American Devil

Staunton, Virginia, 1886

Stannislaw Pika cortou o dedo. O sangue pingou rapidamente pelo corte e escorreu sobre a superfície da mesa, onde ele havia desenhado um pentagrama. Ele colocou um pano sobre o ferimento e aguardou em silêncio, como se algo fosse realmente acontecer, mas não houve nada a não ser os barulhos dos grilos ao lado de fora daquela cabana abandonada. Stannislaw respirou fundo, em parte aliviado em parte decepcionado. Pegou a lanterna e foi embora.

Era inverno, por isso achou por bem se agasalhar. A mata estava úmida e gelada. Seus olhos lacrimejavam e sua mão esquerda e antebraço eram as únicas partes quentes em seu corpo, pois segurava a lanterna ali. Parou numa encruzilhada e olhou para os lados, imaginou estar perdido, depois de um instante teve certeza.

Como iria voltar para casa? Sua esposa estava aguardando-o, sua bela esposa Mariane, seus belos filhos. Um casal. Michael e Amanda. Pensou em retornar à cabana e voltar para casa na manhã seguinte, inventando uma desculpa qualquer. Voltou, mas não achou a cabana, teve então certeza de estar totalmente perdido. O querosene do lampião iria acabar em uma ou duas horas. Teria de passar a noite na mata, mas fazia menos de zero graus. Poderia morrer. Pedir ajuda à Deus lhe passou pela cabeça, mas como há dez minutos atrás estava tentando fazer um ritual satânico, esqueceu essa ideia.

Que ideia besta, disse em voz alta, fazer um ritual ao Diabo. Se quisesse melhorar a vida de sua família poderia ter aceitado o emprego na paróquia do bom frade Phillip. Seu orgulho era maior, pensou, pois preferira vender a alma ao tinhoso do que ser ajudante de vigário. E o que diria a bondosa senhora Paveti, dona do orfanato onde ele tinha crescido, se soubesse onde e o que ele estava fazendo agora? Sentiu-se bobo, depois culpado.

Já estava preparando para se sentar quando ouviu uma voz em nada familiar: Ora, ora, Stan. Bom te encontrar, você é quem eu queria ver esta noite.

Stannislaw levou um susto, mas agradeceu a coisa qualquer, pois alguém de fato aparecera. Esticou o braço da lanterna e a luz aumentou o raio, revelando algumas árvores a mais, e por um instante ele sentiu um cheiro de flores velhas e lembrou-se da morte. Uma vez foi obrigado a beijar o cadáver de uma menina que morrera no orfanato. Ela tinha morrido de tuberculose e estava no caixão, com um véu branco por cima. A bondosa senhora Paveti fez todos os garotos se aproximarem e darem um beijinho em sua bochecha. Quando Stannislaw a beijou, sentiu o cheiro das flores que rodeavam a menina. Este cheiro ele sempre associara à morte, mesmo sem saber que este episódio assim o fizera.

Das trevas uma figura adentrou a luz da lamparina. Era uma mulher bem vestida, de cartola, luvas brancas e bengala com ponta de metal. Vestia um terno bem engomado, que ressaltava seus seios e a calça mostrava as curvas de uma perna perfeita. Estava com botas de cano alto, negras e muito reluzentes. Ela sorriu para Stannislaw, seus lábios vermelhos, um sorriso magnético.

Olá senhorita, disse Stannislaw um pouco acanhado – será que ela não estava com frio? – ,não me recordo de onde nos conhecemos, mas estou feliz em vê-la por aqui. Estou com dificuldades para encontrar o caminho até o vilarejo de Portuária.

Stan, seu velho fanfarrão, disse a mulher. Pare de mentir, sei que quase mijou nas calças de medo de estar perdido. Você é um covardão, meu velho, todos sabem, mas me agrada seu estilo.

Stannislaw ficou chocado. Em sua cabeça imaginava de onde conhecera tal pessoa, de linguajar tão agressivo, mas lhe incomodava realmente uma parte da fala da mulher: todos sabem. Ignorou esse fato e disse: Quem é a senhorita? Poderia me ajudar a chegar em minha casa, se souber me indicar a direção é suficiente.

Vou te dar uma escolha, velho, disse a mulher, ajeitando a cartola, venha, vamos andando. Caminhe ao meu lado. Eles tomaram o caminho da direita na encruzilhada e só se ouvia o toc-toc da bengala da mulher pousando no chão duro da mata fria.

Veja Stan, continuou ela enquanto caminhavam, estou aqui hoje por tua causa. Vieste à cabana nesta noite gelada e cortaste teu dedo sob um pentagrama para me chamar e aqui estou. Vais dizer o que quer ou terei de adivinhar?

Ela lhe sorriu mais uma vez e Stannislaw não poderia dizer se seus olhos eram verdes ou castanhos. Você é o Diabo?, perguntou gaguejando, mas a mulher não respondeu, apenas continuou a caminhar na escuridão. Seus passos se tornaram mais lerdos e ela o encarou.

Pode me chamar do que quiser, disse ela, mas como eu falei agora há pouco, vim te oferecer uma escolha. Se aceitares, viverá para sempre do jeito que sempre quis e tua família terá tudo, mas no fim, tu serás meu. Pensa um pouco enquanto caminhamos mais nessa direção. Quero te mostrar uma coisa.

Stannislaw teve de conter o mijo que já começava a descer por sua ceroula. Jamais imaginava que um pacto com o Diabo fosse feito desta forma e estava absurdamente temeroso e arrependido da besteira que fizera.

E se eu não topar?, disse ele. A mulher continuou caminhando, rodando a bela bengala em seus dedos. Ora, continuarás com tua vidinha, disse por fim. Não sou maligna, veja bem, apenas fecho contratos. Tem o direito de não assinar se não quiseres. Mas venha, venha, primeiro deve ver, para depois decidir.

Ver o que?, pensou Stannislaw, mas não se atreveu a falar nada. Estava morrendo de medo, embora não ousasse admitir. A mata tinha ficado mais fechada e ele reparou que não se ouvia mais o barulho de grilos ou quaisquer outros animais, mas já não era assim antes?, não saberia dizer. Altas sebes os rodeavam por ambos os lados da pequena estrada e em meio a uma delas, um farfalhar se ouviu. Ambos pararam e Stannislaw olhava da mulher para a sebe sem saber o que fazer ou dizer.

Para sua surpresa, saiu da mata a bondosa senhora Paveti. Ela carregava uma forma de barro embrulhada em muitos panos. Olá minha querida, disse a senhora Paveti se dirigindo à mulher, Olá Stan! Vamos, estamos atrasados para a festa.

Como vai, Gertrudes?, cumprimentou a Diabo. O reumatismo tem atacado? Atônito, Stannislaw viu a senhora Paveti dizer que o reumatismo estava calmo, obrigada. As duas mulheres, a bondosa senhora e a Diabo, caminharam ao seu lado, conversando alegremente, como duas amigas de infância. A senhora desembrulhou os panos da forma de barro e podiam-se ver vários bolinhos quentes cobertos com açúcar. Veja o que eu trouxe, minha querida, sei que todos vão gostar. Não tenho dúvidas, respondeu a Diabo, esses bolinhos são um sucesso há décadas.

Continuaram a caminhar na mata e um barulho começou a ser ouvido ao longe, e luzes começaram a ser vistas. Era um barulho de música, de bandolim, de flauta e de tambores. Era uma festa. Ao chegarem ao pé de uma clareira na mata, Stannislaw pôde avistar muitas pessoas ao redor de uma fogueira. Era de lá que vinha a música. A senhora Paveti pediu licença e se juntou à turba, enquanto Stannislaw e a Diabo ficaram observando ao longe. A festa era grande, muitas pessoas estavam nela. Stannislaw reconheceu a maioria. O bom frade Phillip dançava e bebia feito louco, pelado. O senhor que vendia amendoins na porta da igreja estava lá também, gritando palavras de baixo calão, dando risadas e derramando bebida em seu corpo velho e nu. A cidade inteira estava na festa, dançando ao redor da fogueira, bebendo, gritando e dando risadas altas. Stannislaw viu sua bela esposa Mariane, com muitos homens sobre ela. E viu a filha do ferreiro, Natalie, de apenas quinze aninhos, o chamando para copular, gritando seu nome num desejo histérico. E seus filhos Michael e Amanda brincavam de adultos com outras crianças do vilarejo.

Veja Stan, disse a Diabo. Veja o que te ofereço. Uma vida de cumplicidade e alegria, com todos aqueles que conhece, ou pensava conhecer. Você nunca imaginou que a senhora Paveti era uma das minhas, não é? E o padre Phillip, Natalie, ou mesmo sua esposa e filhos?! Sim Stan, todos eles me procuraram antes de você e todos aceitaram a minha proposta. Agora é sua vez, junte-se a eles e no fim, venha para mim.

Stannislaw estava bestificado e desta vez ele não conteve a urina, que escorria quente em sua coxa e gelada em sua canela. Não!, gritou ele. Não! E saiu correndo gritando pela floresta, querendo que aquelas imagens saíssem de sua cabeça, mas era impossível. Pediu perdão à Deus, seu bom Deus, que sabia perdoar aqueles que tinham errado. E sua lanterna caiu de sua mão e Stannislaw ficou na mais profunda escuridão rodopiante.

O som de uns pássaros o fez despertar. Era de manhã e seus olhos doíam. Ele estava deitado sobre umas raízes de árvore. Ao se levantar viu a cabana um pouco longe de onde estava e a lanterna caída no chão. Se ajeitou as roupas e partiu para o vilarejo, agora bem mais fácil de ser localizado, durante o dia.

Os sinos da igreja soavam quando ele chegou e se dirigia à sua casa. Pôde ver o padre Phillip na entrada da igreja, cumprimentando as pessoas. O padre olhou para ele e fez um aceno com a cabeça. Stannislaw não cumprimentou de volta, apenas acelerou o passo, suando frio. Ao cruzar a praça viu a senhora Paveti indo em direção à igreja, ajeitando seu xale. Acompanhando-a estava Natalie e o ferreiro. Os três deram bom dia à Stannislaw, que saiu correndo sem responder e entrou em sua casa.

Mariane veio correndo em sua direção, perguntando onde esteve durante a noite, se estava bem, que ela ficara preocupada, mas Stannislaw fugiu de seu abraço, dos abraços de seus filhos e se trancou no porão.

E ele raramente saía do porão. E assim foi, pelo resto de sua vida, olhando para as pessoas pela janela do porão. E elas olhavam de volta e o cumprimentavam, mas em seus olhos ele via. Via tudo aquilo! Eles sabem!, gritava ele, todos sabem!, e eu sei que vocês sabem!

Passou a vida no porão, sendo alimentado pela mulher, e jamais deixou que ela o tocasse novamente. Seus filhos ficaram adultos e saíram de casa. E até o fim, Stannislaw via as pessoas do vilarejo e gritava que ele sabia. E virou um velho doido em reclusão total por toda a vida, numa escuridão de dúvidas sombrias.