Em busca da verdade

Era uma estreita escada que a separava daquele lugar. Poderia não haver nada lá embaixo, mas Clara pressentia que as respostas que procurava estavam no gélido porão. A casa estava abandonada há anos. Após o cruel e misterioso assassinato de Gertrudes, ninguém mais ousou aproximar-se daquele nefasto local. Há quem diga que o homem queria assaltar a casa e, tendo visto a senhora indefesa, resolveu aproveitar-se dela do modo mais impiedoso possível, matando-a depois para evitar que fosse descoberto. Outros acreditam ter sido vingança, visto que Gertrudes nunca fora uma mulher de princípios, tendo causado mal a muitos. No entanto, a versão mais perturbadora é a de que não existiria assassino algum. Gertrudes teria sido possuída por alguma força que rondava a casa, matando-se de um jeito jamais visto. Por mais nebulosa que fosse a história dessa casa, Clara precisava encontrar nela o que há tempo procurava.

A trajetória fora longa. Clara era uma mulher na faixa dos quarenta anos, mas seus grisalhos fios de cabelo e seu rosto fortemente marcado pelos infortúnios da vida envelheciam-na consideravelmente. Não tivera filhos, quem dirá marido. A solidão parecia fazer parte de seu cotidiano. A verdade é que o ser humano é extremamente adaptável. Assim como podemos viver anos em um relacionamento que está fadado ao fracasso, é possível conviver com a ideia de estar somente e impreterivelmente consigo. No entanto, não foi unicamente o costume de estar sozinha que a impediu de formar uma família. Clara buscava de modo obsessivo a sua origem. Foi adotada quando pequena e tudo o que sabia é que seus pais tinham sido assassinados após seu nascimento. Alguém a deixou na frente de um orfanato com as seguintes palavras: que estes olhos verdes e brilhantes jamais vejam tamanha atrocidade como a que fora vista hoje.

Clara não precisou permanecer muito tempo no orfanato. Em poucos meses, uma senhora solitária cativou-se com o sorriso da bela menina e adotou-a. Assim, Clara passou um longo período de sua vida sendo educada com muito amor e carinho numa pequena casa do subúrbio da cidade. No entanto, o conforto do lar não foi suficiente para saciar a curiosidade da garotinha de descobrir o paradeiro de seus pais. Após tanto questionar sua mãe adotiva, sem obter respostas, decidiu que era necessário investigar de outros modos. Por ter sido uma tragédia que marcou a cidade na época, foi fácil descobrir que seus pais foram mortos e encontrados embaixo de uma ponte. As marcas nos corpos indicavam que era de fato um assassinato, o qual teria ocorrido utilizando-se facadas, seguidas de tiros de uma arma calibre 38. Na época, investigaram quem teria matado-os e o porquê de cometer tal crime, mas nada foi descoberto.

Sem saber qual teria sido a razão de matarem seus pais, Clara resolveu pesquisar a respeito da história daqueles que tanto quisera conhecer. Por meio de vizinhos, conhecidos e desconhecidos, soube que seus genitores foram pessoas simples. Viveram de um modo pacato num bairro não tão longe do que Clara morava atualmente. Sem possíveis inimigos, era difícil entender o porquê de alguém assassiná-los. Todavia, aos poucos surgiram curiosas histórias. Seu pai não teria sido o homem honesto que tanto aparentava aos outros. Envolveu-se com inúmeras mulheres ao longo de seu casamento, sendo que uma delas apaixonou-se fortemente por ele- uma tal de Gertrudes. Quando mais jovem, essa mulher foi avassaladora. Era linda, mas impiedosa. Deixou muitos corações desolados. Conhecia todos os homens da redondeza, tendo se relacionado com eles pelos mais diversos motivos. Todavia, nem o coração mais frio escapa do amor fervoroso.

Gertrudes apaixonou-se. Certa noite, num bar da cidade, conheceu Antônio. Não se sabe se fora a barba por fazer ou a forma seca de tomar suas doses de uísques, mas o certo é que o charme de Antônio atraiu-a. Naquela fria madrugada, os dois tiveram uma das mais quentes noites. Após essa, vieram inúmeras outras. A sagacidade e impetuosidade pareciam os unir de um jeito jamais visto. No entanto, não há chama que resista a fortes temporais. A esposa de Antônio passou a suspeitar da presença cada vez mais esporádica deste. Descobriu o caso do marido e, depois de muitos conflitos, aceitou continuar com ele se este terminasse seu caso com Gertrudes. Por amor à mulher e, principalmente, por já não ver mais tanto encanto na amante, deixou-a. Sem partilhar do mesmo sentimento, Gertrudes enfureceu-se e prometeu vingança. Um tempo depois, Antônio e sua mulher foram encontrados mortos. Sabe-se que deixaram uma linda menina de três meses, a qual foi adotada posteriormente. Esta criança era Clara.

Não havia certezas. Ninguém sabia quem poderia tê-los assassinados. Entretanto, para Clara, Gertrudes era a responsável. Começou, então, a pesquisar a história desta mulher, mas, além de seus inúmeros casos amorosos, somente descobriu onde esta morava e que tivera uma morte violenta. Diante de tal situação, Clara percebeu que o único modo de saciar sua curiosidade e descobrir maiores informações seria invadir a casa de Gertrudes, a qual estava abandonada desde sua morte.

Clara começou a planejar a entrada na residência da falecida. Soube que havia rumores de o local ser mal-assombrado. No entanto, nada a convenceu de desistir de seu plano. Numa sexta-feira de Outono, resolveu colocar suas ideias em prática. Pegou o ônibus e, após descer, caminhou cerca de 30 minutos. A casa ficava num lugar isolado, tendo, nas proximidades, um grande lago. Havia poucas casas na localidade, dispersas pelo caminho. Ao deparar-se com a residência de Gertrudes, Clara percebeu que, de fato, havia muito tempo que a o lugar não era visitado. A grama parecia tomar conta do ambiente. Após passar por ela, chegou, finalmente, na porta que poderia lhe trazer as respostas que tanto queria. Embora esta estivesse trancada, foi extremamente fácil abri-la. Afinal, o decorrer dos anos havia deixado a madeira fragilizada e corroída por cupins. Com um simples chute, a mesma destravou em poucos segundos. Tudo estava como o planejado até o momento. Clara entrou na casa que carecia de luz, andou pelo local, que estava repleto de teias de aranha e pó, e, então, viu a estreita escada do porão. Depois de vasculhar as outras partes da casa, sem nada encontrar, sabia que, se houvesse algo que pudesse lhe ser útil, estaria lá embaixo. Com passos precisos e cautelosos, chegou num dos locais mais aterrorizantes que poderia imaginar. A escuridão e o cheiro mórbido faziam-na sentir-se extremamente desconfortável. Ligou sua lanterna e olhou ao redor. Prateleiras e estantes cheias de livros contrastavam com uma cama e objetos que pareciam ter saído de um bordel. Começou a olhar as prateleiras, mas não havia informações úteis. Então, quando já estava desistindo de sua busca, deixou cair um livro de capa preta dentro do qual uma carta apareceu. Com letras que demonstravam a pressa e desespero de quem escreveu, lia-se:

“Por quê? Por que fizeste isso comigo? Deu-me o sabor do vinho e depois me deixaste com o amargor do vinagre. Eu te amo mais que qualquer outra. Duvido que sua mulher irá te satisfazer algum dia do modo como eu te satisfiz. Já tentei de tudo, mas tu não me escutas. Depois de conhecê-lo, descobri o que é a vida. Sem você, ela não existe. Eu poderia me matar. Confesso que tenho essa vontade todos os dias. Mas quer saber? Por que eu faria isso? Deixar-te feliz com tua mulher? Eu sei que minha morte te faria sofrer, mas não o suficiente. Tu continuarias com tua esposa e tua filha que acaba de nascer. Já decidi o que eu quero. Tomei as providências necessárias. Daqui dois meses, só restará no mundo tua menina. Ficará sozinha, órfã de pai e mãe. Assim, continuarei todos os dias desejando-te, mas, ao menos, não verei o reluzir da tua felicidade sem mim.

Com eternas juras de amor,

tua Gertrudes.”

A paixão de Gertrudes fora tão avassaladora que possibilitou tamanho crime. Por estar no porão, provavelmente aquela carta nunca chegara nas mãos de Antônio. Ainda atordoada com o que lera, mas certa de que finalmente havia descoberto o que ocasionou a morte de seus pais, Clara começou a sair da casa. Ao olhar novamente aquelas teias de aranha e a poeira, convenceu-se de que, por mais violento que tivesse sido o assassinato de seus pais, o destina dera o troco. Não sabia quem matara Gertrudes, mas essa era uma morte que não tinha interesse de desvendar. Apenas agradecia ao fato de esta ter ocorrido. Agora, Clara poderia, enfim, retomar a sua vida.

Marcela Balbão
Enviado por Marcela Balbão em 12/07/2013
Reeditado em 12/07/2013
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