O boneco de ventríloquo

‘ George Luiz - O boneco de ventriloquo

A oficina de Lauro ficava numa rua de pouco movimento. As pessoas não se detinham ao passar por sua porta. Em geral eram operários, gente de escritórios, empregadas domésticas. Apenas um pequeno cartaz de papel branco envolto em plástico transparente a indicava aos passantes. As vezes, contudo, um carrão importado ,uma limusine luxuosa, até algumas Mercedes, estacionavam em frente à porta. Os vizinhos raramente viam Lauro. Ele saia pela manhã bem cedo para comprar leite,pão e alguns ou-tros víveres num supermercado próximo. Vivia sozinho. Raras vezes algu-mas mulheres, bem jovens e todas bonitas, entravam na oficina a noite. Os moradores da rua comentavam que só podiam ser garotas de programa, bem remuneradas, Lauro era feio e de aparencia desleixada, usava uma venda negra sobre o olho direito, cego. Ninguém sabia como tinha perdido a visão daquele olho. Nem por que não colocava um olho artificial na órbi-ta inútil. Mas a verdade é que Lauro devia ser um excepcional artesão. No bar do Alcides, freqüentado pelos moradores da área, sabia-se, através do Bolonha, cuja mulher era funcionária de uma agencia bancária importante ,que ele era um cliente considerado ótimo, pelo gerente.

Embora Lauro tivesse poucos amigos, tinha, entre eles alguns atores. Ti-nha feito teatro amador num curso profissionalizante. Guardava segredo sobre isso, mas freqüentava teatro e concertos. Sua predileção especial em música era por Schumann. Era eclético, porém e sua bela coleção de dvds era um refúgio sonoro e visual com que ele se deleitava tarde da noite e em volume baixo, bebendo litros de suco de laranja em que flutua-vam grandes pedras de gelo.

Em seu confortável apartamento de cobertura, Renato Veiga olhava com curiosidade crescente o pacote que acabara de receber pelo correio. Não queria abri-lo na frente de Vanja, a doméstica fiel mas curiosa e faladeira, que fingia se esmerar na limpeza da sala de estar. Essa tática de Vanja era bem conhecida por Renato e ele esperou pacientemente que a mulher ter-minasse. Por fim, ela deu seu trabalho como findo, despediu-se e foi para a sua casa. O pacote tinha sido enviado de Nova Iorque. O remetente era um certo W.J. Simmons e indicava tratar-se de uma empresa de acessórios para cinema, teatro e televisão. Renato era um ator bem sucedido. Abriu cuidadosamente o pacote. Nele havia uma caixa de isopor e, dentro dela um boneco. Era,com certeza um boneco para ventríloquos, media alguma coisa em torno de oitenta centímetros quando posto de pé. Mas estava do-brado. Vestia um terno preto, camisa de peitilho branco,gravata borboleta, e tinha um cravo vermelho, artificial, na lapela esquerda. Não era um boneco novo. Apresentava mesmo algumas lascas no rosto de louça descorada. Tinha a expressão ambígua desse tipo de bonecos. Renato experimentou, colocando a mão na cavidade que havia em suas costas, fazer com que o boneco move-se a boca e os olhos, mas era óbvio que o mecanismo não estava funcionando. Que curioso, pensou o ator, me man- darem esse boneco usado e aparentemente imprestável . Foi então que lembrou-se da oficina de seu amigo Lauro.

- Muito interessante, Renato. Fascinante mesmo. Acho que foi fabricado na década de 1920. Mas posso pesquisar se você quiser.

- Não precisa, Lauro. Mas, acha que pode faze-lo funcionar ?

- Claro que posso. É trabalho relativamente fácil. Nem vou te cobrar por isso.

- Não, isso não ! Cobre o normal. É seu trabalho. Só quero que fique perfeito.

- Isso eu garanto, amigo. Vai ficar como novo, mantendo as caracteris-ticas da época de sua manufatura. Porque ele é um obra artesanal, sem dúvida.

- Maravilha ! Quando pode me entregar ele pronto ?

- Me dê duas semanas. Vou caprichar. Ele vai ficar novo em folha.

- Tudo bem, amigo. Me telefona quando estiver pronto ?

- Pode deixar.

Nas duas semanas que se seguiram, Renato chegou a esquecer do bo- neco. Lauro telefonou-lhe numa sexta feira pela manhã, seu trabalho estava concluído. Renato passou pela oficina aquela mesma tarde.

- Então, Lauro ? Ficou satisfeito com o resultado ?

- Olhe, meu amigo, você não faz idéia do valor desse boneco. Encon-trei as iniciais do autor quando tirei uma das luvas brancas. Ele é a-penas o maior artista que já trabalhou na América com esse gênero de objetos. Um craque.

- É mesmo ? Então meu boneco é uma peça rara...´

- Muito rara, Renato. Talvez existam hoje, fiz uma pesquisa na net e um ou dois livros especializados, quatro ou no máximo cinco bonecos como esse. Vou pegá-lo para você. Mas deixe-me dizer-lhe que, caso você queira vende-lo, num leilão de bom nível ele lhe renderá uns seis mil dólares, no mínimo.

Lauro trouxe o boneco. Renato constatou logo que artesão extraordi-nário era seu amigo. O boneco parecia novo, recém saído de uma loja. Contudo, havia alguma coisa de sutilmente antigo nele. E a expressão do rosto, aumentava essa impressão. Lauro fez o boneco abrir os olhos, movimentar a cabeça e mover a boca como se estivesse articulando palavras. Mesmo sem o som da voz, o efeito era notável.

- Essa louça com que foi moldado o rosto é alemã, meu amigo. Foi trabalhada num amálgama composto com a resina da época.Tem uma delicadeza e uma resistência impressionantes. Claro que tive que refazer as parte desgastadas com uma mistura de poliuretano e cera. Mas acho que o resultado ficou bem satisfatório

- Satisfatório ? Você é um craque, meu amigo. O boneco está perfeito. Aqui está seu cheque.Você merecia receber muito mais do que me cobrou.

- Nem uma palavra, Renato. Por mim eu não teria lhe cobrado nada. Você não imagina com que prazer eu fiz essa restauração. Tome, leve-o e cuide muito bem dele. Quem sabe você não o usa num filme ou numa peça teatral ?

- Olhe, a idéia é tentadora...

- Claro que é ! Pense nela, Renato.

Naquela noite, Renato tinha combinado com Ivete, sua namorada, irem jantar juntos. Eram ambos apreciadores da comida japonesa. Quando saíram do restaurante, ele propôs irem a um cinema.

- Hoje não, meu amor. Me leve para o seu apartamento. Estou louca para fazer um sexo bem gostoso com você. E não precisamos acordar cedo amanhã...

- Você é quem manda, minha gata linda !

A sala de estar do apartamento de Renato estava escura quando eles entraram. Como de hábito, Renato acendeu apenas um abajur suave ao lado do sofá. Os dois namorados se enlaçaram. Trocaram beijos e cari-cias num ritmo crescente, até que, não resistindo mais ao apelo carnal, ergueram-se e foram para o quarto. Tanto ele como ela, gostavam de se amar no claro, eram dois voyeurs natos. Sem deixarem de se beijar, tiraram suas roupas. Nus se tocavam e murmuravam palavras de tesão, algumas obscenas. Isso fazia parte de seu ritual de namorados. Jogaram-se na cama coberta por um edredom de seda negra. Ivete começou a lamber, a sugar seu namorado e logo encontrou com a boca seu pênis enrijecido. Renato segurava sua cabeça loura como se ela pudesse escapar de repente. Seus olhos vagaram pelo espaço do quarto e, de súbito ele deixou escapar um grito.

- O que foi, meu tesão ? Te mordi com muita força ?

- Não ! é que levei um susto.

- Um susto com que, meu lindo ?

Ele não respondeu. Apenas indicou com os olhos um canto do quarto. Ive te acompanhou seu olhar. Sentado numa poltrona estreita, o boneco de terno preto parecia olha-los com uma expressão de franco deboche no rosto pintado. Ivete começou a rir.

- Ora, meu amorzinho. É um boneco.

- Eu sei, mas tive a nítida impressão de que ele estava vivo e zomban-do de nós dois.

- Zombando ? Que idéia. Vem, deixa eu te fazer gozar muito.

- Espere, vou tirar esse boneco daqui.

- Está bem, amor, eu espero...

Na manhã seguinte, Renato saiu para a leitura de uma peça nova. Era um original inédito, um texto de Herman Gottlieb, jovem autor alemão ainda desconhecido no Brasil.A platéia do teatro estava vazia quando ele Che – gou. O diretor conversava em seu celular com o cenógrafo.

- Isso mesmo, Augusto.Acho uma ótima idéia.Vou conversar com o Renato. Acho que ele vai topar. Tudo bem, depois conversaremos melhor .

- Topar o que, Valentim ?

- Bem, o Augusto acha que o teu personagem deveria ter alguma coi – as, um símbolo, um objeto significativo que ele possa ter na mão no diálogo com Margarete, por exemplo.

- Isso é interessante. Mas, que objeto ?

- O Augusto pensou num boneco, talvez um mamulengo.

- É muito curioso isso...

- Por que ?

- Porque eu tenho um boneco, autêntico, americano, década de vinte. Usado por ventríloquo em teatro profissional.

- Fantástico ! Você o cederia para a peça ?

- Cedo, mas desde que a produção pague por um seguro. O boneco va-le, segundo a expertise feita por Lauro Guedes,no mínimo seis mil dó-lares. Não quero correr riscos.

- Nossa ! Está certo, faremos o seguro. Você o trará para nosso primei-ro ensaio a semana que vem ?

- Trarei, pode ficar tranqüilo.

Quando Renato voltou para casa, encontrou Vanja na sala de estar.

- Bom dia, Vanja, tudo bem ?

- Tudo, seu Renato. Que boneco é esse ? O senhor comprou ?

- Não. Ganhei de presente.

- Olha, patrão, esse boneco é meio safado...

- Como é, Vanja ?

- É sim, seu Renato. Ele estava meio empoeirado e fui passar o espa- nador nele. Segurei o boneco com uma das mãos e o espanador na oputra. Patrão, acredite em mim. O sacana apalpou meu traseiro !

- Ora, Vanja, francamente ! Você imaginar uma coisa dessas...

- Desculpe, patrão, mas esse boneco deve ter parte com algum Exú.

- Qual, Vanja. Só você para pensar nisso.

- Ta bom, seu Renato, não vou dizer mais nada. Mas se eu fosse o se-nhor, ficava de olho nele...Ele tem nome ?

- Tem sim, está escrito na sola de um dos seus pés. Chama-se Alvin.

- Hummm, deve ser um exu gringo, com um nome assim.

- Pode ficar tranqüila, Vanja. Vou vigiar o Alvin com cuidado.

- Vigie mesmo, seu Renato. Um safado desses é capaz de aprontar qualquer coisa, nunca se sabe !

- Está bem, Vanja, mas me diga só uma coisa.

- O que, patrão ?

- A apalpada que o Alvin deu em seu traseiro, você gostou ?

- Cruiz credo, seu Renato ! Te exconjuro !

Chegou a tarde do primeiro ensaio. A peça alemã era super moderna. Reunia cinco atores em cena, dois homens e três mulheres. O cenário de Augusto Borges era despojado. A cortina ampla, alta e ligeiramente pregueada, de tom cinza escuro, no fundo do palco, servia de suporte a três quadros grandes dispostos assimetricamente. Perto dela, um pouco a esquerda no palco, estava um piano de um quarto de cauda, disposto de tal forma, que quando alguém sentava-se em seu banco, suas mãos ficavam ocultas, o que permitia usar o som como se o ator estivesse realmente executando a música. A iluminação de Bob Quinderê valoriza-va bem o espaço cênico. O diretor já estabelecera algumas marcações para os dois atos. Em termos cênicos, tudo estava praticamente pronto para a estréia. Restava ensaiar com apuro a peça.

Renato beijava com prazer as partes mais íntimas do corpo de Ivete. Es-tavam a dois dias da estréia da peça.Na claridade do quarto,o calor de – senhava com gotas de transpiração composições abstratas no ventre liso e côncavo de sua namorada. Ele a beijou ainda mais, até que ela gemeu intensamente, se contorceu num orgasmo enlouquecedor. O re-logio da cabeceira soou num despertar tardio. Enlaçados, eles se dirigi-ram preguiçosamente para o chuveiro.

- Você está preocupado com a estréia, meu amor ?

- È engraçado. Há quinze anos atrás eu responderia que sim. Mas hoje, após meia dúzia de estréias teatrais isso já não me afeta tanto.

- Você atuou pela primeira vez com dezessete anos, não foi ?

- Foi. Me lembro de estar parado nos bastidores, esperando trêmulo, o momento de entrar no palco. Sentia a garganta seca a língua colada no céu da boca, minha respiração estava ofegante. Mas, no final, tu – do funcionou direitinho.

- E como, meu lindo, você se tornou um grande ator !

- Menos, menos...sou um ator competente, correto, digamos.

- Você é ótimo, Renato. Os críticos vivem dizendo isso.

- Bem, vamos comer alguma coisa ? Você acabou comigo.

- Meu gostoso ! Adoro fazer amor com você. Não sei mais viver sem isso.

Faltavam dois dias para a pré-estréia. João, o funcionário que pássava a noite no teatro falava com Ramiro, o gerente.

- Desculpe, seu Ramiro, sei que o senhor anda muito ocupado com es –sa estréia, mas tenho que lhe dizer uma coisa.

- Então diga, João.

- É o piano, chefe.

- Sei, o piano. O que há com ele, João ?

- É que eu passo a noite toda acordado aqui dentro.

- Sim, e daí ?

- Bom, chefe, esse piano toca sozinho, sem ninguém mexer nele...

- Você voltou a beber, João ?

- Pela felicidade de meus filhos, seu Ramiro, tem mais de dois anos que eu não toco numa gota de álcool.

- Está bem, eu acredito em você. Mas então, como você explica isso ?

- Ah, eu não sei, chefe. Mas já tem duas noites que o piano toca.É uma música dessas que os grã-finos gostam. Bonita, assim romântica, as-be como é ?

João tinha bom ouvido. Assoviou baixo uma melodia para o gerente.

- Mas isso é extraordinário, João !

- O que, chefe ?

- Essa música que você acabou de assoviar.

- O senhor conhece ela, seu Ramiro ?

- Claro que conheço. É o adágio da Rapsódia sobre um tema de Paga-nini. É um dos trechos que o personagem principal da peça finge que executa no primeiro ato.

- Ele finge ?

- Finge. Na verdade a música é tocada na mesa de som a fim de pare- cer que é o Renato, o ator, quem está dedilhando as teclas.

Ramiro contou a Valentim, o diretor da peça, o que o vigia tinha lhe rela-tado.

- O que você acha dessa estória, Valentim ?

- Eu ? Não acho nada. Já tenho muito com que me preocupar. A pré-estréia é amanhã. Só lhe peço uma coisa.

- O que é, me diga.

- Não comente com ninguém o que acabou de me dizer. Não quero meu elenco imaginando coisas. Quero todo mundo bem tranqüilo na noite de amanhã.

- Não se preocupe. Não vou comentar com ninguém.

A noite da pré- estréia finalmente chegara. Os convidados e a imprensa se misturavam na entrada do teatro.

Ivete e uma amiga chegaram juntas.Tinham lugares reservados na quin- ta fileira de poltronas, ao lado de Lauro Guedes, o restaurador do boné-co Alvin. As conversas eram intensas. Aguardava-se com grande expec-tativa o inicio do espetáculo.Por fim, as tradicionais pancadas de Moliè-re foram ouvidas e a cortina foi aberta.

O primeiro ato transcorreu normalmente e foi muito aplaudido ao seu final. A presença de Alvin em cena suscitou comentários diversos. Lau-ro, naturalmente, achou que o boneco trouxe um clima surreal à peça e elogiou a atuação de Renato com o boneco. Ivete estava eufórica.

Logo no inicio do segundo ato,percebeu-se que alguma coisa insólita es-tava acontecendo. Num dos diálogos entre os personagens Silvio e Mar-garete, vividos por Renato e Maria Rodrigues, a atriz principal, ouviu-se uma voz alta e estridente junto deles. Alvin, o boneco estava interferin-do na cena. Valentim, o diretor, ficou horrorizado, assim como todos os

Componentes do espetáculo, cenógrafo, contra-regra,maquinistas e auxiliares de cena. Mas os atores, estes não pareciam perceber o que acontecia. As falas do boneco eram coerentes. Ele estava dando um outro rumo à peça, levando-a a um tom mais dramático e imprevisível. A platéia captara instantaneamente a mudança e parecia hipnotizada. E então, no momento mais crucial do ato, o personagem de Renato, movido por uma fúria incontrolável, apunhalou a personagem Margarete. Era o final da peça e o público aplaudiu entusiasmado. As palmas e gritos ainda ecoavam mas o contra-regra percebeu que, do canto da boca da atriz, escorria um filete de sangue e gritou por socorro.

No tumulto que se seguiu, um medico, presente na platéia, constatou a morte da atriz, mas recomendou que não tocassem no corpo.A policia che-gou ao teatro em pouco mais de quinze minutos. Constatou-se que a arma preparada para ser usada em cena, totalmente inofensiva, tinha sido inex-plicavelmente trocada por um punhal de aço temperado. O exame prelimi-nar de um legista atribuiu a morte a uma hemorragia interna, produzida por ele. O teatro foi esvaziado. Restaram apenas os atores e atrizes, o diretor da peça, três ou quatro convidados e a perícia policial. Em meio à conster-nação geral, só Renato, consolado ansiosamente por Ivete, percebeu que, a um canto do palco, Alvin, o boneco de ventríloquo, parecia estremecer, tomado por um riso compulsivo e perverso.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 26/04/2007
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