Chamas da Meia Noite

Encruzilhada

(Chamas da meia noite)

Já eram quase onze horas da noite quando uma imagem solitária cruzou a rua dos pássaros. Seus cabelos loiros e entrançados mantinham-se fixos como um caracol preso a uma presilha de prata, enquanto seu vestido branco banhava-se com a luz do luar. Uma imagem florescente no meio da penumbra... Em sua mão direita, uma bolsa de couro no formato de envelope combinava perfeitamente com a sandália marfim que teimava em apertar seus delicados pés. A garota retirou os calçados, e carregou-os na ponta dos dedos. De passos curtos e cambaleados, a jovem já não agüentava mais sentir seus doloridos tornozelos que insistiam em doer como se quisessem formar bolhas de calo. Bem, pelo menos a jovem já estava perto de casa, afinal, ela não vinha de tão longe assim... Karla vinha de um quarteirão próximo! Lá da casa de sua melhor amiga que completara 17 anos naquele dia. A propósito, mesma idade que a sua.

Na festa de Miriam, comes e bebes a vontade. Era fartura até o amanhecer. Pena que os pais de Karla não permitiam que a única filha passasse a meia noite fora de casa. Uma decisão nada agradável ao ego de sua adolescência. Pois no fundo no fundo, o que ela mais queria, era ser normal. Simplesmente normal como as pessoas que conhecia. E quando isso não acontecia, o coração imaturo enchia-se de mágoas. Um caso comum como quando dava o horário de ir embora, no meio da festa, abandonando sua roda de amizades. Abraços e beijos marcavam a despedida deixando suas amigas pra trás, se divertindo... “Karla! Não acredito! Você já vai embora?” Perguntavam elas na maior diversão, entre os mais abertos sorrisos e gargalhadas. “É que tenho que acordar cedo! Vou ter prova de matemática na segunda!” Explicava, tentando gritar ainda mais alto que as aparelhagens sonoras ao som do Dance Mix. Era uma máscara de satisfação em uma tristeza só. Um reflexo de contentamento que ocultava seu lindo rosto melancólico...

Um breve olhar no relógio para ver se estava tudo certo, e os ponteiros marcavam dez minutos para as onze. Entretanto, tudo era deserto. As residências ao lado, eram todas de portas e janelas trancadas como se o bairro já dormisse no silêncio dos sonhos. Nem carros, nem pessoas, muito menos animais no asfalto ou calçada de onde seus finos pés tocavam o chão de pedra fria. Algum tempo passou. Um novo olhar ao relógio, e os ponteiros continuavam lá. Dez pras onze. “Droga!” Ela não tinha percebido, mas, a bateria do relógio havia acabado. “Afinal, que horas são?” Com certeza já eram um pouco mais ou um pouco menos da meia noite. Tudo bem! Tudo bem! Era só virar a encruzilhada que chegaria a seu aconchegante lar. Um longo caminho pra quem tinha pressa de chegar... Porém, a rua dos pássaros parecia ter parado no tempo. Não emitia sequer o som de um grilo ou quem sabe de uma coruja qualquer. Qualquer inseto ou animal da noite, pelo menos, pra avisar que tinham vida. A ansiedade era gritante no constante silêncio urbano. Tudo aquilo parecia um sonho. Na verdade, um pesadelo em que a brisa dos ventos não tinha força alguma. Não conseguiam sequer chacoalhar algumas árvores inertes que velavam o meio fio, e que deixavam cair sobre o solo, um pouco de folhas secas.

O ar do sereno congelava suas narinas a cada inspiração. O clima era frio, ao contrário dos postes que destilavam para o alto fumacinhas de insetos queimados. Mariposas suicidas, daquelas que olham o maravilhoso brilho das lâmpadas e se atiram no calor mortal, na tentativa de se aquecerem. “Ai! Meu pai vai me matar!” Reclamou consigo. Já estava chegando, e isso fazia sua cabeça fervilhar, imaginando o sermão que receberia. Contudo, a uns 50 metros de sua casa, ao virar a rua, um forte e curto vento sentiu por trás de seus ombros nus. O arrepio violentou sua pele, e a desconfiança, arrancou-lhe um súbito sentimento de medo. Olhou pra trás, e não viu ninguém. Karla apressou os passos... “Estranho...”

Em sua costa, uma mancha começou a coçar, doer e logo arder como fogo. Por cima de seu escapulo, o sinal de nascença semelhante a uma borboleta. A coisa que mais indagava-lhe dúvidas. Por que será que certas vezes aquilo inflamava fazendo-lhe com que passasse mal? Curioso... Sua cabeça rodou. Suas pernas falharam, e Karla, cambaleou lentamente até cair no chão. Seu corpo estava fraco, sem forças, que nem a brisa do vento. Nem engatinhar ela podia. O abrasamento da mancha estendeu-se por todo seu corpo. Parecia queimar no fogo escaldante de um vulcão prestes a cozer sua carne. Um grito abafado tentou sair de sua garganta. Não dava. A jovem garota apenas se contorcia no molhado chão do sereno, na solidão e na espreita do luar...

Karla não podia falar ou mesmo se mover. Mal enxergava e ouvia o fraco som de seu gemido. Entretanto, seu olfato não havia sido afetado pela moléstia. Ainda podia sentir o distinto cheiro de jasmim, o doce aroma do campo. A confusão tomou conta de sua mente. Estava perdendo os sentidos? Essa foi à pergunta que saiu do fundo de sua memória restante. Volveu com muita dificuldade a cabeça, seguiu o perfume com suas lindas íris azuis, procurando... Assim, pôde ver com muita dificuldade um jovem rapaz de roupas claras. Bem longe, ou bem perto não sabia dizer... Mas de uma coisa ela tinha certeza! Era dele esse aroma.

- Karla! – Ele gritou. E sem perder tempo, aproximou seus lábios nos lábios da moça sem tocá-los uns aos outros. O jovem negro inspirou fortemente pela boca. Extraiu da jovem uma fumaça dourada e reluzente como o sol, e baforou para o céu dispersando a energia no ar. O rapaz sentiu náuseas. Também caiu sentindo as forças lhe faltando. Porém, logo recobrou a saúde. Karla continuava lá, caída no chão. A agonia e o abrasamento fora embora, mas, a jovem garota dormia com o desmaio. Estava tudo bem agora... O moço de pouco mais de vinte anos a carregou nos braços. Levou-a até a casa de número sete na rua dos cogumelos, e tocou a campainha da residência. Um senhor de meia idade espiou pela janela. E ainda com roupas de dormir, abriu a porta dizendo:

- Nicolas! O que aconteceu com minha filha?

Os olhares cúmplices se cruzaram, já diziam tudo. Nicolas se manteve calado e o dono da casa, observante.

- Vamos, entre, entre! – Mandou o homem de cabelos grisalhos. Olhou para um lado e para o outro a rua em frente, e fechou a porta, preocupado se alguém poderia ter visto. Não. Ninguém viu nada...

Amário Cosme (Ludovicense)

Continua...

Ludovicense
Enviado por Ludovicense em 25/09/2013
Reeditado em 19/11/2013
Código do texto: T4497454
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