A coruja

Nota do autor:
Cada fala dos personagens (com travessão) é uma parte do soneto completo exposto no final deste conto.

 

 
 
Rio de Janeiro, setembro de 2009.
 
Dez horas da noite. Poeta solitário na janela. A questão é: eu estava dentro de casa observando a paisagem, ou do lado de fora observando minha casa? De que lado da janela sempre estive nesta minha amaldiçoada existência? Tamanha é essa minha grotesca insanidade que já nem mesmo sei quem sou! E essa questão é justamente a que permeia todo o ocorrido do relato a seguir: o lado que se está reflete em que lugar estamos presos (ou libertos).
 
Mas o fato é que, da minha cama, eu olhava para a janela do meu quarto. O céu tinha poucas nuvens, e não havia lua. Vi, de relance, um morcego voando, e pensei... “Que liberdade é essa que eu tenho, trancado em meu quarto, enquanto a natureza explora, como uma criança, a vastidão misteriosa de seus próprios domínios?”.
 
Eu não conseguia me controlar. E era sempre assim – toda noite surgia uma vontade avassaladora de escrever algo em meu diário, relatar em palavras o que estava sentindo em relação às histórias, aah histórias! Todas as histórias misteriosas que eu pude testemunhar perante os enigmas da natureza. Parecia que a noite me obrigava a escrever. Eu tentava dormir, mas não conseguia.  Virava de um lado para o outro completamente perturbado, nervoso – agonia do tempo e do espaço; da existência não vivida e sobrevivida.
 
Envolvido nesse dilema, até que eu já estava me acostumando a trocar o dia pela noite. Tornar-se um noctívago parecia ser uma solução. A noite, mágica como sempre foi, parece nos abrir seu véu de mistérios que o dia esconde com suas luzes e cores. Mas eu não podia, meu trabalho não permitia. Se eu não dormisse durante a noite, não conseguiria trabalhar durante o dia (maldita obrigação social dos que lutam como escravos para sobreviver numa sociedade que caminha para o fundo do poço!).
 
Era sempre assim: se eu não escrevesse algo, não conseguiria dormir. E sempre que surgia a vontade de escrever uma linha que fosse em meu diário, uma coruja aparecia na minha janela.
 
Uma coruja? Sim, uma coruja. Minha amiga coruja! Visitante assídua e companheira de minhas noites de insônia e solidão. A única a me dar conselhos, testemunha de um mundo que para mim era desconhecido.  E se corujas não falam, essa ao menos soprava-me aos ouvidos todas as fontes de minha inspiração.
 
Eu deixava a janela aberta, já estava me acostumando com a presença de minha amiga misteriosa. Ela, sem cerimônias, passou a me visitar regularmente somente depois que comecei a ter o hábito de deixar, na janela, frutas e pequenas lagartixas – eu acreditava que a ave poderia me ajudar, que a inspiração de muitos textos que escrevi vinham dela, como se a natureza estivesse me ajudando. E todos os dias, quando ela aparecia, eu também deixava um pote de água na janela. Às vezes ela parecia beber, mas eu não sabia nada sobre corujas! Muito menos o que elas comiam.
 
No princípio, parecia arisca, mas com o tempo foi perdendo o medo, até entrar no meu quarto. Um mês se passou e já estávamos nos tornando ótimos amigos. Eu sentia isso! E concluí que, como consequência dessa forte amizade, ela era parte de mim, e eu já não conseguia escrever sem a presença dessa criatura portadora dos mistérios proibidos ao homem.  Durante certas noites porém, ela não apareceu no meu quarto. Foram noites muito mal dormidas...
 
Eu não queria nem pensar, mas temia por seu pior, imaginava horrores. “Ela poderia ter morrido?”. Já estava pensando em comprar uma coruja para substituí-la, mas na noite seguinte ela voltava como um gênio atendendo meu chamado, pronto para realizar meus desejos, e só assim eu escrevia minhas reflexões no diário e dormia tranquilamente. Porém, houve uma maldita noite, às dez horas da noite (nunca vou esquecer), que, mesmo com a coruja em meu quarto, eu não conseguia escrever...
 
Enfurecido, nervoso, eu caminhava de um lado para o outro. Como um louco querendo cavar um buraco no chão só com o andar.
 
Fiquei enlouquecido, minha alma gritava, minha cabeça doía. A febre aumentava. Não conseguia dormir, muito menos escrever. A coruja me olhava, com aqueles olhos grandes, amarelos, com uma grande circunferência negra no centro. Ela parecia assustada, mas isso era uma falsa impressão da mestre das ilusões! Seus olhos arregalados pareciam demonstrar esse medo, mas suas penas negras e brancas revelavam, por outro lado, uma sabedoria maior que a minha. E seu bico encurvado demonstrava respeito para um animal que nem sempre é doméstico.
 
Eu não suportava mais o seu olhar pungente.
— Fico me perguntando sobre o que passou: em que túmulo foi parar nossa amizade? - Eu perguntava no auge do meu desespero, repetidamente e inquieto.
 
Durante o dia, no trabalho, meus colegas de trabalho me olhavam curiosos. Mal dava para disfarçar minhas olheiras.
 
E assim os dias e as noites foram passando, desde aquela fatídica noite.
 
Ah, meu diário noturno de mistérios, mais uma noite se passa, como tantas outras... Olho para sua página em branco, seguro o lápis e apoio meus cotovelos sobre a escrivaninha. Nada surge, nada sai da minha mente (agora perturbada). Olho para a janela aberta, e lá está a coruja pousada, olhando-me como uma assombração.
 
Logo que desvio meus olhos do diário para ela, a maldita gira a cabeça até as costas e olha para o céu, como se estivesse evitando meu olhar. Que espécie de demônio, criatura maldita ou maldição seria essa coruja?
 
Escrever tem sido minha forma de criação. Quando se é criativo, pelo menos no meu caso, há a necessidade de se externar tudo o que guardamos em nosso interior, pois o tempo vai passando e mais guardamos, cada vez mais e mais... E chega uma hora em que você está prestes a explodir toda a loucura armazenada na alma.
 
Mas de alguma forma essa coruja parecia me esvaziar.
 
No início, ela apenas surgia e me inspirava por acaso, mas com o tempo passei a ser tão dependente da ave que esqueci tudo o que tinha guardado de criativo dentro de mim.
 
Certa noite desisto de escrever e vou para a cama. Apago a luz e tento relaxar, dormir. Minha última visão antes de pegar no sono foi o olhar da coruja. Seus olhos brilhavam na escuridão, como uma criatura das trevas dizendo: “tenha doces pesadelos...”.
 
Minha visão embaça. Vejo dois pontos amarelos na escuridão; os olhos da coruja. Enfim, durmo...
 
...
 
...
 
Acendo a luz e olho o relógio: ainda é noite. Xinguei todos os palavrões que conhecia.
 
Eu não conseguia dormir!
 
O pior de você não conseguir dormir, é não conseguir dormir sabendo que falta algo. E o que faltava era algo que eu não estava mais conseguindo fazer! Escrever! Escrever!
 
A coruja agora me irritava com sua presença sinistra em meu quarto.
— Maldita seja você que me assombrou. Deixando-me sem ar para expor uma frase! - Eu esbravejava, inconformado.
 
Levantei-me. Andei de um lado para o outro, continuei xingando a coruja várias vezes, fui ficando cada vez mais nervoso. E sem explicação aparente, como que num ímpeto de se libertar de um longo estupor interior, perdi o controle. Quebrei os vidros da janela arremessando os livros que encontrava pela frente.
 
Olhei para a coruja que, para minha surpresa, não voou assustada.
 
Naquele momento eu a odiava mais que tudo na vida.
— Mas se você pensa que não vou escrever, engana-se, coruja trevosa, infernal! – Eu acusava ferozmente a coruja como culpada por aquela minha desgraça.
 
A inquietação era grande. O terrível desejo de escrever atormentava-me a alma. Não era uma noite nada agradável para se ter uma insônia. Fazia muito calor, não tinha nada para se fazer e eu estava com uma dor de cabeça que aumentava a cada minuto.
 
Subitamente, tive uma estranha ideia. Se a coruja não mais me inspirava, eu iria buscar a tão desejada inspiração.
 
Saí de casa e fui passear no parque, aproveitando a brisa noturna, até parar numa praça, onde me sentei num banco de pedra. Peguei meu diário e meu lápis. Não precisava nem de lanterna, aproveitei as luzes que vinham dos postes de iluminação do parque. Mas essas luzes eram estranhas. Não pareciam reais. Porém, não dei importância ao fato.
 
Contemplo o céu negro e sem lua, esperando surgir uma ideia, uma inspiração.
 
Pensei em escrever qualquer coisa, uma espécie de pensamento. Então comecei a falar sobre a coruja em meu diário. De repente, uma velha toda vestida de preto, com o rosto parcialmente coberto por longos e lisos cabelos negros, surge na minha frente e pergunta:
— Poeta, escritor, ou louco depressivo?
 
A velha carregava uma garrafa de vinho. Seu andar cambaleante denunciava seu estado de bêbada.
 
Senti desânimo e raiva ao mesmo tempo. Sua presença estava tirando minha concentração. E que pergunta estranha foi aquela que ela fez?
 
Bom, o jeito foi lhe dar uma resposta mais estranha ainda. Esperei um pouco, e usei de minha criatividade:
— Escritor, louco por expressar o meu mal.
 
Por um momento, senti-me satisfeito pela conclusão insana de um pensamento.
 
Então a velha me perguntou de onde vinha minha depressão. Respondi que era da minha incapacidade de viver em paz.
 
Ela me ofereceu um pouco de seu vinho, dizendo que eu iria melhorar após uma bebida, mas eu só queria que ela fosse embora e me deixasse em paz.
 
Paz! Como eu precisava disso! Na verdade, esse desejo de paz era o desejo de ficar sozinho...
 
Rejeitei o vinho e voltei meus olhos para o papel. Como a desgraçada sabia meu ponto fraco? Meu vinho preferido (Vinho do Porto) estava em sua mão.
 
Depois de um tempo, tive até vontade de beber, mas a velha já estava se tornando inconveniente e chata, como uma interesseira puxando assunto para sugar-me algo. Ela permaneceu ao meu lado, falando um monte de besteiras. Perguntou se eu acreditava em fantasmas, pois ela já tinha visto muitos naquele parque. Sua conversa era um verdadeiro tédio para pessoas ainda sóbrias como eu. Primeiro porque eu ainda não estava louco o suficiente para acreditar nas histórias de uma bêbada; segundo porque eu queria ficar mesmo sozinho. A paciência era pouca depois de noites de insônia.
 
Ela falava muito, mas minha mente estava distante – eu pensava na coruja que deixei sozinha em meu quarto.
 
De repente, a velha diz algo que desperta minha curiosidade.
 
Algumas palavras no fim de uma frase, pois eu não estava prestando muita atenção no que ela dizia.
— Aquele fantasma logo ali, você vê?
 
Eu estava olhando para o céu e refletindo. Mas ao ouvir a última fala da velha, perguntei que insânia era aquela que agora ela proferia. Ao que ela disse:
— Eu vejo muitas assombrações a viver como sombras numa inspirada possessão.
 
Não consegui dizer mais nada. O que a velha me disse me assustou muito, a ponto de meu corpo ficar todo paralisado.
 
Então, com o intuito de provar o que dizia, a velha apontou para meus pés, onde devia estar minha sombra. E lá não estava! Eu não tinha sombra!
 
Fiquei perplexo. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Mas a velha, estranhamente, parecia feliz ao me trazer tal revelação.
 
Ela dava gargalhadas, pulava de alegria. Como se aquilo fosse a coisa mais excitante que poderia existir. Eu não compartilhava de sua loucura, não mesmo! Havia perdido minha sombra, motivo o suficiente para não conseguir me mover, tamanho era o meu medo. A velha parecia não entender isso. Ela pedia para que eu escrevesse algo em homenagem ao fantasma.
 
Não fazia o menor sentido. A maldita bêbada agora pedia para que eu escrevesse algo que ela sempre via; que eu poderia escrever o que ela via apenas porque eu tinha uma vida no lugar da sombra, antes morta.
 
A bêbada parecia zombar de mim. Suas gargalhadas estavam me atormentando. Tentei fugir. Corri o mais depressa que pude.
 
Ela veio atrás. Conseguiu me agarrar. E era forte!
 
E com suas mãos segurando minha camisa, bem forte, ela me disse:
— Meu portal, minha sombra que se torna vida, incorpore minha dádiva proibida; mundo oculto acordando no seu coração!
 
Desesperado, alcancei seu pescoço e apertei tão forte que   meu   braço   doía com o esforço enlouquecido. Já não era mais uma questão de sobrevivência, e sim, de um ódio que subitamente possuiu meu corpo. Não parei de apertar até sentir sua respiração parar. E quando a velha parou de se mover e morreu, vi que eu estava novamente em meu quarto, deitado na cama. Tudo não tinha passado de um sonho.
 
Já era dia, o relógio marcava seis horas da manhã.  E nas minhas mãos, uma surpresa: a coruja estava morta – eu estrangulei a coitada enquanto estava sonhando, como se ela fosse a velha do meu sonho.
 
E de fato: era ela?
 
* * *
 
EPÍLOGO:
 
Dias depois, com um enorme pesar no coração, fui ao cemitério enterrar minha falecida coruja. Ela foi minha amiga, e eu a tinha matado...
 
Desde então, nunca mais toquei naquele maldito diário antes de dormir. Sem a coruja, a vontade de escrever meus pensamentos desapareceu – as ideias podiam esperar de forma mais saudável. E voltei a dormir tranquilamente durante todas as noites seguintes. Dessa vez a lua fazia-se presente. Mas aprendi uma coisa no dia que enterrei minha amiga coruja: quando saí do cemitério, ouvi um pio que eu pude reconhecer com facilidade. Olhei para trás e vi uma coruja em cima do portão do cemitério. Não era a coruja que eu conhecia, talvez fosse mais uma criatura amaldiçoada, mas pelo olhar daquela ave, pude sentir que ela pertencia a outra pessoa. Pois aprendi que toda pessoa tem uma coruja que a assombra.
 
Como um epitáfio, deixei os seguintes versos na pequena cova de minha ave amiga:
 
Fico me perguntando sobre o que passou:
Em que túmulo foi parar nossa amizade?
Maldita seja você que me assombrou
Deixando-me sem ar para expor uma frase!
 
Mas se você pensa que não vou escrever,
Engana-se, coruja trevosa, infernal!
Poeta, escritor, ou louco depressivo?
— Escritor, louco por expressar o meu mal.
 
Aquele fantasma logo ali, você vê?
Eu vejo muitas assombrações a viver
Como sombras numa inspirada possessão.
 
Meu portal, minha sombra que se torna vida,
Incorpore minha dádiva proibida;
Mundo oculto acordando no seu coração!
 
FIM
 
 
PS.: Cantada por Tom Jobim em Águas de Março, Matita Perê é uma velha vestida de preto, com os cabelos caídos pelo rosto. Diz a lenda que ela tem poderes sobrenaturais e prefere aparecer nas noites sem luar, sob a forma de uma coruja.
 

Na janela quebrada...
 
 
 
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 27/04/2014
Reeditado em 10/05/2016
Código do texto: T4784914
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