025 - FOME

— Quero imediatamente uma equipe de repórteres e cinegrafistas no local! Aquela região vai estourar a qualquer momento! Vamos dar a máxima cobertura!

— Mas, chefe, a situação está sob controle.

— Aparentemente. Vamos pessoal, mexam-se !

Levantando-se abruptamente, Ricardo Silveira dá a reunião por encerrada e deixa a ordem para ser cumprida pelos seus ajudantes imediatos. Sua determinação é no sentido de deslocar uma equipe de jornalistas da poderosa Mundial TV Rede para a conturbada região do Nordeste da África, mais precisamente a área da fronteira entre Etiópia e Eritréia.

— Acho esta viagem completamente inútil, mas vamos lá. — agora era a vez de Souza Lima executar as ordens recebidas. — Quero Carolina e Luciano destacados para essa missão. Onde estão eles?

— Ela está no interior do estado e Luciano está aqui mesmo no Rio.

— Chamem os dois para partirem o mais urgente possível.

Assim começou o trabalho dos dois jornalistas. Carolina, conhecida mesmo nas chamadas de estúdio como Lina Santoro, era uma das mais competentes repórteres de campo da MTVR. Luciano Jadhi era o câmera, veloz, audaz, capaz de pôr em risco a própria vida (como já acontecera diversas vezes) para uma excelente tomada de cena.

O mundo das notícias é vertiginosamente ágil. Não se pode perder um minuto sequer ou a notícia em primeira mão é emitida por jornalistas concorrentes, o furo vira notícia requentada, sem o menor interesse de editoração. Assim, ao anoitecer daquele mesmo dia, a dupla voava em ultra-rápido jato executivo da poderosa empresa de TV, e, descontada a diferença de fuso horário, estavam sobrevoando a região do Chifre da África ao alvorecer do dia seguinte e aterrissando no aeroporto de Adis Abeba.

— Puxa, estou um trapo, um bagaço de tão cansado - reclama Luciano, ao entrarem no saguão do luxuoso Hotel African Hilton Palace — Não dormi quase nada.

— Fica tranqüilo, pode descansar no hotel, enquanto vou conseguir autorização das autoridades para nossa missão, e locar um helicóptero.

Lina é a decisão em pessoa, elétrica, não pára um instante, não se cansa nunca. E sempre com um sorriso simpático, seus alvos dentes destacando-se no rosto moreno. Sem dar tempo a si mesma, combinou a locação de um helicóptero antes mesmo de subir ao apartamento para um rápido banho.

— Vamos, Luciano, depressa ! Já nos esperam no topo do Edifício Morrison, a duas quadras daqui. — Agitada a repórter açoda o cameraman meia hora depois.

— Puxa, Lina, nem deu pra tirar um cochilo ! — Luciano a acompanha a reboque, está realmente cansado. Admira-se da vitalidade da colega.

O aparelho levantou-se alguns metros acima do topo do mais alto edifício da cidade e Lina teve a visão da região. A cidade constituía uma ilha de civilização assentada entre morros e vales, completamente áridos, os topos pelados e as encostas cobertas por triste vegetação rasteira, amarela, crestada pelo sol e pelos ventos.

Seguindo para o Norte, rumo à fronteira com a Eritréia, voou o aparelho, o chop-chop-chop-chop monótono das pás girando, induzindo a uma preguiça.

Lina passa e repassa tudo o que havia conseguido saber sobre a região , a situação atual e o que esperava ocorrer. A Etiópia padecendo miséria e fome com a seca prolongada de dois anos, plantações perdidas e o gado morrendo. Milhares de refugiados dos campos se dirigem para as cidades, para os vilarejos e para a capital do país, em busca de alimento, de sobrevivência. Apesar dessa situação de miséria, o governo desperdiça um milhão de dólares por dia na guerra com seu vizinho mais ao norte, a Eritréia.

Outros milhares de habitantes são vítimas dessa aventura militar, que abrange toda a fronteira , uma linha imaginária correndo por longo percurso quase paralelamente às costas da África, na parte mais ao sul do Mar Vermelho.

A ONU tentou ajudar com o envio de alimentos despejados de aviões cargueiros sobrevoando a região dos desesperados migrantes. Até que dois Hércules foram abatidos por artilharia (não se sabe se da Etiópia ou da Eritréia) e esse tipo de ajuda cessou.

Os combates fronteiriços amainaram. Faz já uns 6 meses que só são registradas pequenas escaramuças entre patrulhas inimigas. Mas há indícios de que o tempo vai esquentar na fronteira. Trouxeram os repórteres para aquela missão, que no entender da dupla Lina e Luciano, seria um passeio pelo deserto.

O helicóptero segue em direção do Norte. A região montanhosa cede lugar à planície, igualmente desértica, com alguns pequenos vales onde um verde amarelecido mostra os últimos vestígios de umidade.

A planície estende-se infinita. O sol do meio-dia reverbera nas areias. Aqui e ali, ao longo de uma rodovia semi-destruída, veículos arrebentados, árvores secas, negras, queimadas dão testemunha da selvageria dos combates. Ao longo da rodovia, por vezes, grupos de etíopes caminham a esmo, arrastando-se como centopéias feridas de morte.

Lina tenta uma comunicação com o piloto, enorme negro de olhos sempre arregalados. Inutilmente: além do chop-chop-chop- ensurdecedor, o homem não entende o inglês de Lina. Ela quer descer ali, na rodovia, saber daquelas pessoas o que está acontecendo. Luciano, câmera na mão, faz as primeiras tomadas. O intérprete contratado por Lina não tira os olhos da janela, observando atentamente o cenário abaixo e não se dá conta da dificuldade da repórter em se comunicar com o piloto. O helicóptero segue em frente.

Aproximam-se rapidamente da fronteira. Ao longe, podem observar o movimento militar: carros blindados, disparos de foguetes que deixam rastros de fumaça prateada no céu de azul sem manchas.

O piloto fala com o intérprete, que fala com Lina:

— Daqui ele não passa. Lá na frente já é zona de combate. Vai descer aqui mesmo.

Lina concorda silenciosamente, com um aceno de cabeça. O aparelho desce. Luciano parece adquirir vida. Pula lépido para fora, câmera na mão, filmando as cenas que se desenrolam lá longe ou nas proximidades.

— Fala com o piloto pra esperar aqui — Lina grita para o intérprete.

O recado é dado, e os três passageiros saem correndo, cabeças abaixadas, olhos semicerrados evitando a poeira levantada pelas pás.

Correm na direção de um aglomerado de pessoas e animais. Gente miserável, sentada no chão, descansando, perto de uma macega alta, capim amarelo e de uma árvore com escassa folhagem. Os etíopes formam um grupo de oito pessoas. São cinco homens e três mulheres, uma delas com um bebê ao colo. Quatro reses e uma meia dúzia de cabras estão ao lado, presas por embiras aos seus donos.

Estão aparentemente imóveis debaixo do sol escaldante. A árvore , imenso baobá desfolhado, não proporciona abrigo algum contra a inclemência do fulgurante astro. Ao se aproximar, Lina observa que estão mastigando algo. Parece um pedaço de fumo, que passa de mão em mão.

— Pararam pra comer. — Fala o intérprete. — Isto que eles estão mascando é imbogu, uma espécie de raiz que se conserva macia por muito tempo.

— Adianta alguma coisa? — pergunta Luciano.

— Não, só engana o estômago.

O trio aproxima-se dos retirantes. O chop-chop-chop do helicóptero diminui . Incomoda menos e Lina tenta conversar com um dos homens, cuja estatura, mesmo sentado, se destaca dentre os demais. Luciano aproxima-se, filmando.

— De onde vocês vêm? — pergunta Lina.

O intérprete faz a pergunta no dialeto do nativo, cuja resposta é imediata, os enormes olhos assustados, cuspindo as palavras como se fossem balas de uma metralhadora. Gesticula adoidado, em todas as direções.

— Diz que são fazendeiros da região, mas que os ataques os expulsaram de suas terras.

— E para onde vão ?

Feita a tradução da pergunta, vem a resposta:

— Dirigem-se para o sul. Pensam que vão ter pelo menos comida. Diz que sete companheiros já morreram de fome.

A custo e superada a desconfiança, conseguem uma comunicação razoável. São membros de uma tribo que passa parte do ano vagando pelas planícies em busca de pastos e durante alguns meses(quando o verão chega ao auge) acampam nos vales onde ficam aguardando as chuvas. Seu acampamento foi destruído, perderam muitas reses , muita gente morreu vítima dos confrontos entre soldados dos dois lados. Agora fogem, pois sabem que a luta está recomeçando.

Enquanto conversam, podem ouvir à distancia o barulho da artilharia. De repente um avião em vôo rasante passa metralhando o grupo e o helicóptero. Ninguém é atingido, mas duas cabras são mortas , atiradas ao longe pelo impacto dos projéteis.

Há uma desabalada carreira dos refugiados na direção do helicóptero, abandonando seu gado e deixando Lina e Luciano, que continua filmando tudo, sem se incomodar com o risco de ser atingido também.

Uma mulher de feições esquálidas, com uma criança no colo não consegue levantar-se para acompanhar seus companheiros. Permanece sentada no chão. A poeira é tanta que ela se confunde com a cortina vermelha que se ergue para o céu. Mas Lina vê a mulher e a criança, correndo para ajudá-las.

O intérprete deixa os dois repórteres e também corre na direção do aparelho. Luciano se afasta, sempre filmando, para obter melhores cenas de Lina, da mulher com a criança e da pequena turba acercando-se do helicóptero, amontoando-se, na tentativa de quê? Será que eles pensam em embarcar todos no aparelho? pergunta-se Luciano enquanto filma.

O caça volta em novo vôo rente à planície. Desta vez tem tempo para acertar a mira e disparar com precisão suas metralhadoras e morteiros.

Um projétil atinge em cheio o helicóptero. Luciano, numa fração de segundo, consegue filmar o choque espetacular do projétil contra o aparelho, mas a câmara lhe escapa da mão, atingida de raspão por uma bala que lhe entra direto no peito.

Lina, abaixada a uns trinta metros de distância de Luciano e longe do helicóptero, vê tudo de uma só vez: Luciano é atirado para trás, a câmara salta de suas mão como se tivesse adquirido vida, ao mesmo tempo que uma imensa bola de fogo desprende-se do helicóptero, que explode espetacularmente. Sente até mesmo o calor desprendido pela explosão.

O avião passa rápido e desaparece num vôo direto, fugindo de possível represália.

Passado o primeiro momento de estupor, Lina se dá conta de que está debruçada sobre a velha e a criança, constituindo um verdadeiro( e inútil) escudo contra o ataque assassino do avião-caça. Ao levantar-se devagar, ainda temerosa da volta do inimigo alado, vê que tanto a velha quanto a criança estão quietinhos, ambas de olhos fechados, absolutamente imóveis.

— Meu Deus, que desgraceira ! exclama. Instintivamente, faz o sinal da cruz tocando a própria testa, o peito e os ombros, numa tentativa de exorcizar de seus olhos, coração e mente, a tragédia que está presenciando.

Corre os olhos por todo o cenário trágico: os animais, espantados com os estrondos, fugiram para todas as bandas. A carcaça fumegante do helicóptero cercada por corpos carbonizados, é um monte de negrume terrível. O corpo de Luciano estendido no solo, seu sangue encharcando o árido deserto. Destroços por toda a parte: galhos de árvores estilhaçadas, alguns cabritos mortos. Ao longe, as árvores desfolhadas ainda teimam em ficar de pé. Nenhuma sombra, nenhum refúgio.

Um cheiro horrível de combustão de gasolina e de corpos carbonizados dá-lhe enjôo e ânsias de vômito.

Já é de tarde. Consulta o relógio, são quatro horas, mas o calor continua inclemente. Apenas a coloração do sol, mergulhado numa atmosfera de poeira e fumaça, dá sinais de que o dia prossegue. Uma bola de fogo, agora alaranjada, ilumina o cenário.

Lina levanta-se, meio zonza. Mas agacha-se de novo, a saber das condições da velha e sua criança. A velha está desfalecida, a cabeça sobre o peito. A um toque de Lina, cai de costas. Assusta-se. A criança solta um vagido, sinal fraco de que ainda resta um pouco de vida no corpinho esquelético.

A velha está morta, isso Lina constata de imediato. Pega a criança, que estremece ao seu toque. Está nu o menininho, a pele diretamente sobre os ossos. Aconchega-a no seu colo. Que fazer? Ah, sim, um pouco d'água de sua garrafa blindada. Graças a Deus, a garrafa está intata, e ainda tem um meio litro de água. Não tem lenço, mas rasga um pedaço da barra de sua própria blusa, molha com a água e passa pela boquinha ressequida do garotinho que, ávido, tem forças para chupar e mascar o pano úmido.

Não lhe ocorre nenhuma idéia do que fazer. Cada instante, cada minuto debaixo daquele sol inclemente é um minuto a menos de vida, e um minuto mais próximo da morte. Além uns cento e cincoenta, talvez duzentos metros, uma touceira alta de capim seco é o único refúgio. Pelo menos dá para ficar entre o capim e o sol. Deve haver uma sombra que seja.

Dirige-se para o capim. Oh, Meu Deus, me dá forças pra sair dessa. Me dá uma idéia, uma dica! Que vou fazer ?

A grande moita revela-se maior do que ela podia ver ao longe. Trata-se de um bom pedaço do deserto, coberto por capim-elefante, cujas varas atingem 3 a 4 metros de altura. Compacta moita, que realmente proporciona uma rala sombra, mas que quebra o fulgor e o calor do sol, descambando para o horizonte poente.

A criança começa um chorinho triste, fraco, enquanto Lina encontra um local para sentar-se no centro da touceira. Novamente o paninho molhado é levado aos lábios do garoto.

Observa-o com carinho e dó: a cabeça desmesuradamente grande, o corpo raquítico. É só pele e osso. A completa ausência de cabelos, tudo muito desconforme, esconde a idade presumível do pequeno ser.

Nada a fazer, pensa Lina, senão aguardar. Se me ponho a andar neste deserto, nem sei que direção tomar. E por certo serei alvo de patrulhas sedentas de sangue. Que situação !

Cansada pelas emoções do dia, pelo esforço despendido, sentada no meio do capinzal, espera... esperar o quê meu Deus? Estou mesmo perdida...

Parece que cochilei, o sol já está se pondo. Ah, você quer mais água? Sua boca também está seca e sente fome. Toma um pouquinho de água, um pouquinho só. Pode fazer falta pro garotinho. Não quero vê-lo morrer de sede.

Molha novamente o paninho. Já está anoitecendo, começa a esfriar. Com fome, cansada, deixa-se vencer pelo desânimo e acomoda-se, bem como a criança, na palha do capim ressequido, para um repouso, um cochilo, dormir algumas horas, quem sabe?

Acorda. Já é noite fechada. Brilham as estrelas num céu limpíssimo, mas a noite não é totalmente escura. Ouve rosnados. São feras banqueteando-se nas carcaças dos animais abatidos. Pode distinguir as silhuetas dos bichos rondando os corpos. Que horror, eles estão comendo até os corpos carbonizados !

Apavorada, procura distinguir os animais. Meu Deus, são leões! E quantos! Pelo menos, enquanto tiverem comida por lá, não chegam até onde estou. E devem se fartar com tanta carne...

Está faminta. Toma mais um pouco d'água. O suprimento está no final. A criança está no seu colo e dorme um sono de agonia.

O terror noturno continua. Os grandes felinos se afastam, agora chegam outros animais, devem ser as hienas. Sim, pelos gritos são hienas, mais parecem gargalhadas...

A criança acorda. começa a chorar. Lina se assusta, está com os nervos à flor da pele. Molha o paninho com as últimas gotas de sua garrafa blindada e coloca com carinho na boca do garoto. Ele aceita, chupa, masca o pano com sofreguidão. Logo está pedindo mais, chorando. Lina se desespera, não pode deixá-lo chorar. O vagido pode chamar a atenção das feras. O choro torna-se mais forte. Meu Deus, que devo fazer?

Aconchega-o ao seu peito. Sente o calor do pequeno corpo, e instintivamente desabotoa a blusa e coloca a boca do garotinho no bico do seio esquerdo. O garoto aceita e suga o peito oferecido. Ah, meu Deus, me dá forças pra sair desta !

Durante algum tempo, o ele se aquieta, deixa-se ficar agarrado ao seio. Lina se emociona, começa a chorar baixinho. Ela, que sempre desejara um filho, agora se encontra ali, naquele sertão brabo, com uma criança à beira da morte, tentando inutilmente dar um pouco de vida àquele corpinho tão frágil e carente.

Mas a natureza é forte e não se deixa enganar. Lina nada tem em seu seio que possa nutrir o garoto. Ele abandona o bico do seio, abandona o calor oferecido e volta a chorar, agora com furor. Não há como evitar que o garoto manifeste a sua fome. A carência de seu organismo grita alto.

— E agora? Se os bichos escutam, estou perdida!

Aterrorizada, olha de um lado para o outro: o bando de hienas continua o banquete. Felizmente os leões já se fartaram e foram embora.

Olha e olha, através dos ramos do capim alto. O garotinho chora, chora. Na ânsia de ver os bichos, não escuta um leve farfalhar nas proximidades da moita. Um cheiro forte, um odor penetrante de carne podre chega às suas narinas. Assustada, vira-se para o outro lado . E vê. Horrorizada, percebe através das folhas ralas da touceira, um par de olhos como duas brasas amarelas, fixas, muito fixas...Um urro, um bote, e a criança é arrancada de seus braços.

Argos = ANTONIO ROQUE GOBBO -Belo Horizonte - 22.5.2000

Conto # 25 da Série Milistórias

Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/03/2014
Reeditado em 08/09/2014
Código do texto: T4713642
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