Uma história urbana

As coisas andavam bem, finalmente entrando nos eixos, pai e mãe empregados, não precisariam roubar nem depender dos outros. Os 4 filhos com a comida garantida, cresceriam fortes. Pegou o dinheiro, compraria pão e mortadela, seus filhos seriam criados no luxo.

Estava no meio do caminho quando ouviu o primeiro tiro; as rajadas vieram logo, em resposta. Também estava no meio do caminho dos tiros, bem no meio. Tinha corrido para um lado, melhor ir para o outro. Para onde? Onde se esconder? Para onde ir, ela bem no meio dos tiros. Tentou uma fresta, uma brecha, não dava para se esconder, mas se protegeria um pouco.

Ai, o que é isso? [dor] Foi ao chão em meio à confusão, por que não conseguia ficar de pé? Devo ter levado um tiro, pensou. Mais um tiro, pensou, desesperada, ao sentir outra dor aguda. A incapacidade de se levantar, de sair do meio do tiroteio a desesperava. O barulho ensurdecedor dos tiros, mais que a dor, impossibilitava qualquer clareza; a imobilidade despropositada aumentava o desespero, por que suas pernas não obedeciam, logo naquele momento? O tiroteio se estendia mais e mais, não terminava. Mas cessou.

Finda a batalha, pode tentar avaliar a situação; estava no chão, tinha ido comprar mortadela. Devia ter levado um tiro. Dois. Melhor pedir ajuda para alguém, mais ainda devia ter polícia ali, melhor se calar, tentar fingir de morta; mas as coisas começavam a ficar nubladas, distantes, e havia a dor.

Um policial imenso a revirou:

— E essa porra aqui?, e deu-lhe um bico. Que droga era aquela, estava no meio dos traficantes, era um deles. Que porra, ia ter que levar aquele lixo imundo, ensanguentado. Era bom ter sangue novo no assoalho do camburão, reavivava a aparência, o fedor, agigantava o medo. Tinham que saber quem mandava, não podiam esquecer, o sangue era bom para isso.

Pegou a porra do saco de lixo ensanguentado e o jogou dentro do camburão, sentia raiva, sentia ódio. A mulher gemia, rezava e implorava desesperada enquanto era jogada no interior do carro escuro. Tabefe! Bolacha na cara para acabar com aquela gemeção.

O trem fantasma partiu em meio à escuridão, aos solavancos. Nada para se agarrar no interior do cubículo metálico, restava tentar proteger a cabeça e principalmente as partes feridas, acicatadas pelas dores decorrentes dos sucessivos trancos. O desespero desaparecia momentaneamente, superado por dor mais intensa, para ressurgir em seguida, atordoante. Dor e desespero lutavam pela atenção, pelo controle da mente da mulher. Uma sensação de distanciamento, de moleza, também se insinuava nela; talvez essa fosse melhor, mas deveria ser evitada, tinha 4 filhos.

Curvas e saltos se impunham subitamente, sem aviso, em meio à confusão, às trevas, e às batidas dolorosas contra metal.

De repente, a luz. A luz cruel, ofuscante e apavorante. A tampa do camburão se abriu repentinamente, em meio ao trânsito veloz, depois de uma curva acentuada. O policial acompanhava pelo retrovisor, divertido. Tinha que manter os olhos naquela porra, impedir que escapasse; e se divertia com o pânico causado, com os gritos agudos. Acelerou, guinou o veículo rispidamente, para um e outro lado, forçando passagem entre os carros.

Apavorada pela velocidade, pelos carros ameaçadores seguindo-a logo atrás, tentou se segurar no metal desnudo, mas um solavanco maior, mais doloroso, uma arrancada forte a jogou para a beira, para a tampa aberta. Desesperada, tentou grudar no metal, se manter presa a ele de algum modo, mas um solavanco maior a impeliu para fora. A tentativa de se manter no veículo teria sido vã, mas foi cruel, crudelíssima. Engastada em uma parte sobressalente do veículo a mulher ficou presa ali, do lado de fora do carro, arrastada violentamente pelo asfalto.

O policial exultava com os gritos agudos da mulher pendurada no carro, apavorada; exibia seu troféu, a favelada molambenta, sendo arregaçada pelas ruas da cidade, enquanto percebia a admiração nos olhares dos outros motoristas. Era ele o protagonista do maravilhoso espetáculo. Acelerou, inventou curvas inexistentes entre os espaços abertos pelos outros veículos. Forçado a parar atrás dos outros carros em um sinal percebeu, no entanto, que os olhares perplexos dos motoristas não eram de admiração, mas de perplexidade, de horror. Surpreso com a recepção de sua ação, envergonhado e confuso, viu-se compelido a descer do carro para recolher de volta aquele lixo e jogar a porra novamente dentro do camburão. Ao descerem do carro, ele e o colega, os olhares atônitos dos motoristas abismados lhe impuseram vergonha imensa.

Tinham perpetrado uma ação heroica: tiroteio com traficantes, aquilo os engrandecia, estimulava. Algo no entanto aturdira os policiais, não conseguiam compreender o que. Deveriam estar comemorando a vitória, entusiasmados, e tinham estado, até perceberem aqueles estranhos olhares, quando a vergonha superou o júbilo, e uma confusão cruel se instalou em suas mentes. Algo parecia estar errado, mas uma coisa confusa incompreensível. Imersos em dúvidas, embaraço e vergonha, dirigiram-se ao hospital. Chamaram o médico conhecido, o que se encarregava desses casos. Ele mandou esperar, naturalmente.

Entregaram a encomenda com rispidez, ordenaram que retirassem logo aquela porra do carro.

Tiveram que cobrir a mulher antes de entrar no hospital, seu estado era lastimável, chamaria muita atenção. Profundamente escalavrada, completamente ensanguentada, parecia um monte de carne de açougue recoberta por uns trapos, mas com cabelos. O médico foi avisado do estado lastimável, senha para que deixasse esperando sangrar. Deixou.

Um filho da puta, no entanto, tinha filmado tudo. Imagens avassaladoras, repercutiriam no mundo inteiro como cenas brutais de terror. Filmagens sempre causavam problemas, tinham que proibir aquilo, botar em cana, dar uns corretivos em todos os que fizessem aquilo. Certeza era ter que mostrar quem é que mandava.