DODINHA

Era boazinha, doce, protetora. Quando apareceu, não fiz perguntas. Tinha os olhos meigos, fala macia como o farfalhar do canavial. Ficávamos horas sob os cafezeiros. Nosso brinquedo era fazer trilha no chão para o carro de boi passar. Com folhas de bananeiras, fazíamos uma lagoa. Ali, os peixes estavam ao alcance de nossas imaginárias redes. Enfeitávamos o jardim de nossa casinha com flores silvestres. E as horas iam passando, sem pressa, no gostoso brincar da fantasia. Era só quando mamãe chamava-me que Dodinha ia embora. E não era no primeiro chamado. Não. Às vezes, ela precisava gritar para minha amiguinha ir. E a culpa era minha. Relutava em me desgrudar. E mesmo depois que ela sumia na esquina do vento, a presença gostosa ainda me acompanhava na lembrança por um bom tempo.
— Doralice!  Volta, filha. Do – ra – li – ce.  
Ouvia a voz como se fosse um eco da montanha.
— Que é, mãe?
— Menina desligada. Parece que está no mundo da lua. Venha, querida. O almoço está pronto.
Segurava forte em minha mão, como a temer que eu fugisse de novo para o mundo-de-faz-de-conta.
Muitas vezes, Dodinha almoçava junto; outras, ficava na cama segurando-me a mão até que eu adormecesse.
Dodinha foi crescendo comigo. Nunca falei para ninguém do meu segredo. Quando mamãe me surpreendia discutindo com ela, queria saber:
— Com quem estás brigando, garota? Que falaçada é esta?
Nem assim eu revelava.
— Não era ninguém não, mãe. Falava sozinha. Brigava comigo. Sou uma tonta.
Quando fui para o colégio, ela me acompanhou. A professora reclamava. Principalmente quando Dodinha insistia em não aprender. Alguns dias eu a deixava pelo caminho, porque ela se tornou travessa. Pegava merenda dos colegas, lápis, canetas, brinquedos. E depois botava a culpa em mim.

Várias vezes meus pais foram chamados. Diante deles e da diretora, eu só chorava. Não ia entregar a Dodinha. Nem podia. Ela me ameaçava. Dizia que ia embora para sempre. Eu ficava num desespero sem tamanho. Então, submetia-me, fazendo tudo o que ela determinava, sem julgar, sem ver o errado nos meus atos.
Berenice era uma menina extrovertida, sapeca, de olhos azuis transparente. Dodinha implicou com ela. Tinha inveja da garota, que além a queridinha da professora era a melhor aluna da classe. Dodinha deu fim nela. Quando a garota tirava água do poço, empurrou-a. Quando descobriram, a menina já estava morta. 
Por causa dessas coisas, tive dificuldade no aprendizado. Fui para a Psicóloga. Mas não contei sobre Dodinha. Nem a levava comigo. Isto não. Tinha um cuidado especial de não a deixar entrar no consultório. E nem adiantava ameaça. Quando ela ia até a porta, eu dava um jeito de deixá-la do lado de fora, ainda que me doesse o coração. Assim, fui enganando a Psicóloga. Quando eu me distraía, e Dodinha entrava, sempre dava um jeito:
— E agora, Doralice, estás falando com quem?
Eu sempre tinha uma resposta na ponta da língua.
— Era comigo, Mara. Gosto disto.
Ela me olhava e sorria. Depois, mudava de assunto. Era assim que enganava a doutora. Nem ela, nem ninguém, conhecia Dodinha. Eu ficava com medo de que se descobrissem, fossem me roubar a amiguinha.
Mas Dodinha tornou-se má comigo. Os cabelos desgrenhados, os olhos esbugalhados, um sorriso com dentes faltando, as mãos com unhas exageradamente compridas me davam medo.
Fiquei um tempo encolhida nos cantos, sem comer, sem tomar banho, sem olhar para as pessoas, porque se levantasse os olhos Dodinha soltava fogo pelas narinas e me queimava. Precisou chamarem uns homens com roupas brancas e me levarem para o hospital. Por um período, fiquei sem minha companheira. Pensei que tivesse ido embora. Nem chorei. Ela estava me assustando, fazendo essas coisas horríveis.
Depois, quando voltou, não parecia tão feia. Mas sei que era somente para me enganar. Ficamos fingindo. Eu não queria que soubesse que me assustava. Deixei de falar com ela. Mas Dodinha foi se insinuando, dizendo ter mudado, falando macio como no começo. Cedi.
Agora nossa conversa era contínua. Mas quando vi já estava novamente dominada por ela. Foi então que veio a exigência. Para que meus pais não atrapalhassem nossa amizade era iria dar um jeito neles, um castigo que estavam merecendo. A Dodinha era muito esperta. Disse que era para eu tratar papai e mamãe com carinho, para não desconfiarem. E fiz assim. 
Um dia, fomos pescar. Dodinha ia atrás, escondida. Eu não sabia de nada. Então, quando chegamos à ponta da plataforma, Dodinha empurrou os dois. Enquanto eles gritavam, ela gargalhava, os cabelos longos ao vento, batendo palmas e dando pulos de alegria. Depois, pegou a minha mão e voltamos para casa.  
Ficamos trancadas. Passados uns dias, quando acharam os corpos, a polícia nos procurou. Os homens foram brutos. Algemaram-me.

Disse que era inocente, que Dodinha tinha feito aquilo, mas não acreditaram. Nunca tinha falado dela para ninguém. Nunca. Agora, ninguém acreditava. Vejo que vocês também não acreditam. E não me olhem assim. Me soltem. Dodinha, Dodinha, vem me tirar daqui. Vem. Por que não consigo te ver? Fui obrigada a trair nosso segredo. Não me condene. Quero que me perdoe. Aparece, Dodinha.


 



MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 03/07/2013
Reeditado em 07/07/2013
Código do texto: T4370542
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