A Cabaça

Desembarquei do Caronia naquela agradável manhã de Junho de 1922 no porto de Santos. Richard Starky me recebeu no píer e fomos direto para a filial de nossos escritórios na rua XV de Novembro.

Esta rua apesar de muito estreita, tinha muito charme, pois de cada três construções, uma era um banco ou uma agencia de navegação. Em uma das extremidades que findava na Praça Rio Branco onde tinha a estátua de alguém chamado Rui Barbosa, ficava o poderoso Banco do Brasil e diagonalmente oposta, a bela catedral do século XVIII com os restos mortais do patriarca da independência dos brasileiros. A outra extremidade desembocava na rua do Comércio, com seus finos restaurantes e Comissárias de Café.

O burburinho e as pessoas nos seus afazeres, mais o saboroso aroma de café que pairava no ar, me deram a errônea imagem do que seria um país tropical. Mesmo assim achava estranha a pesada vestimenta à européia que os brasileiros abastados vestiam. Quase não vi pobres pela redondeza.

- Scot...? – Pergunta Rick, depois de estarmos em sua sala. Eu recusei por pura pose vitoriana devido ao horário, mas no fundo estava sedento por uma boa dose. Mas eu pouco conhecia Rick.

- O Caronia só parte na semana que vem, portanto voce terá tempo de sobra pra analisar os contratos P&I dos novos navios que vão fazer a linha até Baia Blanca, na Argentina. Voce ficará no Balneário Hotel. É um bom hotel, construção típica mediterrânea, com cassino. Todo seu piso de base é de mármore. Fica a um passo da praia. Mas antes, caro George, vou apresentá-lo aos bares, que nós, britânicos, freqüentamos.

À rua do Comércio entramos num prédio que, no saguão, existia uma escada serpenteando um elevador de porta pantográfica. No segundo andar chegamos ao Lafaiete e fomos recebidos por um garçom de jaqueta cor de vinho. O ambiente tentava dar uma atmosfera dos clubes ingleses “for men”. Podia-se ver alguns exemplares do Daily Chronicle nas mãos de alguns presentes.

- Os capitães, imediatos e chefes de máquinas, costumam vir aqui para matar a saudade de casa, antes de irem aos lupanares na vizinhança do armazém XII... Ah! Ali está Draque, o capitão do Madeleine. Vamos... preciso resolver umas coisinhas pendentes...

- Capitão, este é George Rafferty, de Glasgow. Vai assumir nossos escritórios em Buenos Aires.

O capitão se chamava François Draque, era franco-canadense. Parecia um Rodolfo Valentino com astutos olhos azuis que o fitavam por baixo de hirsutas sobrancelhas negras. Ele e Rick ficaram conversando enquanto eu bebericava, observando a fauna a minha volta e se via alguém conhecido.

O capitão não nos acompanhou ao almoço. Já de volta ao escritório e depois de termos acertado alguns pontos de minha tarefa, Rick perguntou se eu estava disposto a jantar no Madeleine, já que Draque nos convidara.

- Por volta das sete, irei buscá-lo no hotel, está bem?

-Alright! Qual o traje?

- Oh! Nada formal. Nem mesmo gravata é necessário. Só esses imbecis daqui, que pensam ser europeus, usando gravata!

Cais, navio e noite são cenários por demais descritos para que eu possa escrever aqui algo novo. Mas já no portaló Rick me disse.

- Prepara-se para ouvir uma história sobrenatural acontecida aqui...

- Capitão! Se chegamos na hora errada... – Exclamou Rick ao entrarmos no camarote de Draque

O camarote , apesar de ser de um comandante, era pequeno e lúgubre. Ele estava sentado num sofá encostado à antepara e do outro lado do sofá, uma típica nativa brasileira, que eu sempre imaginara como devia parecer. Sua pele era sedosa e cor de chocolate. Seu cabelo espesso e anelado. Seus olhos escuros eram ornados com longos cílios. Sua boca de lábios polpudos e rosados. Eu já tinha visto negros antes, mas foi uma surpresa ao ver o que poderia se considerar uma beldade da raça. Fui saber depois que ela era uma mulata.

Numa mesa vi a parte maior de uma cabaça servindo de fruteira. Também cabaças não me eram estranhas. Já as tinha visto como fruto nas ilhas polinésias. Mas aquela era descomunal em tamanho e tinha estranhos desenhos ao seu redor. Era uma peça de arte.

- Por favor, gentlemen, entrem e fiquem a vontade. O que querem beber?

Depois das amenidades e já com nossos drinques nas mãos, Draque se dirigiu a mim.

- Mr. Rafferty...

- Por favor capitão, me trate por George...

- Pois bem. George, notei que voce não tira os olhos dessa fruteira...

- Oh! Sim.É verdade. Desculpe-me se tornei tão óbvio assim... mas gostaria de possuir uma assim. O senhor a venderia?

- Hum... sinto muito, George. Mas essa fruteira representa muito mais do que um simples recipiente de frutas. Mas antes de lhe contar o porquê, vamos jantar!

O cozinheiro estava parado a porta com uma bandeja contendo algumas terrinas. Quando Draque mandou que entrasse e ele ficou mais claramente sob a luz, eu tive que me controlar para não dar um grito de susto!

Ele era uma das pessoas mais feias que eu havia visto! Ele era a versão envelhecida e negra de Quasímodo!

A comida era frugal e me interessei mais em digerir uma banana.

François era capitão de um navio misto que fazia a linha Quebec-LeHavre. Houve um acidente, alguns pessoas morreram e seu navio foi a pique. Sua carreira nas boas companhias de navegação fora arruinada. Só lhe restou o comando de pequenos navios costeiros da América Latina pra baixo.

Devido ao infortúnio, François na verdade se escondia de seus compatriotas, e se exilava cada vez mais se descuidando da aparência e engordara duas vezes ao seu peso normal.

Mas um dia, ele aportou em Ilhéus, um pequeno porto cacaueiro ao sul da Bahia. Na vila dos pescadores ele encontrou Janaina, que ao ajudar a recolher as redes de pesca mostrava a voluptuosidade de seu corpo juvenil. Amores à primeira vista já foram descritos ad eternum, portanto pularemos para meses à frente.

Sotero Napolitano era mulato e mestre de convés do Madeleine. Era o braço direito de Draque. Seu erro foi se apaixonar por Janaina. Ela o rechaçou e contou ao marido François.

- Sotero, não é porque voce é um bom mestre de convés que eu não o despedirei com uma carta de admoestação. Não importune mais minha mulher. Tenha juízo!

- Mas capitão.. ela... ela não é...

- Cala a boca ou te desembarcarei imediatamente!

À noite, embalados no suave caturro das ondas, Janaina insistia que François despedisse Sotero.

- Ma chérie, mestre como ele é muito difícil de se encontrar. Tenho certeza que ele nunca mais vai olhar pra voce!

Dias depois, o Madeleine estava atracado em Salvador. François teve a primeira crise de vômitos. Em três dias emagrecera a olhos vistos.

- Isto é feitiço! Tenho certeza que Sotero lhe jogou uma macumba!

- Pára com isso, Janaine! Estou com alguma infecção intestinal. Já tive isto antes. Vai passar.

Uma semana depois, François pediu que viesse um médico. Este fez os exames de rotina e nada constatou. Passou alguns analgésicos e se foi.

- Deixe eu chamar um pai-de-santo! Eu sei como meu povo age. Isto é trabalho de Sotero! Se continuar assim, voce vai morrer em quatro dias!

François ardia em febre e já não raciocinava direito. Estava em pele e osso.

- Faça o que bem entender... mas, chame um padre.

- Não é assim que voce vai se salvar. Eu perguntei ao Orixá de minha vila e ele me disse que o feitiço poderia ser quebrado se quem fez o feitiço, olhasse o próprio reflexo na água dentro de uma cabaça. E então o feitiço se voltaria contra ele!

François lançou-lhe um olhar de esperança. Ou que lhe acabasse com o sofrimento. Aquilo significou aquiescência para Janaina. Ela passou a pôr o plano em ação.

Sotero a viu retirando os pertences do capitão e arrumando-os em trouxas do lado de fora da cabine.

- O que voce está fazendo? Isto é roubo! Não permitirei que voce saia do navio com essas trouxas!

- Olha... ele não passa de hoje! Pra quem ele vai deixar essas coisas? Pra voce? Ou pra mim que o aconchega entre minhas coxas?

- Não interessa! Quando ele morrer a policia virá fazer o inventário e...

- Deixa de ser burro, Sotero! Por que voce não vem comigo... agora?!

- Jamais! Não largarei meu emprego pra passar o resto da vida escondido por tua causa!

- Mas voce pode passar um pouquinho de sua vida comigo agora, não pode? E deixar eu levar as trouxas...

Sotero não resistiu às insinuações de Janaína. No camarote escuro dele, os corpos suados dos dois se chocavam vigorosamente. Uma hora não foi bastante para acalmar o ímpeto de Sotero.

Depois, Janaína veio com uma bacia feito de cabaça para junto da catre que ele estava deitado semi-adormecido.

- Vamos...vamos benzinho, os marinheiros já devem estar sentindo tua ausência. Te lava e vai ter com eles...

Ao lavar o rosto, Sotero sentiu como se chumbo derretido estivesse lhe envolvendo o rosto, penetrando na pele para em seguida lhe alcançar a garganta e sufocá-lo. Ele caiu mortalmente pra trás apertando o próprio pescoço.

Naquela noite, François parou de sentir dores. Dois dias depois o levaram para tomar ar fresco no tombadilho. Um mês depois ele voltara ao normal e mantivera o peso que atualmente tinha.

Já no carro que me levaria de volta ao hotel, Rick me perguntou.

- O que você me diz disso tudo?

- Sou um cético. Porém, se sabe que uma força de vontade, psicologicamente pode controlar o cérebro e reverter certos sintomas. Devemos dar crédito disso a ela, que ainda está ao lado dele, não é?

- Quem? Ela? Não. Esta não é a Janaína! Ela fugiu com o outro cozinheiro. François escolheu o atual para não correr o risco de novo. Ele diz que mulher nenhuma resiste aos quitutes de um jovem cozinheiro baiano!

Este conto é uma adaptação livre

de "Honolulu", de S. Maugham.

Raferty
Enviado por Raferty em 28/05/2007
Reeditado em 21/12/2007
Código do texto: T503819