EM CLASSE

— Transferência? A senhora tem certeza de que quer mesmo ser transferida?

Levantando os olhos do requerimento que acaba de ler, a diretora da “Escola Municipal Dr. Clovis Delgado” tenta mostrar-se surpresa.

— Sim. Não agüento mais lecionar aqui. — A resposta vem rápida, em palavras ásperas, que não se coadunam com o tipo da professora Marilda. — Não tenho mais condições psicológicas.

— Pense bem, queridinha. Só existem vagas em escolas na periferia. Escolas bem piores do que a nossa, para lhe dizer a verdade.

O pedido de transferência é meu último recurso, pensa a moça. Se não for embora logo desta escola, acabo ficando doida. Não se atreve a expressar tais pensamentos em voz alta, pois a situação já está além de qualquer diálogo ou consideração.

— Se não conseguir ser transferida, vou entrar em colapso.

Marilda leciona nesta escola há cinco anos. Gosta muito de seus alunos, dos quais conhece nome e sobrenome. Da maioria sabe dos antecedentes, dos problemas familiares, dos apertos dos pais para manter os resquícios de uma vida digna. Até há pouco tempo, conseguira manter o entusiasmo, apesar das dificuldades que enfrenta, como todos os colegas e a administração, para transmitir algum conhecimento aos garotos e garotas sob sua orientação.

Situada num bairro modesto, a escola era a freqüentada, principalmente, por alunos muito pobres, residentes nas imediações e na favela que se estendia ao longo dos trilhos da ferrovia desativada. Já tivera dias melhores. O estado atual do edifício era desolador: depredado, as paredes grafitadas, o telhado com goteiras, o muro em ruínas, as grades arrebentadas; a grama ressecada e as árvores exibindo sinais de cortes e com galhos quebrados, o pátio interno irregular, o chão empoeirado. Carteiras riscadas, cadeiras quebradas, paredes com pintura descascada, exibiam o reboque ou tijolos nus.

O aspecto físico do edifício era a vitrina do que acontecia no seu interior. Os meninos mal vestidos, alguns descalços e sem material adequado para estudar. Livros rotos, cadernos amassados e sujos. Os professores desanimados, sem metas e objetivos, iam rolando as aulas, consoante a má vontade dos pupilos e o desconforto das salas.

— Sentimos muito que você esteja tão abatida. Você sempre foi tão entusiasmada. Que está lhe aborrecendo?

Marilda fora uma exceção nesse mundo de desânimo. Mas de nada adiantara. Olha fixamente para a diretora. Ela não sabe de nada. As coisas acontecendo debaixo do seu nariz e ela sem saber – ou fingindo que não vê. E eu me matando aqui, sem qualquer reconhecimento.

A degradação física da escola vinha de há muito tempo. Nos últimos anos, a degradação moral foi se instalando a ponto de se tornar insuportável. Marilda está com medo dos próprios alunos. Recebe ameaças — veladas ou explícitas — a cada dia, em cada aula. Ameaças de todos os tipos.

— Vou te pegar lá fora! — Zé Luiz não gostou da reprimenda e responde alto, em classe.

Ou:

— Ora, fessora, deixa frescura. Vem até aqui ver o que tenho na mão. — O convite acintoso é uma resposta ao pedido dela para que Mário pare de mexer obscenamente com as mãos sob a carteira.

Invariavelmente é bolinada toda vez que passa por entre as carteiras. De nada adiantam as reprimendas. Ultimamente, a pressão está aumentando. Os meninos cada vez mais agressivos, a meninas atrevidas e respondonas. Os garotos maiores trazem objetos estranhos dentro das mochilas. Estiletes, canivetes, correntes ou arames. Coisas de menino. De menino? – Marilda se pergunta. De pivete, sim, de bandido. E o guarda na porta da escola, para que serve?

Alguns meses atrás, no primeiro semestre, descobriu que Leandro, um dos alunos, trazia um revólver escondido dentro da mochila. Tremia de medo só em pensar em virar as costas para a turma, ao escrever as lições no quadro. Superando todo o seu pavor, conseguiu abordá-lo.

— Leandro, deixa ver a mochila.

— Pra que, fessora?

— Quero ver seus cadernos.

— A senhora não vai gostar de ver, não senhora.

De má vontade mas com os olhos brilhando de malícia, o aluno, que deve ter uns quinze anos, entrega a mochila.

— Que é isso, Leandro?

— Um revólver, num tá vendo?

— Pra quê?

— Pra me defender. A senhora não sabe do perigo que a gente corre por aí.

Leandro é o aluno mais temido da escola. Todos os colegas têm medo dele, conhecem sua fama. Quando sai da escola, é “aviãozinho”, entrega maconha para os clientes de um traficante da favela onde mora.

— Você também puxa um cigarro?

— Só um teco, de vez em quando.

Marilda decide trazer Leandro de volta à normalidade. Com muito jeito, conversa e compreensão, consegue que Leandro não mais leve a arma em sua mochila. Conquistou a sua confiança a ponto de conseguir que ele lhe entregue o cigarro de maconha antes de entrar na sala de aula.

Foi um trabalho de mais de seis meses. Para garantir a confiança, dá a Leandro o número do telefone de sua própria casa. Mas outros casos de portadores da droga e de armas começam a pipocar na escola. Formam-se gangues. Leandro é o chefe de uma turma.

— Leandro, pensei que você tinha se emendado. Você prometeu que ia se afastar dessa confusão.

— Só dentro da escola, professora. Lá fora, a barra é pesada. A gente tem que se unir.

Na semana seguinte, alguém liga para dar a pior notícia: Leandro acabara de ser morto por traficantes.

O medo aumenta. Transforma-se em terror e em pânico. Todos os professores estão apavorados.. As gangues tomam conta da escola. Cada classe tem seu chefe, e brigas acontecem no pátio e nos corredores. Entre seus próprios alunos há duas facções. Marilda sabe de muitas coisas, pois Leandro lhe contara segredos do mundo do tráfico. Ela sabe que é um “arquivo”, uma pessoa que pode ser “queimada”, eliminada a qualquer momento.

— Vou encaminhar seu pedido. Mas gostaria que você o reconsiderasse. — A diretora não quer perder a professora. — Não podemos dispensar sua ajuda. Não temos substituta. Vai ser mais uma classe sem professora.

— Minha decisão é essa mesmo.

Marilda volta à sala de aula. Sente-se ameaçada por todos os lados. Os meninos estão excitados. Os grupos se formam dentro das salas. As gangues escolhem seus cantos, e cochicham durante as aulas. Todos desconfiam dela. Os que eram liderados por Leandro também. Sabem que ela conhece coisas importantes a respeito deles. Os da gangue oposta a odeiam porque pensam que ela é protegida pelo grupo adversário. Ela sabe que está entre dois fogos. Tem pressa em sair dali, ir para um local seguro.

Seu pedido é atendido em tempo recorde. Apenas quinze dias são passados e recebe a notícia de sua transferência.

— Meninos e meninas, esta é nossa ultima classe. Fui transferida e amanhã devo assumir na outra escola.

Marcelo, que agora é o chefe da gangue antes liderada por Leandro, leva um susto com a notícia. A bandida vai embora. Tamos perdido. Ela vai contar tudo o que sabe. Não pode, não.

Aliviada com a notícia, despreocupada e até mesmo sentindo-se feliz, Marilda ajunta seus papéis, livros e material de classe. Vira-se para apagar, em movimentos rápidos, a última equação explicada aos alunos.

Marcelo, no fundo da classe, ergue-se de sua carteira e arremessa o estilete. Marilda sente a dor aguda de algo penetrando em suas costas. Vira-se para a turma, o olhar já embaciado, tentando compreender o que estava lhe acontecendo. Vê um vulto de pé, no fundo.

— Marcelo....você...?

Ouve, enquanto desaba, mortalmente ferida:

— É pra você ficar calada, sua filha da puta.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 19 de agosto de 2002.

CONTO # 173 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/04/2014
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