A moça da rua Dom Aquino.

Tobias era aposentado da marinha da cidade de Corumbá, e ainda aos sessenta anos exercia diariamente o ofício de sapateiro, pois assim o seu falecido pai o ensinou. A sapataria ficava entre as lojas de roupas, barbearias e botecos na Rua Dom Aquino. E justamente nessa rua, umas das poucas ruas comerciais de Corumbá ficava o Cemitério da cidade.

A rotina de Tobias começava cedo, por volta das sete horas e trinta minutos já estava aberta a sapataria. Seus companheiros militares sempre o visitavam para conversar sobre o placar do Corumbaense, falácias políticas e previsões econômicas do País. Dia desses em uma quarta-feira um senhor apareceu por lá, com a expressão muito entristecida e assim falou:

- Bom dia seu Tobias! Vim deixar esse par de sapatilhas da minha neta.

- Bom dia, pode deixar ai no cantinho, atrás da sandália vermelha. Qual é o problema da sapatilha?

- O solado tá escapando, a minha neta usava muito, ela tem outras, mas só usa essa, praticamente todos os dias para ir à escola.

- Meninas e suas vaidades, eu só vou consertar essa botina do véio Afonso e já conserto a sapatilha da menina.

- O senhor pode consertar o mais rápido possível?!

- Com certeza, até a sexta-feira já estará pronta para usar novamente.

- Combinado então, na sexta eu venho buscar.

Na quinta-feira, Tobias como de costume pegou a bicicleta para ir trabalhar, pedalando pela Avenida General Rondon, sentiu fortes dores no joelho, eram dores intensas, o que levou a perdeu o controle da bicicleta e caiu na esquina da Rua Marechal Deodoro. Queda feia, a corrente enroscou na pedivela e travou o pedal. Comerciantes da rua socorreram Tobias que teve de ir para o atendimento emergencial. No hospital, ficou em observação, por conta da pressão que subiu. Não houve fraturas, somente escoriações. Voltou para casa bem de noitinha, jantou, viu jornal e dormiu.

No dia seguinte, Dona Antonia, sua esposa, não permitiu que saísse tão cedo, por precauções imediatas, ligou para o filho Miguel, para que levasse o pai até a loja. - Mãe, eu levo o pai, pede pra ele repousar enquanto levo as meninas na escola. Já passo ai! Tobias aguardava o filho, reclamando da bicicleta, do médico que o atendeu...

Miguel buzinou no portão por volta das 8 horas, desceu do carro, e foi buscar o pai.

- Como o senhor está se sentindo? Deveria repousar hoje! Não está em condições de trabalhar.

- Estou muitíssimo bem! Tenho alguns reparos para fazer. Vamos então?!

- Pai, primeiro a sua saúde, certo? Deixe de ser teimoso. Aproveite o dia para descansar, na hora do meu almoço eu venho e pego o senhor, pode ser?

- Pai, primeiro a sua saúde, certo? Deixe de ser teimoso. Aproveite o dia para descansar, na hora do meu almoço eu venho e pego o senhor, pode ser?

- Então, vou andando mesmo!

Miguel levou Tobias, o deixou na sapataria e avisou que iria buscá-lo por volta das 18:30, horário que voltava do serviço.

Tobias mal tinha sentado na mesa de reparos e o velhinho das sapatilhas havia chegado.

- Dia! Vim pegar o sapato da minha menina!

- Bom dia, peço mil desculpas, mas não finalizei o conserto das sapatilhas, passei muito mal ontem, e hoje vou precisar fechar a loja mais cedo, o senhor me perdoe.

- Eu espero o senhor colar, não vai demorar muito tempo, vai?

- Preciso preparar a sola para receber a colagem, feito isso temos de aguardar a secagem, após 24 horas fica pronta para usar.

- 24 horas é tarde demais. Eu volto amanhã.

- Desculpe senhor...

O velhinho saiu sem se despedir.

Naquele dia Tobias fechou a sapataria por volta das seis da noite, trancou as portas, passou o cadeado e saiu. Miguel não tinha aparecido. Tobias parou no bar do Juca para esperar o filho e nada, também deixou o celular em casa, dificultando a comunicação. Ficou lá até tarde. Saiu do bar do Juca, atentou para atravessar a rua e viu uma jovem descalça no ponto de ônibus, chorando e enxugando suas lágrimas com a barra de seu casaquinho. Tobias aproximou-se dela e questionou o motivo de sua angústia, ela soluçando respondeu que estava muito triste porque sua família estava sofrendo e que ela gostaria muito de estar com eles naquele momento mas não era possível.

Ele pensou "Essa menina tá fugida de casa, só pode!"

- Por que está descalça? Onde você mora, eu te levo!

- Deixei meus sapatos em casa. Mas não posso voltar para buscar.

- Por que não pode buscar? O que você fez?

- Eu deixei minha família muito triste...

- Menina, não pode ficar sozinha uma hora dessas na rua, é muito perigoso. Vou te acompanhar até sua casa, onde mora?

- Moro na rua Marechal Deodoro, número 741.

- Sei onde é, é caminho pra minha casa. Vamos juntos então, que não tem perigo. Mas primeiro, precisa calçar algo. Venha, minha sapataria é logo ali.

- Não se preocupe senhor, estou bem descalça, mal sinto a rigidez do chão. Vamos seguir com a caminhada.

- Menina, vai machucar seus pés!

- Não vai, fique sossegado! Agradeço a preocupação.

E seguiram caminhando. Ao deixar a menina no portão de sua casa, ela o abraçou agradecida. Tobias notou que a moça estava fria e sua pele era frágil como um cristal. Ela agradeceu a companhia e se despediu.

- Muito obrigada, o senhor foi muito gentil! Não me esquecerei da sua gentileza.

- Não precisa agradecer não, moça. Fiz com muito gosto, você se parece com minha neta que completará quinze anos em junho.

- Mande meus parabéns a aniversariante, sei que ainda tem alguns meses pela frente, mas retribua as minhas felicitações.

A moça proferiu as sinceras palavras e caminhou até a entrada de sua casa. Tobias continuou com a sua caminhada, olhou para trás e não viu mais a menina. "Que bom que ela já entrou, agora está segura com sua família."

No dia seguinte, ele passou em frente a casa da menina, e viu o velhinho das sapatilhas saindo, e foi cumprimentá-lo.

- Bom dia! E a moça dormiu bem?

- Moça? O senhor deve estar enganado! Não tem mais nenhuma moça aqui nessa casa! A única menina que morava aqui era Camila que faleceu na quinta-feira.

Tobias ficou pálido. "Mas eu a acompanhei ontem" pensou.

- Aquela sapatilha que eu deixei na sua loja era para que usasse em seu caixão, foi presente meu quando ela entrou para adolescência.

- Eu sinto muito! Vou rezar pela sua alma.

- Agradecido, agora tenho preciso ir. Mais tarde eu passo na loja do senhor para buscar as sapatilhas.

- Eu as deixo aqui para o senhor, não se incomode, é por minha conta.

- Meu Deus, não é possível, eu falei com a menina ontem! Ela estava descalça e com frio. Descanse em paz menina!

Claíse Albuquerque
Enviado por Claíse Albuquerque em 11/01/2014
Reeditado em 05/04/2018
Código do texto: T4645639
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