O DEFUNTO EMBIRADO

— O Professor Candinho morreu! — Claudionor foi dizendo, de supetão, assim que chegou ao salão de sinuca.

— É mesmo? Coitado, descansou. Quando foi? — Indaga Waldemar, sem largar do taco nem desviar a mira da bola da vez, firmando o pulso para encaçapar a última, liquidando com o adversário.

— Há pouco mais de meia hora.

— A gente tem que ir ao velório. — Recolocando o taco no quadro da parece, Lauro se dispõe a sair do salão de jogos.

— Deixa pra mais tarde, pra depois do cinema.

Candinho, o professor de muitas gerações da cidade serrana, batera as botas. Ficou mais de dez anos na cadeira de rodas, paralítico: uma meningite tardiamente diagnosticada resultou na sua invalidez permanente. Era professor no Ginásio Municipal e em função da sua doença foi afastado da classe de aula e de seus alunos. Quando sadio, vivia de lecionar. Ao ficar sem o ganha-pão, teria morrido de fome se não contasse com a ajuda de seus colegas, e, principalmente, dos jovens que tinham sido seus alunos.Tempos difíceis, aqueles. Preconceitos e dificuldades de todos os tipos. Sem recursos, não teve como se tratar. O máximo que conseguiu foi uma cadeira de rodas, doada pelo deputado Salustiano Fortes.

— Quantos anos tinha? — Waldemar, residente na capital do estado, onde prosseguia em um infindável curso de letras, procurava refrescar a memória.

— Ah, talvez uns cinqüenta anos. Quando ele ficou doente teria uns trinta e cinco, talvez quarenta anos. — Claudionor respondeu da porta do salão de snooker, ansioso para espalhar a notícia pelo centro da cidade.

— É verdade, me lembro agora. Ele ficou doente naquela ocasião dum surto de meningite, logo após o fim da Segunda Guerra.

— Se não fosse pela caridade dos amigos e ex-alunos, já teria morrido há mais tempo. Você vai ver, Waldemar, o casebre em que ele morava, com a mulher. É de dar pena.

Na casa do falecido, a miséria evidenciava-se por todos os lados. Uma casa velha, nos limites da cidade. Literalmente caindo aos pedaços. Um dos quartos fora abandonado, a porta trancada, pois o telhado ameaçava cair. O piso irregular, de terra batida, soltava poeira. Na frente, um areal onde os pés dos visitantes se afundavam. Nos fundos, o quintal abandonado, cheio de latas velhas, cacos de tijolos e de telhas. As cercas de bambu caíam para os lados.

Quando a notícia do falecimento correu pelo bairro miserável, acudiram os vizinhos mais próximos, a fim de ajudarem dona Leontina na difícil hora. Rapidamente, lavaram e trocaram corpo, que estenderam sobre uma mesa, na sala de entrada, onde seria velado durante a noite.

— Puxa, como é que vamos fazer com as pernas do Professor? Elas não ficam esticadas. — Por mais que tentasse manter as penas do morto na posição horizontal, elas teimavam em voltar à posição em que permaneceram durante mais de dez anos.

— Comadre Delia, corre no quintal, traz embiras pra gente amarrar as pernas. — Determinou Zeca, competente enfermeiro da Santa Casa, que tinha solução pra qualquer problema.

Estranhando o pedido, mas expedita no cumprimento da ordem, Dona Delia foi ao quintal e do tronco da copada embireira tirou diversas tiras da casca.

— A senhora mantém as pernas do defunto assim, espichadas, enquanto amarro na posição. Antes do morto esfriar, porque depois não conseguimos mais espichar. — Zeca não parava de movimentar-se, falava e agia: amarrou as pernas à mesa, deixando a laçada e as pontas da embira pelo lado de baixo do móvel. — Agora, é só cobrir o corpo com um lençol, está tudo nos conformes.

Quando Waldemar, Claudionor e Lauro chegaram pro velório, já passava das onze da noite.

— Puxa, que local tétrico! — Waldemar se impressionou a situação da casa. — Coitado do Professor, ficou mesmo na miséria.

— Você se lembra da mulher, da dona Delia? Está um caco, você vai ver.

Entraram, permaneceram um pouco olhando para o corpo. Depois, deram os pêsames à viúva, e ficaram por ali, na sala. Sussurrando entre eles, comentários abafados e respeitosos. A vizinhança, por mais pobre que fosse, tinha providenciado algumas quitandas, um café ralo e chá de erva-cidreira, que estava sendo consumido na cozinha do casebre. Os três amigos entraram no cômodo iluminado por uma fraca luz de 25 watts que, melhor do que iluminar, deixava cantos e vãos numa semi-obscuridade assombrosos.

— Pombas, como está lúgubre aqui. — Enquanto mastigava e tomava chá, Lauro foi se esgueirando mais para a porta dos fundos. Ali os três ficaram em animada conversa.

— Velório à noite me faz lembrar quando cheguei à capital. — Waldemar era bem-falante, gostava de contar suas recordações. — A pensão em que morei por uns dois anos era uma miséria, a comida pouca e ruim. Padeci de fome crônica. Foi quando comecei a acompanhar Licurgo nos velórios das noites. A gente ia a tudo quanto era velório. Não sei como ele descobria onde tinha defunto sendo velado. Mas onde houvesse um velório, lá estávamos nós.

— Velório de defunto desconhecido? Que idéia mais besta. — Comentário de Cláudio.

— É que a gente ia só pra comer, sô. O passadio miserável da pensão, mais a mesada curta que recebia, forçava esses malabarismos de estudantes. Lá na capital tem tanto velório que o Licurgo sabia qual o melhor, onde a comida e a bebida eram mais fartas.

Atraído não se sabe se pelas migalhas das quitandas que caíam no chão, ou se pelo calor da casa cheia de gente, apareceu um cachorro que ficou rondando por ali, no meio das pernas dos veladores. Até encontrar seu canto: debaixo da mesa sobre a qual o morto permanecia esticado, devidamente embirado. Cachorro preguiçoso, desses que ficam remexendo, roendo, inquieto. Começou a roer as pontas da embira, que pendiam debaixo da mesa. A noite avançava, os poucos gatos-pingados foram ficando, a presença na cozinha era maior do que na sala. Pelas tantas da madrugada, apareceu até uma garrafa de cachaça, que circulou geral.

Madrugada esfriando. A viúva, inconsolada, retirou-se para o quarto do casal. Foi descansar um pouco. Os homens (não havia mais mulheres, todas tinham se ido) conversavam em voz alta, animados pela ausência das mulheres e pelo efeito da caninha. O cachorro roendo a embira.

Dois amigos do Professor estavam na sala, quando o cachorro, tendo roído e puxado as embiras pra todos os lados, desfez o laço que segurava esticadas as pernas do defunto, as quais voltaram à posição anterior, ou seja, se encolheram, levantando o lençol cobria corpo do professor. Os dois amigos na sala levaram o maior susto. Correndo, passaram pela cozinha, os olhos esbugalhados, gritando “O defunto tá vivo! Tá levantando da mesa!”, e saíram pelo quintal. Os demais não se deram ao capricho de averiguar, simplesmente seguiram os dois e sumiram na escuridão.

Daquele grupo, ninguém voltou ao velório. Quando começaram a chegar as primeiras pessoas para o enterro, marcado para as oito da manhã, o defunto estava na maior solidão. A viúva, cansada, dormia em seu quarto, não tendo percebido a fuga da madrugada. O morto continuava com as pernas encolhidas. Deu o maior trabalho colocar o defunto no caixão, pois as pernas teimavam em ficar na posição em que durante muitos anos estiveram paralisadas.

Os três amigos, envergonhados pelo súbito acesso de medo, evitavam falar do incidente. Se alguém deles o mencionava, era como o “velório do defunto embirado”.

Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 3 de agosto de 2001

Conto # 108 da Série Milistórias .

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/03/2014
Reeditado em 03/04/2014
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