Minha Melhor Amiga

Você nem sabe quem está contando essa história...

Tudo começou quando nos mudamos para uma fazenda no interior do Ceará. Tivemos que deixar amigos e tios, pessoas muito queridas por nós, o que desencadeou uma reação negativa em Natali. A menina risonha dos cabelos ruivos cheio de cachinhos.

O sítio onde ficamos era muito belo e espaçoso, tinha piscina e casa na árvore, tudo o que alguém, na idade de Natali, poderia querer. Mas, tudo o que ela queria era voltar para a capital.

Na casa, moravam Natali, sua mãe e seu irmão jovem. E como bom cão de guarda, eu ficava nas redondezas farejando tudo. A casa na árvore, localizada à direita da piscina, também me instigava a curiosidade mas estava sempre fechada.

Passado os dias, Natali não tinha coragem de levantar da cama, nem de passear, de brincar, muito menos de explorar o vasto terreno nos fundos do quintal.

E sem ela, eu também não iria a lugar nenhum. Sempre fiquei ao seu lado, desde o falecimento de seu pai.

Seu Ricardo era um homem simples e batalhador, conseguiu a casa e o carro com o suor do seu trabalho. Foi ele quem me adotou como novo integrante da família e me apresentou para sua filha. No entanto, foi muito triste quando ele não voltou mais para casa, vítima de um infarto fulminante.

Passou um mês e as coisas pioraram. Além da má vontade de levantar da cama, Natali deixou de comer e se comportava de uma forma estranha: acordava no meio da noite gritando por causa dos pesadelos. Uma vez, eu a salvei de cair dentro da piscina porque estava sonâmbula. Sua mãe a levava novamente para o quarto e contava histórias até ela cair no sono de novo. Porém, até eu comecei a ficar perturbada com a nova Natali.

Certo dia, deitei no carpete da sala, me espreguicei e escutei um assobio suave. Levantei a cabeça, olhei para os lados, farejei o ar para identificar cheiro e de onde vinha o tal som. Era Natali que me mostrava a coleira. “Oba! Passeio” pensei.

Corri em sua direção, morrendo de felicidade. Fiquei animado porque ela estava sorrindo. Até me fez cócegas na lateral da barriga e me deu um beijo na cabeça. Natali pôs a coleira em mim e entramos no terreno atrás. Logo, os altos arbustos nos cobriram. Uma nuvem pesada e gigantesca cobriu o sol, o vento gelado circulou entre a gente, entre as pernas dela e as minhas patas. Meu focinho ficou descontrolado, algo estava cheirando muito e eu queria saber o que era, entrei matagal adentro e a deixei para trás. Natali deu um grito. Minhas orelhas ficaram em pé.

De repente, me senti cercado por uma ameaça invisível. Algo se movia rapidamente de modo que eu não conseguia acompanhar, era mais rápido que a minha visão, mais forte porque percebi minha cauda entre as patas. Voltei até onde minha amiga estava e a encontrei paralisada.

Ela sorriu, não o tipo de sorriso de alegria, mas um sorriso sem brilho, sem vida.

- Tive a impressão que vi meu pai...

Fiquei contrariado.

- Vem cá menino – disse ela – Você é meu melhor amigo, sabia? Nunca vou saber recompensá-lo por estar sempre ao meu lado. Você é o único que sabe quando estou bem ou quando estou muito mal.

Dei-lhe uma bela lambida no meio do rosto para tentar animá-la e pude escutar o barulho gostoso da sua risada. Lati duas vezes a chamando para brincar.

Lati pela terceira vez. Até que meus instintos me alertaram.

Parei um pouco e minhas orelhas levantaram como antenas em busca de ondas de rádio. Natali se afastou de mim e puxou uma faca do bolso. Dei alguns passos para trás e choraminguei. Comecei a latir pedindo que ela soltasse o objeto. “Por Deus! Ela só tinha 7 aninhos!” pensei. Lati mais e muito! Não tinha como me aproximar porque havia um perigo muito real; imaginei se ela usaria aquela faca duas vezes, nela e em mim...

Para o meu alívio, ela não fez nada do que eu pensei, ao contrário, ela me chamou pelo nome e entramos matagal adentro sem perceber que escurecia. A mata nos engolia e o sol foi coberto pela nuvem. Natali parou perto de uma árvore larga e alta onde havia um pequeno balanço quebrado. Olhou para a árvore, para o balanço e depois para mim; pegou a corda da minha coleira e amarrou no tronco.

Fiquei agitado. Ela ia me deixar ali?

Ela se afastou um pouco e eu quis me soltar para segui-la. Choraminguei de novo. “Não me deixe!’ pensei. Então, Natali puxou a faca novamente e com os olhos cheios de lágrimas começou a se cortar. Nós, de quatro patas, não derramamos lágrimas, mas sabemos o que é dor, tristeza e sofrimento. E ver aquela cena terrível me fez querer arrancar aquela árvore para ir socorrê-la. Lati tanto até ficar rouco. O sangue escorrendo pelo braço e pela roupinha amarela, deixava claro que ela queria me passar uma mensagem, queria dizer algo muito profundo. Mas ela não conseguiu e desmaiou.

Juntei forças para arrebentar o nó da corda e pulei sobre seu corpo frágil. Lambi seu braço ferido. A faca estava caída ao lado.

- Natali não faz isso! Minha melhor amiga! – grunhi profundamente.

Lambi seu rosto várias vezes. Lati alto três vezes pedindo ajuda. Ela despertou, se esforçou para mexer o braço e com certa dificuldade fez um carinho no meu peito.

Eu queria levantá-la, eu queria levá-la para casa.

- Você é forte! Vamos! - tentei empurrá-la com a minha cabeça.

Ela não me escutava mas provei minha intenção com gestos.

Comecei a uivar. Um uivo tão agudo feito aquele assobio que Natali deu ao me chamar. Acabei me deitando ao seu lado, me sujando de sangue. Ela sussurrou alguma coisa mas não entendi, então abanei o rabinho.

Era noite e nós não tínhamos voltado para casa e a nossa volta somente breu e barulho de insetos. Alguns vaga-lumes voaram iluminando centelhas de esperança.

E de novo, eu vi algo se mexer por entre os arbustos. Rosnei.

Levantei, fiquei entre Natali e aquela coisa desconhecida. Pelo barulho que fazia, parecia um animal como eu, um monstro ou algo humanoide. Então, com todo ar dos meus pulmões lati, tão alto e cada vez mais alto que pensei perder as forças.

Finalmente, uma luz se projetou na minha direção. Uma laterna.

- Natali! – alguém gritava.

Lati de novo.

- Mike! Mike?

Era a voz do irmão de Natali.

- Mike? O que vocês estão fazendo aqui, menino?

Pulei nas pernas dele. Ele viu meu focinho sujo de sangue.

Enfim, a ajuda que estávamos esperando. Natali estava caída atrás de mim e ele a percebeu. Não dava para dizer com palavras o que tinha acontecido com ela, foi um segredo que eu guardaria para sempre. O irmão de Natali a segurou nos braços e correu de volta para casa. Levaram-na para o hospital.

Tenho esperanças de que ela volte para mim. Tenho pesadelos horríveis com aquele local: em noites de tempestade, o local vazio inunda e o relâmpago clareia o balanço, preso a árvore, fazendo a sombra de uma menina.

Hoje, completa-se mais um mês que eu espero por Natali.

UMA SINGELA HOMENAGEM AOS ANJOS DE QUATRO PATAS.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 01/08/2014
Reeditado em 25/03/2021
Código do texto: T4905166
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