391-NO FUNDO DO POÇO-

— Parem o enterro! -

A ordem veio com voz autoritária. Os dois homens corriam pelos estreitos caminhos entre túmulos e mausoléus. À frente, um homem alto e ágil trazia na mão direita um envelope, com o qual acenava para o grupo de pessoas que circundavam o caixão, prestes a ser depositado no fundo da cova. Era seguido por outro, que acompanhava a custo as passadas largas e decididas do primeiro.

— O enterro não pode continuar. Precisamos de um novo laudo pericial.

Os acompanhantes da cerimônia não eram muitos. Talvez vinte pessoas, dentre as quais se destacava a família do que estava prestes a ser enterrado. A viúva, as três filhas e o filho evidenciavam-se pelo luto das roupas e as faces compungidas.

— Mas...Quem é o senhor? O que significa isto? — O rapaz de cabelos pretos, em cujos braços a mãe se apoiava, interpelou o recém-chegado.

— Sou o Delegado Davanti. Desculpem-me por aparecer assim, à última hora. Mas só há momentos o juiz expediu o mandado para outro exame dos restos morais. Aqui está. — Explicou o delegado.

— Mas a perícia já foi feita! — Agora era a mulher de luto que questionava. — Pra que outra?

— Sim, senhora. — O delegado queria mostrar respeito e educação.

— Mas...por quê? — À dor do luto acrescentava-se essa questão policial.

Aproximando-se do grupo de familiares, o delegado falou em tom baixo.

— Desculpem-me, não posso entrar em detalhes aqui. Vamos interromper o enterro e conversar na sala de administração. Venham, por favor.

— E o enterro? Não vamos enterrar papai? — Questionou uma das filhas.

— O administrador e o pessoal do cemitério vão levar o caixão para o necrotério.

A cerimônia terminou ali. A família foi com o delegado, os trabalhadores do cemitério levaram o caixão, ainda sobre o carrinho, e os demais participantes foram saindo, entre cochichos e murmúrios. Em poucos minutos, o cemitério ficou deserto.

Na sala do administrador do cemitério, o delegado Douglas Davanti mostrou o mandado, documento legal, expedido pelo Juiz, a fim de que a ossada de Jaime Carlos Carneiro fosse submetida a nova perícia por médico legista.

— E qual a finalidade disto tudo? — Lauro, o filho, não se satisfaz com a explicação do delegado nem com a leitura do documento legal.

— Surgiu um detalhe no processo. Não quero preocupar vocês. É coisa de rotina policial.

A viúva, cujo abatimento se fazia notar mais ainda depois da intervenção do delegado, não parava de chorar. Ora abraçando uma das filhas, ora amparada pelo filho. Nada disse. Mantinha os olhos baixos, dos quais lágrimas escorriam.

Lauro levanta-se e se dirige à porta, de onde acena para o delegado. Este o acompanha e ambos saem caminhando sob frondosos ciprestes.

— Por favor, me diga o que está acontecendo.

— Bem, vou lhe dar todas as informações. Afinal, vocês têm o direito. Mas será muito triste para sua mãe e suas irmãs.

— Por favor, delegado... Diga logo!

— Bem, é que recebemos uma informação segundo a qual o crânio teria marcas de pancada ou perfuração de projétil.

— Que absurdo!

— Sim. Mas a denúncia foi feita, quem denunciou é pessoa de credibilidade e a polícia tem de constatar a veracidade da informação.

— Papai teria sido...assassinado?

— Não tire conclusões precipitadas. Só um novo exame dos ossos, principalmente do crânio, poderá fornecer indícios, pistas para qualquer coisa que indique morte acidental, como foi pressuposta, ou ...outra coisa.

Cerca de seis anos antes, na residência da família de Jaime Carlos Carneiro. A clara manhã de sol é uma alegria, após uma semana de chuvas e dias cor-de-cinza.

— Bom dia, meninas. — A mãe, Berenice, ainda trajando camisola de seda, senta-se à mesa. Mostra-se desanimada, tem olheiras e nada come. Nada dos beijinhos que distribui a cada manhã, à hora do café. Raquel, a mais velha das três, perspicaz, observa a mãe.

— Aconteceu alguma coisa? — Pergunta.

— Aconteceu...? Mas o que poderia ter acontecido? .

— Sei lá. Tou achando a senhora estranha.

Berenice morde o lábio inferior. Está indecisa. Esmagando nas mãos um pedaço de pão, acaba por desabafar:

— Seu pai fugiu de casa.

— Fugiu? Fugiu como?

— Pois é... Não dormiu em casa. Foi atrás daquela piranha.

— Piranha? — Fátima, a mais jovem, nos seus quinze anos, não compreende toda a situação.

— Aquela secretária da Mineradora. A sacana da Marilu, vocês se lembram? Tava de caso com ela.

— Mas pra onde foi papai? Deixou um bilhete, uma carta?

— De certo que pro Rio. Ela veio de lá, voltou pra lá quando foi despedida. E agora seu pai foi atrás. Sem deixar nem um aviso.

— Não acredito! — Heloisa, a do meio, entra na conversa para defender o pai. — A senhora tem certeza? Vai ver que ele passou a noite na casa de algum amigo, em alguma festinha, e logo aparece por aqui. Já aconteceu antes.

— Conheço o Jaime. Não vale nada, é um canalha. Um beberrão.

— Mamãe! Acho melhor a gente procurar...

— Deixa de ser boba, Fátima. Eu sabia que isto iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Desde que ele perdeu o emprego, que a Mineradora foi fechada, ele estava muito diferente.

— Então vamos à polícia. Ela vai achar o papai pra gente. — Heloisa insiste na defesa do pai.

— Não vai adiantar nada. E o pessoal da cidade vai cair em cima da gente, com as fofocas. Vamos fingir que o canalha não mais existe.

Se Berenice pretendia fingir que o marido desaparecera de sua vida, deu os passos para tanto. Na tarde daquele mesmo dia foi ao banco e transferiu para sua conta individual todo o saldo da conta mantida em conjunto com o marido. Cancelou os cartões de crédito, na tentativa de deixá-lo sem recursos para sobreviver longe dela.

Jaime estava há seis meses sem trabalho. A empresa de mineração na qual ele trabalhava como chefe do escritório estava dando prejuízo há dois anos, devido à exaustão do veio de níquel e acabou por encerrar as atividades na região. A indenização fora boa, mas começou a beber e Berenice temia que seria consumida em álcool em pouco tempo.

— Pára de beber e vê se arranja outro emprego.

— Pra você é fácil falar. Quem é que vai empregar um cara de quarenta e oito anos aqui na cidade?

Jaime e Berenice, casados há quase vinte e cinco anos, constituíam um casal díspar. Ele, baixo, magro, miúdo, tranqüilo no falar de no agir. Desde jovem trabalhara para a mineradora, tendo entrado como o garoto de recados e ascendeu a uma boa posição, com salário que dava para manter a família. Depois que perdeu o emprego e começou a beber, parecia estar encolhendo, diminuindo de tamanho.

Já Berenice era o contrário: mulher avantajada, alta, encorpada, fora professora de educação física e atualmente trabalhava como gerente de uma academia de ginástica. Mantinha-se em forma com exercícios e dietas.

O filho mais velho, Lauro, morava na capital, onde trabalhava e estudava. As quatro moças ainda residiam com os pais. Raquel, a mais velha, terminara o curso de hotelaria, procurava emprego e estava noiva. Heloisa e Fátima ainda estudavam.

Moravam em um sobrado antigo, construído em imenso terreno, nos arredores da cidade. A propriedade era uma verdadeira chácara, que Jaime, filho único, herdara do pai. Quando crianças, os filhos percorriam o terreno de ponta a ponta, em suas brincadeiras, não havendo um só centímetro que desconhecessem. Principalmente a matinha, um pequeno bosque que começava na propriedade e se estendia além dos limites, marcados por uma precária cerca de arame farpado.

Jaime e Berenice viveram bem até o início do processo de desativação da mineradora. Além do desemprego e do álcool, havia outro fator de estremecimento na relação dos dois..

Chamava-se Maria de Lurdes, mas era conhecida no escritório e na cidade por Marilu. Bonita, elegante, sempre bem vestida, chamava a atenção pelo seu charme. Trabalhava com Jaime, e as constantes referências dele sobre Marilu implicavam Berenice.

A esposa começou a desconfiar do marido ainda quando estava empregado, porém jamais conseguira confirmar sua suspeita. Agora, com o marido desempregado, entregando-se à bebida, o desrespeito da mulher transformava-se em rancor. Ela foi se deixando tomar pelo ciúme, um ciúme tardio, já que Marilu, também desempregada, desaparecera da cidade. Falava-se que tinha retornado ao Rio, de onde viera.

O salário de Jaime tinha proporcionado, ao longo dos anos, um bom nível de vida à família, que desejava manter. Pensou em vender parte do grande terreno. Intensamente arborizado, com uma parte intocada, um bosque onde medravam velhas árvores e vegetação rasteira que constitua um emaranhado difícil de ser penetrado. Uma pequena mina d’água nascia no interior da mata e há tempos imemoriais tinha sido canalizada até uma caixa de cimento, enorme, enterrada no chão. Esse tanque, há muito tempo sem uso, estava seco e coberto por pranchas de madeira e folhas das árvores, era quase invisível na penumbra do arvoredo.

A Imobiliária Luxor mostrou interesse. O imóvel estava praticamente na cidade, era a última propriedade da Rua Lavapés e poderia facilmente ser desmembrado em lotes. Berenice não concordava com os planos do marido.

Na véspera do desaparecimento de Jaime, tiveram uma discussão acirrada sobre a venda do lote. Era um domingo chuvoso, as filhas estavam fora e o marido tinha bebido bastante durante a manhã. Mais uma vez o casal se alterou. Começaram a conversar durante o almoço e a discussão continuou pelo resto da tarde.

— Você não tem mais capacidade para nada. Vive bêbado. Não vou deixar você vender o terreno para consumir em bebida.

— Não é bem assim, Berenice. Tenho de fazer algum dinheiro com a venda. A indenização está sendo consumida com o colégio das meninas.

— Deixa de beber que sobra dinheiro.

Não chegaram a um acordo. No auge da discussão, vendo a mulher irredutível, Jaime sai, batendo com estrépito a porta da cozinha. Já escurecia, a tarde entrando nas sombras do anoitecer.

— Volta aqui, vamos terminar o assunto. — Berenice segue o marido, que se encaminha para o bosque.

O chuvisqueiro persistente empapava o solo, tornando difícil a caminhada por sob as árvores. Jaime segue a trilha que leva ao tanque seco. A mulher o segue, continuando a discussão. Está cada vez mais furiosa.

Alcança-o quando chega nas proximidades do tanque. Ela agarra o marido pela manga da jaqueta, puxando-o para si. Embora meio grogue, ele tenta se desvencilhar e aplica um safanão em Berenice. Ela o empurra e ele perde o equilíbrio. Bate a cabeça num galho baixo e cai. O chão, coberto de folhas, cede. As pranchas podres que cobrem a caixa d’água se abrem e pelo vão negro o corpo de Jaime desaparece. O grito do homem finaliza quando o corpo bate no fundo do poço.

Aterrorizada, Berenice ajoelha-se com cuidado, tentando vislumbrar algo na escuridão. Nada vê. Nada ouve. O silêncio é quebrado apenas pelo farfalhar das árvores e pelo gotejar do chuvisqueiro por entre as folhas.

Pensa em descer até o fundo do poço, mas não sabe a profundidade nem o que poderá encontrar lá embaixo.

— Vou telefonar para a polícia — Pensa, enquanto volta apressada para casa. O raciocínio, porém, se sobrepõe. — Mas o que será que irão pensar? Que eu o empurrei. Vão pensar que eu fiz de propósito.

Na sua mente arguta antevê as conseqüências que poderão advir.

Todo mundo sabia de nossas brigas. Não vão acreditar que foi acidente.

Na porta da cozinha, limpa os pés com cuidado. Demora-se, tentando ordenar os pensamentos para tomar a decisão certa.

Vão saber logo que nós dois estávamos lá. Serei presa e condenada. Meu Deus! Estou perdida!

Dirige-se à geladeira, tira a garrafa d’água, toma um copo em longos sorvos. A água gelada ajuda-a a se acalmar.

Nem minhas filhas irão acreditar em mim.

Senta-se e estendendo os braços sobre a mesa, abaixa a cabeça e começa a chorar. A chuva começou a ficar forte.

Nos dias seguintes ao do enterro interrompido, Lauro permaneceu na cidade. Inteirou-se da associação que a mãe havia feito, há poucos meses, com a Construtora Luxor, a fim de lotear parte do terreno. O desaparecimento do pai, há mais de cinco anos, já tinha sido legalizado e ela já podia dispor dos bens do casal. Os trabalhadores haviam começado o corte das árvores e a limpeza da área, quando encontraram a velha caixa d’água, coberta de folhas secas, pedaços de troncos, galhos secos e detritos. Foi quando descobriram, no fundo do poço, um esqueleto humano. Pelas roupas e por um cartão de identidade na jaqueta podre, constatou-se tratar dos restos mortais de Jaime Carlos Carneiro, desaparecido há cinco anos.

Na delegacia , tentava obter informações.

— Por enquanto, não temos o laudo da perícia. — Explicou o delegado Davanti. — Só daqui a cinco dias.

Contudo, dois dias depois, foi chamado à delegacia. O delegado recebeu-o com uma seriedade fora do normal.

— Sente-se, Sr. Lauro. Acabo de receber o resultado da perícia...

— Então, Dr. Davanti? Está tudo esclarecido?

— Infelizmente, não. A conclusão não deixa dúvidas. Seu pai foi assassinado com uma pancada na cabeça e jogado no poço. Quando desapareceu, há seis anos atrás.

ANTÔNIO GOBBO –

Bhte. 1o. de março de 2006

Conto # 391 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/08/2014
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