Acidentes Acontecem

Era tarde da noite quando eu ainda estava no gabinete da delegacia. De repente o telefone toca: um acidente na única saída da cidade. Entre um caminhão e um carro. Imediatamente, peguei meu carro, mais duas viaturas e corremos na direção oeste. A saída no lado leste foi bloqueada pela ponte ter desabado por causa do mau tempo, mas projetos para a construção de uma nova estava em andamento.

Aos poucos, enxergávamos uma multidão no local, olhares curiosos pelo lado de fora da minha janela, e mais gente se aproximava. As duas viaturas atrás acionaram a sirene, só assim as pessoas se afastavam para nos deixar passar. Descemos dos carros e a cena foi chocante para mim, mas não tão chocante quanto a que estava por vir. O carro, aliás, o que restou dele era um monte de ferro empilhado, as duas crianças do banco passageiro ficaram amassadas e seus pais, na parte da frente, mutilados. Respirei fundo. A minha vida toda presenciei acidentes, e para o meu horror, chegou até ficar comum, quase normal.

Um mal estar embrulhou meu estomago quando ajudei meus colegas a tirar os cadáveres em pedaços. Só havia uma ambulância para a cidade inteira, então um policial era um funcionário multiuso.

- Tive uma conversa com uma testemunha que disse ter passado pelo local na hora do acidente - disse Ramos, um colega - O carro vinha na frente do caminhão quando perdeu o controle e caiu nessa ribanceira.

- E o caminhão? - perguntei.

- Há riscos no asfalto que provam que o caminhoneiro freou bruscamente, atingindo a traseira do carro.

Decidi conversar com o caminhoneiro, que estava parado na beira da estrada com um péssimo humor.

- Você está em maus lençóis.

- Eu não tive culpa! - ele se alterou - O carro que teve culpa!

- É mesmo? - senti seu bafo podre de bebida.

Ao fundo, os murmúrios das pessoas olhando a cena, e ao mesmo tempo, se percebia certo alivio em seu olhar porque não tinha acontecido com elas ou com seus parentes. Deus tenha essa família. Até queria sair para aproveitar o fim de ano com a minha, mas com esse trabalho quase não tenho folga. Todos os dias as pessoas arriscam suas vidas. Acordei com o barulho pesado da papelado caindo na minha mesa. Ramos. Peguei a garrafa de café do meu lado e coloquei um pouco em uma xícara grande. Era a única forma de me manter acordado durante essa madrugada.

- Tirei fotos - disse Ramos. Ele parecia mais sóbrio do que eu.

- Certo. E vê mais uma garrafa de café para mim.

- Sim. A documentação das vitimas estão todas anexadas aí porque ficaram irreconhecíveis.

Ramos bateu a porta me deixando a sós com os documentos. Folheei: o acidente ocorreu por volta das 3h da manhã deste sábado, dia 20, entre um caminhão de carga e um gol vermelho. Quatro pessoas morreram, entre elas, duas crianças e dois adultos. O caminhão em alta velocidade, vinha atrás do gol quando este perdeu o controle e caiu a ribanceira. Imaginei a cena. Mais alguns para as estatísticas de 2014. Será que estavam com cintos de segurança? Deus sabe que tenho o maior cuidado. Sempre peço para que meus filhos coloquem o cinto de segurança. Tenho dois meninos, o mais velho com 10 anos, Mayk e o caçula de 8 anos, Michael.

Meu telefone toca:

- Alô?

- Theo, quero que venha no meu gabinete - disse o delegado. E desligou.

Ele era um homem velho, na casa dos 60, quase para se aposentar, porém com mais experiência que todos nós juntos. Era rígido em suas obrigações, os outros o tinham como cabeça dura, mas para os mais íntimos tinha o coração mole, Delegado Manoel.

- Pois não, senhor - falei assim que entre em seu gabinete.

- Está com o relatorio em mãos?

- Sim.

- Ótimo. - ele pegou e examinou cuidadosamente.

Sua sala era recheada de quadros, de certificados, de honras. A mesa se resumia a um laptop, um estojo e uma luminária. Quando achei que o silencio já estava incomodando, ele falou.

- Então, o rapaz estava embriagado?

- Sim. Até pude sentir o cheiro.

- Certo... Agora, esqueça o ponto de vista humano, esqueça a razão. Você já refletiu um pouco sobre o seu trabalho?

- É...

- Em todo esse tempo como delegado eu sempre achei que fosse a ordem natural das coisas: nascer e morrer. Até que um dia eu comecei a duvidar dos fatos. Acidentes acontecem, é verdade, mas por que acontecem? Já se perguntou, Theo?

- É claro - menti. Nunca usei minhas emoções ou sentimentos como base em uma profissão como aquela, até deixo de lado aquela superstição de começar o ano vestido de branco.

- A ciência não sabe de tudo - olhou para a janela, meditando - Há coisas debaixo do nosso nariz e nós não percebemos... Vou dar uma entrevista na TV local para debatermos a importância de um transito correto.

- Espero poder assistir, senhor.

- Seria muito bom!

Sr. Manoel tinha seus cabelos e barba grisalhos, olhos pequenos cobertos por sobrancelhas espessas e um rosto marcado e expressivo. Ele me deu algumas instruções sobre o caso, contou-me também sua opinião sobre o acidente e lembrou que o filho queria seguir sua carreira. Por ser um homem calado muitos pensamentos lhe eram frequentes. E antes que eu me retirasse, ele escreveu em um papel e me entregou, soltou um sorriso raro.

Ao chegar em casa, com os ombros caídos de tanto cansaço tomei um banho demorado. A agua penetrava em cada poro do meu corpo trazendo uma sensação de alivio. Embaçando o espelho do banheiro. Enxuguei-me com a toalha que minha esposa havia deixado encima da cama, me olhava no espelho da pia. A calça estava pendurada, e lembrei do papel no bolso. Meti a mão e retirei o bilhete "PERGUNTE-SE POR QUÊ?" Hum? pensei. Seu Manoel era um velho legal para aqueles que o conheciam.

- O que foi? - perguntou minha esposa, Lívia, percebendo meu semblante confuso durante o almoço.

- Nada.

Ela insistiu com os olhos. A cada garfada, mil e um pensamentos. Sempre fui guiado pela lógica, esse negocio de especular, perder tempo pensando nas probabilidades nunca foi comigo. Sempre gostei de bases sólidas e que dessem resultado. Fomos os últimos a terminar os pratos, Mayk e Michael almoçaram e logo deixaram a mesa.

- Por que essa cara, amor?

- Bem, é que... me deram um bilhete...

- Quem? Que história é essa? - o tom meigo dela mudou.

- Calma. Não é o que vocês está pensando. Quem me entregou esse bilhete foi o delegado, Seu Manoel.

- Hum. E o que era?

- Pergunte-se por quê?

- Ah, que estranho.

- Por quê?

- Sei lá, você não é desse tipo. Por que ele te entregou isso?

- Também não sei.

Vesti meu uniforme e arrumei minhas coisas para voltar ao trabalho, mas antes que eu fechasse a porta, ela veio em minha direção.

- Cuidado - sorriu - Bom trabalho, tá?

- Eu te amo - beijei-a.

- Eu também te amo.

A delegacia estava tranquila quando cheguei, poucos policiais pelos corredores, os presos continuavam quietos dentro das celas e uma equipe, eu soube, estava patrulhando pelos bairros. Passei pelo gabinete do delegado e ele não estava lá, certamento fazendo a entrevista como tinha dito. Tomei um gole de café. Li o relatório outra vez para verificar se faltava algum detalhe ou riscar algum erro. Chamei Ramos.

- De acordo com a autopsia não havia álcool ou drogas no organismo do motorista - disse ele.

- E o carro?

- Tudo em dia. Sem alterações ou problemas mecânicos.

- E o caminhoneiro?

- O teste do bafômetro revelou cinco por cento de álcool. Ele confessou ter bebido antes de dirigir.

- Bons amigos e cerveja barata. As marcas dos pneus do gol na pista provam que quem freou primeiro foi o carro, mas o caminhão deu um empurrãozinho.

Depois de um dia inteiro sentando, de castigo, mais um caso estava concluído e finalmente eu poderia ir embora e aproveitar o ano novo. Fiquei sabendo também que o funeral daquela familia seria no dia seguinte. Senti tristeza. Quando entrei para essa vida, achei que o trabalho seria fácil, só atirar ou prender, mas percebi que era ao contrário, aquilo mexe muito com a nossa cabeça. Pessoas perdendo suas vidas no meio da estrada, matagal ou qualquer lugar inimaginável. Ser flexível e estar apto a salvar e até se sacrificar em prol de terceiros. Dei uma volta na fechadura para trancar minha sala. Apalpei os bolsos e em um dele senti um pequeno volume, o bilhete. Senti um leve arrepio. De repente, o telefone toca do lado de dentro.

- Alô?

- Você precisa vir aqui! - o tom da voz de Ramos me assustou.

- Onde você está?

- Na saída da cidade.

- Outro acidente? Esse lugar deve ser maldito!

Quando cheguei no local havia mais quatro viaturas me esperando, com o giroflex piscando que chegava a doer os olhos de quem olhasse diretamente. As pessoas pareciam uma plateia que queria saber o desfecho da narrativa. Era o mesmo local com carros diferentes: um ônibus e uma caminhonete haviam se chocado grosseiramente. Alguns passageiros tiveram arranhões, escoriações, torções, mas sobreviveram, mas o motorista do carro estava imovel sobre o volante. Li o numero da placa e em um instante achei ter me familiarizado.

- Sinto muito, Theo. - Ramos se aproximou e colocou a mão no meu ombro.

Não sei qual foi a minha reação ao perceber a tragédia que estava na minha frente. Senti apenas uma injeção de adrenalina percorrer meu corpo.

- Qual foi a hora da morte? - perguntei em meio a um soluço, e até automaticamente.

- 2h da madrugada.

Dei uma volta ao redor do carro, o delegado não teve os membros mutilados ou fora amassado com o impacto de um ônibus, mas a pancada na cabeça tinha sido tão forte que parte do cérebro estava a mostra e o sangue pingando no chão. Debrucei-me na porta do motorista e chorei.

Foi o relatório mais difícil de ler em toda a minha vida. As letras borravam com as lágrimas. Limpei o nariz várias vezes com a mão. Seu Manoel não tinha sido apenas o delegado, ele tinha sido como um pai para mim. Virei a primeira página: o acidente ocorreu por volta das 2h da manhã desta sexta feira, dia 10, entre uma caminhonete e um ônibus. Os poucos passageiros que tinham sobreviveram sofrendo apenas arranhões, mas o motorista da caminhonete morreu no local por conta de um traumatismo craniano. O ônibus perdeu o controle e invadiu a pista contraria colidindo com outro veiculo.

Mais lágrimas. E de longe eu podia jurar que podia escutar as ultimas palavras dele "Acidentes acontecem, é verdade, mas por que acontecem?" Por quê? pensei. Minha esposa ficou nervosa quando escutou minha voz embargada de choro.

- O que aconteceu, meu bem?

- Aconteceu algo terrível... Eu jamais imaginava que isso fosse acontecer...

- O que foi?

- O Seu Manoel acabou de falecer.

- Como?? Impossível!

- Não dá para acreditar!

- Como você está?

- Sei lá... Não sei, eu... Pensar que isso tem alguma coisa a ver com aquele bilhete é paranoia minha, não é?

- Talvez.

- Isso é muita loucura! Por que isso está acontecendo?

- Acalme-se. Ele tinha você como filho mais velho. Ele amava você. Eu via isso.

- Mais tarde eu chego em casa, tá?

- Tá.

Alguém bate na porta. Ramos.

- Ei Theo se você quiser ir, pode deixar. Eu termino para você.

- Obrigado - dei um meio sorriso. Ele pareceu não se importar com meu rosto inchado.

Aquela noite eu tive pesadelos. Virei e revirei na cama várias vezes. Não sei como Lívia não se acordou ou me jogou para fora da cama. No sonho, Seu Manoel estava agonizando no banco do motorista querendo me dizer alguma coisa, mas apenas apertava a minha mão. Em outro, ele sussurrou no meu ouvido "Por que acidentes acontecem? A ciência não sabe de tudo, Theo..."

Ao me acordar, resolvi jogar fora aquele bilhete que estava me assombrando.

Aqueles dois acidentes consecutivos repercutiram de tal forma na cidade que a Secretária do Município junto com o Órgão responsável pelo transito resolveram fazer uma campanha de conscientização. Temos como dirigir alcoolizado, a importância do cinto de segurança, acidentes foram muito abordados. E o projeto de uma nova ponte, enfim, saíra do papel.

Era fim de tarde, eu estava voltando de uma festa de aniversario com os meninos. Para voltar para casa eu tinha que atravessar a saída da cidade. Olhar para aquele lugar, palco de terríveis acidentes, não me fazia bem, eu tinha calafrios. Algo que me disseram se tratar de Estresse Pós-Traumático. As lanternas iluminavam bem a estrada quieta. Então, só me lembro de ter escutado a risada gostosa do Michael quando vi um vulto passar rapidamente na frente do carro, fazendo com que eu perdesse o controle e atingisse uma arvore... Ao recobrar os sentidos, olhei para os lados, a minha esquerda, ao lado do carro, vi uma pequena criatura com as pernas bem longas desproporcionais ao resto do corpo, olhos negros e dentes afiados como as de um animal, me encarando. Petrifiquei. Quis desviar minha atenção mas fiquei impressionado. Pisquei os olhos e aquilo sumiu como num passe de mágica. Percebi que havia prendido o folego. A porta ficou amassada e a minha perna ficou presa no pedal. Olhei ao redor, Michael e Mayk estavam com arranhões no rosto, desacordados. Tentei puxar a minha perna para alcançá-los. Logo, escutei uma sirene...

Quando fui preencher o relatório, meu rosto arranhado também, não sabia o que dizer sobre o que eu vi. Algo que justificasse porquê eu bati na arvore.

- Você está bem? - perguntou Ramos. - Vim assim que eu soube. O que aconteceu?

- Não sei. Não sei...

- Calma. Poderia me dizer como foi?

- Eu vi alguma coisa na pista, Ramos.

- É, você bateu forte com a cabeça.

- Cadê os meninos? - me preocupei.

- Eles estão bem. Uma socorrista está cuidando deles.

- Vou lá.

Ele apontou a direção. A imagem daquele bicho ficou na minha mente. O que era aquilo?, pensei, e nós tínhamos sobrevivido. Por quê? Desde então, passei a duvidar dos fatos.

(Baseado em uma história real)

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 01/01/2015
Reeditado em 04/04/2015
Código do texto: T5087835
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.