Uma Rosa para Dolores

Calma manhã de maio. Poucas pessoas na calçada levemente

molhada. Não tinha chovido muito. A brisa era fresca. Dava para sentir pela janela do ônibus. O tempo também podia ser agradável em Bangu.

O pátio com aquela movimentação normal de 6:30 da manhã. Todo o mundo assumindo os seus carros.

- Dolores, hoje você fica com o carro 12. O Mauro não veio. Teve algum problema lá com o filho dele. Deve ser verdade porque o puto não falta. Talvez você tenha que dobrar, tá vendo, mulher?

Pô, logo hoje, que eu precisava ir à casa da tia Dulcina, ver se descolava aquela grana com ela. Com essa mudança, só estarei aqui lá pelas 9:30. Como aparecer meio tarde da noite na casa dela? E o pior é que não adianta nem argumentar com esse imbecil do Jofre. Parece que ele é o dono da empresa. Amanhã não trabalho, mas não adianta. Precisava da grana hoje.

- Teu trocador vai ser o Marquinhos, o Boca de Bode, ouviu Dolores?

- Tá bem, seu Jofre, está bem. Isso é mole pra gente.

- É isso aí. Assim é que eu gosto.

O ônibus começou a se deslocar vagarosamente pelas ruas de Bangu. Era cedo ainda e nesse trajeto, até alcançar a Av. Brasil, o veículo não enchia. Tinham entrado apenas cinco passageiros até então. Três senhores e duas crianças com seus uniformes de escola. Caixa vazia por enquanto.

Dolores era conhecida por sua maneira de dirigir. Sempre cuidadosa e afável com os passageiros, sobretudo crianças e idosos. Algumas pessoas já a conheciam e ficavam contentes em tomar o seu ônibus. Alguns trocadores não a apreciavam muito. Alegavam que era muito lenta e que isso podia propiciar situações perigosas, com essa cidade infestada de bandidos a cada esquina. Marquinhos Boca de Bode não ligava. Tudo lhe parecia indiferente, até o trabalho, onde entrava calado e saía mudo. Por isso quase todos gostavam dele. Dolores não era exceção.

Ao alcançar a Av. Brasil, mais ou menos às 7:15, o veículo estava praticamente cheio, havendo lugar apenas para os que viajavam em pé. Caixa mais cheia agora.

Seria provavelmente mais uma daquelas viagens monótonas, até o Cosme Velho. Muitos dos usuários eram conhecidos. Talvez por isso mesmo tudo fosse mais monótono ainda. Sem falar no trocador de hoje. Aquela mudez imutável. Esse cara não deve ter namorada. Não abre a boca.

Marquinhos devia ter uns 23 anos. Moreno claro, magro, 1,70m talvez, cabelos bem lisos e negros. Olhos escuros e bem fundos, parecendo nunca ter dormido direito. Barba rala, sobressaindo-lhe um arremedo de barbicha que era a causa de seu apelido.

Admirava a maneira de Dolores se conduzir no trabalho. Sempre pontual, disponível, colaboradora, ciosa de seus deveres e impecável na maneira de tratar o público, assim como os colegas. Embora ela nunca tivesse percebido, admirava-a também fisicamente, mesmo sendo ela talvez vinte anos mais velha que ele.

Dolores fora casada e tinha uma filha de 12 anos que ficava com a vizinha depois da escola. Mineira de Diamantina, Dolores era uma morena fechada, como diziam alguns na terra dela, meio cheinha, mais alta que Marquinhos, os cabelos pretos terminando na altura dos ombros. Deviam ser grossas aquelas coxas escondidas sob a calça cáqui. Do mesmo modo, deviam ser firmes e volumosos os seios sempre encobertos pelo blusão azul que completava o seu uniforme. Não se podia dizer que era linda. Ela não tinha tempo para se cuidar. Como também não era feia, o corpo apetitoso realçava-lhe a figura onde quer que se encontrasse. Mesmo o filho do patrão já tinha se insinuado. Garotão de 26 anos, desfilando sempre de Audi A4, talvez tivesse pensado que a conquista não seria difícil. Foi discretamente repelido. Dignidade era outra coisa que não faltava a essa mineira.

Ao passar pelo Caju, o coletivo achava-se completamente lotado e Dolores decidiu só parar para quem tivesse de descer. E aí ela procurava verificar se o número dos que desciam era o mesmo dos que subiam, de modo a que a capacidade do veículo não fosse excedida ainda mais.

Na Av. Rio Branco, no ponto próximo ao Edifício Avenida Central, o ônibus se achava bem mais vazio. Quase todos os bancos estavam ocupados, mas havia quatro ou cinco pessoas em pé. Nesse ponto entraram seis passageiros. Um casal de meia idade, com um buquê de flores, três homens jovens e uma adolescente cheia de livros. Aparentemente não se conheciam, ficando nos fundos da viatura a garota e dois dos jovens, um deles moreno alto e o outro negro e mais baixo. O casal e o outro homem, claro, da altura do moreno e com o cabelo oxigenado, misturaram-se com as outras pessoas em pé.

O cabelo oxigenado é usado por alguns negros para parecerem mais claros. A coisa funciona porque a gente se detém na cabeça da pessoa e esquece da cor da sua pele. A abstração é tamanha que chegamos a ter a impressão de que a cor da pele não é tão negra quanto imaginávamos. No caso de uma pessoa clara, o efeito não é o mesmo. Sendo clara a cor de sua pele, só nos resta descobrir se é natural ou artificial a cor daquele cabelo.

Era mais ou menos nisso que Dolores pensava quando viu pelo espelho retrovisor externo aquele passageiro subir por último. Só quase na metade do Aterro do Flamengo percebeu que os dois outros rapazes tinham ficado na parte de trás do ônibus e o “louro”, que tinha sido o último a entrar, já estava praticamente a seu lado. A garota também tinha vindo pra frente, onde todos os bancos estavam ocupados. Permitiu que um respeitável senhor ficasse com seus livros, apesar de parecer que iria saltar logo adiante.

Dolores, ainda pelo retrovisor, fixou-se então no “louro” e notou sua bonita camisa social azul sobre uma camiseta de malha clara, ambas fora das calças. No lado direito, um volume que não era certamente de telefone celular.

- Aí, tia, continua dirigindo bonitinho que a gente só qué uma graninha, falou?

Dolores ficou pálida e muda. Chegou a minha vez? Parece que só ela tinha ouvido a voz suave do “louro”. Pelo retrovisor percebeu que os outros dois, igualmente armados, já vinham tirando carteiras e bolsas dos passageiros.

A mulher de meia idade, que tinha subido com eles e agora se achava sentada com o esposo num dos bancos da frente, descontrolou-se e começou a chorar alto. Recebeu uma bofetada do negro baixinho. O marido ameaçou reagir, mas conteve-se diante do revólver do negro.

- Fica na tua senão eu aperto mesmo, sacou? E você, coroa, fica caladinha aí, tomando conta das flor..

- Tá... tá... bem... Marcelo, de...ixa pra lá, murmurou a mulher de meia idade, dirigindo-se ao marido.

- Caroço, quê qui tá haveno aí?, indagou o “louro”, bem próximo a Dolores.

- Chefia, você é maneiro, não deixa haver bagunça, não esculacha ninguém, o pessoal do ônibus é tudo gente boa, interveio Dolores, quase sussurrando.

- Tá legal, tia, pode deixá. Tô vendo qui só tem gente boa. Num leva mal não, tia, a começar pela senhora.

Dolores calou a boca. Notou alguma coisa estranha na fala do “louro”, além da inesperada deferência. Era preferível ficar calada. Talvez ele a atendesse.

- Aí, Dedão, é a mulher aqui que está dando chilique e o cara dela tá querendo aparecer.

- Sem bronca, Caroço, sem bronca. Já pegou tudo? A tia aqui é manera. Vamo colaborá com ela qui ela colabora com a gente.

- Tô ligado, tô ligado.

Dolores continuava na mesma marcha no Aterro, 70 km/k, disfarçadamente olhando para os dois lados da pista. Buscava uma patrulhinha da PM, e ao mesmo tempo temia encontrá-la. Não poderia prever qual seria a reação dos assaltantes. O negro tinha agredido a mulher de meia idade e o moreno alto implicara com o Marquinhos, já tendo-lhe apontado a arma engatilhada duas vezes.

- Barbicha, não fui cum a tua cara, tá ligado? Ficou algum papel cuntigo aí?

- N... na... não, tá tudo aí com o senhor.

- Que senhor o que, mané, que senhor! Corta essa bundão. Se tu tiver mentindo, sento o dedo legal, valeu?

Dolores viu que apenas o “louro” mantinha-se tranqüilo. Nisso diferenciava-se bastante dos dois outros, mostrando-se bem mais experimentado. Teve tempo inclusive, no meio de toda a ação, para trocar olhares com ela, que se assustou com a especial atenção.

- Chega mais, Pato Mu. Tu fica aí, Calção, fica perto do Barbicha, já que tu gostou dele. Vamo tê um show manero, antes de rapá fora.

- Tá maluco, Dedão? Os homi tão sempre por aí no Aterro.

- Jogo rapidinho, Pato Mu. Aí, tia, a senhora me lembra muito uma garota qui tive e qui num deu certo. Pato Mu, assume lá, mostra qui tu já trabalhou na parada aí, tá ligado?

- Mas... se... seu Dedão, isso pode ser perigoso.

- Que nada, tia. O negão é esperto. Sai fora, tia. E tira o blusão azul e dá pra ele. Assim os homi num nota nada.

- Mas... se... seu... seu... Dedão, é preciso isso? Fazer isso com a gente?

- Já disse qui num vai acontecê nada de mais. Ninguém aqui se machuca se fazê o que estou falando. A não ser qui queiram vê o Calção em ação, certo?

Em poucos minutos Caroço, também chamado por Dedão de Pato Mu, estava na condução do ônibus e demonstrava relativa habilidade. Dolores diante de todos, no corredor, de soutien e a calça cáqui do uniforme. Os seios fartos e firmes merecendo a maior atenção de Dedão. Embora tensos e ainda nervosos, o inusitado da situação provocou certo relaxamento entre os passageiros. A figura exuberante de Dolores merecia ser contemplada. Com a anuência de Dedão, e sob a mira de sua arma, quatro ou cinco passageiros, incluindo-se a garota dos livros, procuraram envolver Dolores numa espécie de círculo, de modo a impedir que ela fosse vista por quem estivesse fora do ônibus ou de dentro de algum outro veículo ao nível do coletivo.

- Tira o resto.

- Mas seu Dedão, tenha paciência, observou o respeitável senhor que ficara com os livros da garota. A motorista é uma senhora digna e excelente funcionária. Não é possível que seja obrigada a suportar um vexame desses.

A voz da pessoa que falara era firme e clara e seus olhos olhavam direto nos olhos do “louro”. Talvez por isso o assaltante tenha ficado algo intimidado, sem no entanto perder a tranqüilidade.

- Olha aí, vovô, também tenho a mesma opinião do senhor. Mas não tem nada não, não tem nada de mais. Só tô dando a chance de ela mostrá pra todo mundo qui é boa, e de todo mundo ver como essa mulher é gostosa. Só isso. Muitas vezes a gente tem qui pagá por isso. Aqui todo mundo vai ver de graça. Tira logo o resto, tia.

Ouviu-se um burburinho em todo o ônibus. Os passageiros olhavam-se incrédulos. Alguns gesticulavam.

- Vamo calá a boca aí, seus 71, ouviu-se a voz gutural de Calção, junto com o click de seu revólver. O silêncio foi restabelecido.

Dolores iniciou pelo tênis preto e as meias. Seguiu-se a calça cáqui, mantendo-se corajosamente de pé apenas de calcinhas. Desejou ardentemente que aquilo fosse suficiente. Pensou em sua filha de 12 anos, a essa hora compenetrada com as coleguinhas em sua sala de aula. O que seria de Aninha quando soubesse disso, se visse isso? A vida traga a gente pra que depois traga de volta.

- Tira o resto logo, tia, tira tudo, pôrra. A gente num pode ficá aqui o tempo todo.

A platéia mantinha-se tensa e calada. Total silêncio irrompeu logo após a implacável ordem de Dedão. Até então o bandido quase que não se fizera escutar. Falava baixo e macio. Porém, agora, notava-se bem claro o comando, mais imperativo do que nunca.

Caroço se mexeu lá na frente, colando os olhos no retrovisor, sem se descuidar da pista. Marquinhos se ergueu imperceptivelmente da cadeira, para poder ter a chance de ver, talvez pela única vez na vida, algo que jazia lá no fundo da sua imaginação.

A garota dos livros chegou a prender a respiração quando Dolores pegou com as duas mãos a cinta da calcinha fazendo-a escorregar pelas pernas abaixo. Seus olhos fixaram-se imóveis no meio das pernas da motorista. Admirou-se ao se sentir atraída e perturbada pelo que seus olhos iriam logo testemunhar. Certo frisson também acometeu a platéia, como resultado talvez dos movimentos inesperadamente leves e delicados de que se valeu Dolores para retirar a última peça de seu vestuário. Boca de Bode, aproveitando-se de um eventual distanciamento das pessoas que envolviam a motorista, subiu com os olhos demoradamente do chão, detendo-se nos joelhos, depois nas grossas coxas e por fim na plumagem negra e espessa do sexo de Dolores. Quem estava por trás dela não foi menos agraciado. Pelo contrário. Quando a motorista teve que se inclinar para retirar a calcinha, pôde ter rapidamente uma visão nítida da sua vagina peluda, além, é claro, de suas ancas firmes e proeminentes.

-Muito bom, muito bom mesmo, tia. Caroço, sai fora. Devolve a camisa pra tia. Calção, vamo nessa. Rápido, rápido, tia. Assume lá.

- Mas assim, seu Dedão?

- É assim mesmo, senão pinta sujeira. Tem tempo mais não. Numa boa, aí, tia.

Os movimentos foram rápidos conforme a ordem de Dedão. Dolores correra lá para frente e reassumira a sua posição, tendo colocado apenas a blusa azul de seu uniforme.

Durante os poucos minutos em que esteve sentada descalça e sem calcinhas na direção do ônibus, e em que se apercebeu do contacto da vagina com o vinil do banco do motorista, Dolores teve uma sensação inesperada. Sentiu-se de repente como uma rainha, que tinha os passageiros atrás de si como súditos. Apesar de todo o susto, sentiu-se envolvida por uma atmosfera de júbilo, de triunfo. Era bom ter percebido que todos tinham ficado reféns seus, todos os olhares dela prisioneiros.

Ao parar o veículo para que finalmente os três descessem, o que fez ao mesmo tempo aliviada e com pena, notou que Dedão ficara por último. Rapidamente ele se dirigiu ao casal de meia idade, tirou uma rosa vermelha do seu buquê de flores, beijou-a e solenemente a ofereceu a Dolores.

Rio, 22/05/2004