram não contrariá-las e o pobre coronel voltou para o seu casebre com o porco. No caminho, viu uma bela jovem na janela de sua casa e se apaixonou, ela por sua vez não o olhou, ele estava mal vestido e sujo e com um porco nas costas. Apesar de toda vida ele ter sido humilhado, nesse dia sentiu muito mais, naquele momento conhecera o desprezo da jovem que tanto o atraiu. Não era feio, estava maltrapilho e cheirando a porco, dificilmente atrairia algum olhar de qualquer moça. Ao chegar à sua casa ele chorou muito, a solidão estava sempre presente, passou toda noite acordado pensando em sua vida como era desgraçada, pensando no belo par de olhos da jovem na janela e também das senhoras que o humilharam. Foi quando ele, remexendo nas pouquíssimas coisas de sua mãe, achou umas roupinhas de criança e nelas enrolado um retrato de uma mulher de boa aparência com um bebê no colo, exatamente com uma das roupinhas. Ele ficou intrigado com aquilo, quem seria a mulher e a criança?...

- E quem era a mulher e a criança?- Perguntaram os três rapazes simultaneamente.

- Calma que eu digo. Ele passou muitos dias intrigado com a foto, pensava ser ele a criança, mas porque sua mãe nunca lhe mostrara essa foto, e a mulher quem seria? Ele resolveu procurar uma velha tia que o visitava quando criança, pois sabia onde ela morava, sua mãe sempre dizia. Quando foi atrás dela, ele se sentiu um caipira desajeitado, a casa dela era humilde, porém, limpa e arrumada. Ela o recebeu muito bem, ficou sabendo da morte de sua irmã e ficou triste. Ele quis saber a respeito da foto e tirou-a do bolso. Ela ficou pálida ao ver o retrato e as roupas. Conhecera aquela mulher, sua irmã havia sido babá de uma primeira filha que ela tinha, e agora vendo as roupinhas que tinha visto vestir seu sobrinho, percebeu que diferente de como ela havia contado que adotara o menino, passou-lhe um calafrio, teria sua irmã roubado o menino de sua patroa?

- Então, ela havia roubado o bebê? – Perguntou Bruno, sempre o mais curioso.

- Quer saber de uma coisa, eu cansei dessa história, outro dia eu termino de contar.Vamos jogar bola...- Sugeriu Henrique já correndo para o campo.

Todos o seguiram correndo e já chutando a bola para o campinho improvisado e de pouco gramado.

(CONTINUA...)

Raquel Delvaje
Enviado por Raquel Delvaje em 13/06/2013
Reeditado em 24/06/2013
Código do texto: T4339838
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